Metodologia otimiza custo de teste molecular no Hospital São Paulo

Estudante do quarto ano do curso de Medicina elaborou projeto que barateia o PCR quantatitativo em tempo real feito em pacientes com leucemia mieloide crônica

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Imagem: Belova59 - Pixabay

 

Valquíria Carnaúba

A leucemia é uma doença que atinge as células que formam os componentes do sangue humano. As chamadas células-tronco hematopoéticas estão presentes na medula óssea, um líquido gelatinoso encontrado no interior dos ossos, e dão origem às hemácias (glóbulos vermelhos), leucócitos (glóbulos brancos) e plaquetas. Nessa “fábrica”, subdividem-se em dois tipos, linfoides ou mieloides, que podem sofrer mutação genética durante a diferenciação em componentes sanguíneos, transformando-se em células cancerosas e substituindo as células sanguíneas saudáveis nascidas da medula óssea. 

O subtipo leucemia mieloide crônica (LMC) caracteriza-se pela mutação adquirida nas células-tronco hematopoéticas e, portanto, não estão presentes em nosso organismo ao nascermos. As células saudáveis ainda estão presentes, em maior ou menor quantidade a depender da fase da doença, e convivem com as cancerosas. A doença leva à produção exacerbada da maioria dos tipos de células brancas do sangue e de plaquetas. Com isso, as células leucêmicas espalham-se pelo corpo todo, podendo provocar sintomas como cansaço fácil, fraqueza, febre e manifestações hemorrágicas.

Atualmente, o tratamento de escolha para a doença é a terapia vitalícia de alto custo com uma droga que inibe a ação da proteína derivada a partir da mutação. Tornar essa opção menos onerosa para o Hospital São Paulo (HSP/HU Unifesp), hospital universitário da Universidade Federal de São Paulo, foi o desafio que Clara Cardoso Franco Avancini aceitou no ano passado. Ela é atualmente estudante do quinto ano de Medicina e autora de um projeto de Iniciação Científica orientado por Gisele Wally Braga Colleoni, docente do Departamento de Oncologia Clínica e Experimental da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), e co-orientado por Fábio Rodrigues Kerbauy, professor adjunto da Hematologia e responsável pelo ambulatório de Leucemias do HSP/HU Unifesp.

Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o projeto consiste na padronização e otimização de um kit comercial fabricado para diagnóstico da doença LMC, que contém material para realização do teste reação em cadeia por polimerase quantitativo (qPCR) em tempo real. Esse teste deve ser realizado periodicamente nos pacientes para verificar se o tratamento está sendo efetivo. Por meio dele, os médicos verificam a quantidade do material genético cancerígeno da leucemia mieloide crônica. O ideal é que o total seja tão baixo que o paciente venha a ser classificado como em remissão molecular profunda.

Apesar de necessário, o exame onera o orçamento da saúde: cada teste, quando o serviço é terceirizado, custa em torno de R$ 800,00. “No estudo, verificamos que aproximadamente 20 pacientes necessitam efetuar o teste qPCR cada mês. Por ano, isso poderia onerar o orçamento do HSP/HU Unifesp em quase R$ 200 mil”, pontua a docente. 

Colleoni e sua orientanda atuaram a fim de padronizar uma metodologia que visasse otimizar esse custo. A economia é de mais de R$ 140 mil anuais. “No caso do HSP/HU Unifesp, o grande gargalo era custo. O Laboratório Central do HSP/HU Unifesp faz alguns testes moleculares, mas essa demanda interna ainda não era atendida. Esse exame, que deve ser feito a cada três meses, no mínimo, era enviado para um laboratório externo, e seu valor final corresponde aos gastos do laboratório com reagentes, equipamentos e mão de obra. Quando propusemos trazer esses testes para nosso laboratório central, conseguimos reunir a mão de obra qualificada (que já existia aqui), compartilhamos e garantimos a manutenção dos equipamentos adquiridos com verbas de pesquisa e, com reserva técnica de outras pesquisas, adquirimos os insumos utilizados na padronização e otimização do teste”, complementa.

Dessa forma, foi possível reduzir o custo total de cada teste em aproximadamente R$ 600,00. Entretanto, essa não foi a única questão explorada na pesquisa. A outra grande pergunta com a qual a estudante - assim como médicos do mundo todo - se deparou durante sua Iniciação Científica foi a possibilidade de manter estáveis, sem a medicação fornecida pelo SUS, os pacientes que estivessem há dois anos sem manifestações clínicas, hematológicas e moleculares da LMC. Para levar adiante a tentativa de retirada da medicação, seria necessário verificar constantemente por meio do exame em questão, inicialmente todo mês, se a doença voltou a se manifestar em nível molecular.

Por meio do qPCR pode-se quantificar os genes transcritos do BCR/ABL, o marcador da doença LMC (e de sua presença no sangue). Como mencionado anteriormente, o câncer surge de uma alteração genética, e na leucemia mieloide crônica ela ocorre nos genes ABL e o BCR, que se fundem para formar o mutante conhecido como cromossomo Philadelphia (Ph). “Podemos usar o caso da covid-19 como exemplo. Para saber se o paciente possui a doença, também é feito hoje um teste qPCR. No caso da LMC, o teste é feito para verificar se há resquícios da doença mesmo após a suspensão da medicação”, explica a docente.

