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Nova esperança para o diagnóstico

Pesquisa abre perspectivas para a identificação de metástases em linfonodos de pacientes acometidos por carcinomas de cabeça e pescoço

Valquíria Carnaúba

Ilustração de uma cabeça de perfil, com sinal vermelho na área do pescoço

Em 2015, Ana Carolina de Carvalho, doutora em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia Molecular da Unifesp, venceu a primeira edição do Prêmio de Inovação do Grupo Fleury (PIF), na categoria Jovem Pesquisador, graças à sua tese intitulada Avaliação do Perfil de Expressão de MicroRNAs (miRNAs) como Marcador de Diagnóstico de Metástases Cervicais em Pacientes com Carcinoma Epidermóide de Cabeça e Pescoço. O trabalho traz novas perspectivas ao diagnóstico de metástases em linfonodos de pacientes acometidos por carcinomas epidermoides de cabeça e pescoço (CECP). 

Orientada por André Luiz Vettore, professor adjunto do Departamento de Ciências Biológicas da Unifesp – Campus Diadema, a pesquisadora avaliou o comportamento de 667 microRNAs (miRNAs) colocados em contato com amostras de gânglios linfáticos de pacientes com CECP. Dentre as conclusões, destaca-se a identificação de duas dessas moléculas como potenciais marcadoras da presença de células tumorais devido ao seu alto nível de expressão em linfonodos malignos.

O doutorado revela conceitos inéditos no meio científico, a exemplo do miRNA. Composto por cerca de 20 a 22 nucleotídeos, compõe uma nova classe de reguladores da expressão gênica em plantas e animais cuja existência, até meados de 2001, era desconhecida. “Antes acreditávamos que a célula regulava apenas a produção do RNA mensageiro (RNAm) e que uma vez sintetizado ele iria ao citoplasma atuar na síntese de proteínas. Agora sabemos que os miRNAs também são importantes reguladores nesse processo, podendo aderir ao RNAm e impedir a produção de proteínas”, afirma Vettore.

A literatura médica inclusive aponta que o miRNA influencia diversos processos relacionados ao câncer, como apoptose (morte celular programada), proliferação celular, controle do ciclo celular, migração e metabolismo. E, segundo Vettore, variações nos níveis de determinados miRNAs podem ser associadas ao fenótipo tumoral.

Atualmente, mais de 1.400 dessas moléculas foram decifradas no ser humano, porém a análise conduzida no âmbito da Unifesp, iniciada há cinco anos, considerou o comportamento de apenas 667, em amostras de gânglios linfáticos de pacientes com CECP. 

Os carcinomas, de modo geral, são distinguidos de acordo com sua extensão (TI, TII, TIII e TIV) e com a presença de metástases (células tumorais primárias) em linfonodos regionais. Quanto mais avançado o tumor, maiores as chances de enviar metástases por meio do sistema linfático. O estudo avaliou a variação e o comportamento dos miRNAs em amostras de linfonodos metastáticos e não metastáticos.

Metodologia de seleção

Ana Carolina analisou o caso de 48 pacientes (cujo perfil consta no gráfico da próxima página) acometidos por carcinomas epidermoides na parte inferior da cavidade oral (assoalho bucal, gengiva inferior, língua, região retromolar inferior e vestíbulo), classificados clinicamente nos estágios TI, TII e TIII e tratados cirurgicamente no Hospital do Câncer de Barretos entre os anos de 2000 e 2012. 

Amostras de gânglios linfáticos emblocados em parafina dos 25 casos metastáticos foram submetidas a cortes histológicos e dissecadas manualmente. O RNA foi extraído apenas da região contendo o depósito metastático; dos 23 casos não metastáticos, o RNA total foi extraído de cortes obtidos dos diferentes níveis dos linfonodos. 

A comparação da expressão global dos 667 microRNAs nas amostras metastáticas e não metastáticas foi feita por meio da Reação em Cadeia da Polimerase (RT-PCR, do inglês Reverse Transcription Polymerase Chain Reaction), método que combina amplificação (criação de múltiplas cópias) de ácidos nucleicos com um mecanismo de quantificação baseado em emissão de fluorescência, permitindo simultâneos aumento, detecção e quantificação desses ácidos nucleicos.

O comportamento desses miRNAs foi averiguado em quatro amostras de linfonodos metastáticos e duas amostras de linfonodos não metastáticos de pacientes com tumores de língua. Essa observação revelou que 439 microRNAs apareciam em pelo menos uma das amostras avaliadas.

Duas fotos. Na primeira delas, um homem com jaleco branco trabalha em um laboratório. Na segunda foto, é mostrada uma caixa com as amostras.

A extração dos miRNAs é feita a partir de amostras de linfonodos cervicais emblocados em parafina

Para selecionar os candidatos mais relevantes que pudessem diferenciar os dois grupos, os pesquisadores utilizaram o critério de False Discovery Rate (FDR), que evidencia a proporção esperada de hipóteses nulas rejeitadas erroneamente. Com isso, restaram 220 miRNAs diferencialmente manifestos entre os dois grupos. Os 25 que apresentavam níveis maiores de expressão foram submetidos à clusterização hierárquica não supervisionada, ou seja, exame de semelhanças e confronto entre dados sem critérios preestabelecidos. 