Otimização de processos

Avancini e Colleoni moldaram o projeto em algumas frentes, a fim de verificar em quais delas poderiam reduzir os custos dos kits destinados aos pacientes com LMC: testagem de reagentes, aquisição e manutenção de equipamentos para os testes qPCR, mapeamento da mão de obra e o acompanhamento de pacientes potencialmente em remissão clínica, hematológica e molecular após a suspensão do tratamento fornecido pelo SUS. 

As pesquisadoras avaliaram os prontuários de 100 pacientes com LMC. Excluíram 23, de pacientes que deixaram de ter acompanhamento no ambulatório do HSP/HU Unifesp; dois com óbitos confirmados; uma forma atípica de LMC; 68 que estavam em remissão molecular maior (RMM) há menos de dois anos; e um paciente que apresentava Índice de Sokal, indicador que avalia prognóstico da LMC, alto (e com maior risco de evolução desfavorável após a suspensão da medicação). Dessa forma, restaram cinco pacientes elegíveis para o estudo piloto. 

Os indivíduos selecionados, maiores de 18 anos e em fase crônica de LMC, tiveram então amostras de sangue coletadas no Ambulatório de Hematologia, atualmente sob a supervisão de Kerbauy, destinadas ao teste qPCR. Esses testes produziram resultados apenas qualitativos, e a análise quantitativa se mostrou prejudicada devido à ausência de insumos de referência necessários para os cálculos finais e geração de laudo. 

Esse problema foi contornado com o apoio de Luis Gustavo Raimundo e de Gildo dos Santos, que são, respectivamente, médico e biomédico do Laboratório Central, que propuseram utilizar um novo kit a ser padronizado, esse contendo todas as ferramentas necessárias para quantificação e geração de laudo, com aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A parceria com o Laboratório Central da EPM/Unifesp está garantindo otimização de custos e utilização de equipamentos e de espaço físico de laboratório de pesquisa, em parceria com o HSP/HU Unifesp.

Hoje, o acompanhamento dos pacientes do HSP/HU Unifesp com LMC é possível mesmo após a interrupção temporária do tratamento. As pesquisadoras propuseram avaliar mensalmente os níveis de resposta molecular por um período de seis meses, e depois trimestralmente, no prazo de dois anos. Essa fase ainda não foi iniciada e ficará a cargo de Kerbauy levá-la adiante.

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Clara Cardoso Franco Avancini (à esquerda) foi orientada por Gisele Wally Braga Colleoni (à direita) durante a otimização do kit comercial fabricado para diagnóstico da leucemia mielóide crônica. A economia proporcionada pelo novo teste, por paciente, gira em torno de R$600,00 / Imagens: arquivo pessoal

De olho nos problemas contemporâneos

“O papel do orientador, seja ele de IC, mestrado ou doutorado, é ser um facilitador, fazendo com que os obstáculos sejam superados a cada semana. Num primeiro momento, orientei principalmente estudantes de doutorado, mas com o passar do tempo, após aumentar o meu contato com os de graduação da EPM/Unifesp, o meu papel como professora passou a ser exercido de forma plena, pois me desafiavam com perguntas que eu não sabia responder. Tive a felicidade de encontrar, nos últimos 10 anos, estudantes com perfis como o da Clara. São estudantes com interesse em pesquisa e que querem responder perguntas relevantes. Com a Clara, procurei dar um passo à frente: em vez de incluí-la na pesquisa básica, a levei para a pesquisa aplicada para a resolução de problemas com base na inovação social. Quando conseguimos baixar custos, ampliamos o acesso ao tratamento. Mas existem desvantagens: fazer um trabalho de bancada, utilizando testes in vitro e linhagens celulares, sempre trará resultados que podem originar um artigo científico. No caso da Clara, não temos um artigo, mas um produto, uma solução de ações perenes, gerando retorno social”. 

Clara, que já tinha um interesse natural pela área de Hematologia, após uma das aulas dessa disciplina, decidiu procurar Colleoni, sua professora, para entender como poderia se aprofundar no assunto. “Ela então me colocou em contato com o co-orientador do projeto, Kerbauy. No meu caso, iniciei esse projeto a partir de uma ideia previamente estruturada, devido ao interesse pela área e também pela afinidade natural com os docentes que me orientaram. Escrevi, então, o texto final a partir de uma pergunta clínica. Foi um primeiro contato com a pesquisa muito importante, pois me ajudou a entender melhor termos da área e a ter uma ideia melhor de como é a vivência em um laboratório. Pretendo continuar a pesquisa na pós-graduação e na Residência Médica, mas em outra área - possivelmente na Ginecologia”. 

Conforme relata Colleoni, os estudantes de IC podem ter dificuldade em escrever o projeto por ser um assunto novo, desafiador, ou pela própria falta de disponibilidade do professor, que normalmente está envolvido em muitas tarefas. Para ela, é preciso ter boa vontade de ambas as partes, pois sem o projeto não há aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) e, consequentemente, não há estudo sobre o assunto. “Se o graduando tem dificuldades, é papel do professor o acolher e manter a chama acesa. Se o professor tem muitos estudantes ou pouca disponibilidade para eles, perde-se um bom pesquisador”, finaliza.