Nessa classificação prévia, a expressão de oito microRNAs foi maior ou igual a 100 vezes nas amostras metastáticas, a saber: hsa-miR-139-3p, hsa-miR-200a, hsa-miR-200c, hsa-miR-203, hsa-miR-205, hsa-miR-382, hsamiR-628-5p e hsa-miR-758.

Vale ressaltar que o nome de cada miRNA é composto pela junção de determinadas informações. Tomando como exemplo o hsa-miR-200c, a sigla HSA se refere à Albumina Sérica Humana (Human Serum Albumin), proteína mais abundante no soro sanguíneo; o 200 indica que foi a ducentésima família descoberta; e o c informa que esse miRNA está relacionado a outro miRNA, provavelmente o denominado hsa-miR-200a.

Grafico - Características demográficas dos pacientes incluídos neste estudo. Idade 25% < 50 anos, 75%> 50 anos. Sexo 79,2% Masculino, 20,8% Feminino. Tabagismo 25% não, 66,7% sim, 8,3% dados não disponíveis. Etilismo 39,6% não, 52,1% sim, 8,3% dados não disponíveis.

Resultados

Após a primeira fase exploratória, o comportamento dos oito miRNAs citados foi testado em um grupo independente de 14 amostras de linfonodos com macrometástases, 5 amostras de linfonodos com micrometástases e 15 amostras de linfonodos não metastáticos. 

Nenhuma alteração em amostras não metastáticas foi detectada, mas as proteínas hsa-miR-200a, hsa-miR-200c, hsa-miR-203, hsa-miR-205 e hsa-miR-382 apresentaram uma resposta diferencial significativa entre os três grupos – por isso, foram considerados 100% específicos.

Os miRNAs hsa-miR-200a, hsa-miR-200c, hsa-miR-203 e hsa-miR-205, finalmente, que melhor distinguiam os linfonodos metastáticos dos não metastáticos, foram novamente testados, dessa vez em todas as amostras incluídas nesse estudo (25 linfonodos metastáticos e 23 não metastáticos), considerando sensibilidade, especificidade, acurácia, valor preditivo positivo e negativo e área sob a curva ROC (Receiver Operator Characteristic, ferramenta que descreve a quantidade total de metabólitos presentes no organismo).

Dois deles, hsa-miR-203 e hsa-miR-205, tiveram os melhores desempenhos em todos os indicadores. Assim sendo, são promissores marcadores moleculares para o diagnóstico de metástases nos linfonodos de pacientes acometidos pelo CECP.

Relevância e aplicações práticas

O câncer de cabeça e pescoço é uma doença com alta incidência e mortalidade. Ele aparece comumente na cavidade oral (lábios, palato duro, língua, gengiva e assoalho), na faringe e na laringe. No Brasil, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) estimou para o ano de 2012 cerca de 14.000 novos casos de tumores de cavidade oral, a quinta neoplasia mais frequente em homens - com 9.900 casos. Desses tumores, mais de 90% são do tipo CECP.

Os dados alarmantes refletem o grande desafio da Medicina no que diz respeito ao diagnóstico e ao tratamento da doença. “O câncer de cabeça e pescoço pode ser confundido com uma afta que não sara. Mesmo quando identificado e tratado, reaparece com frequência. As chances de sucesso da terapia, que consiste na retirada cirúrgica da lesão e tratamento com rádio e quimioterapia, giram em torno de 50%, principalmente por causa da reincidência apresentada pelos tumores”, pontua o professor.

Fotografia da premiação. São três homens em um palco, o professor está no centro segurando o prêmio

O trabalho orientado pelo professor da Unifesp André Luiz Vettore foi classificado no Prêmio de Inovação do Grupo Fleury na categoria Jovem Pesquisador

Já para os estágios iniciais, conforme Vettore, não há rotina preestabelecida. “Algumas instituições ao redor do mundo adotam o protocolo ‘esperar para ver’: tratar o tumor sem abordar o pescoço, porém, as estatísticas mostraram que de 30 a 60% desses pacientes desenvolveram a doença no pescoço e precisaram ser tratados no futuro. Outras instituições adotam a prática de retirar os linfonodos, mesmo em casos de tumores iniciais, mas, de 50% a 80% dos casos operados não apresentaram a doença no local, ou seja, não precisariam ser tratados. Não há um consenso, a decisão é muito difícil”.

Por isso, o futuro reserva grandes utilidades para esses miRNAs. “Existe um exame que se faz nos gânglios linfáticos para saber se há neles células tumorais, por meio de Punção Aspirativa Por Agulha Fina (PAAF), cujo diagnóstico é feito por um citopatologista. Com o novo método, a detecção seria mais simples e poderia ser feita em um pequeno tubo de análise. Uma segunda utilidade para esse teste seria que, às vezes, na sala de cirurgia, para tomar a decisão de esvaziar ou não o pescoço, um patologista examina os linfonodos e verifica se há células tumorais. Estamos propondo que, em um futuro próximo, o teste seja executado durante o ato cirúrgico, auxiliando a equipe médica na tomada de decisão. A terceira utilidade poderia ser a ajuda na classificação dos linfonodos como metastáticos ou não, contribuindo para uma melhor definição da forma de tratamento a ser empregada”, afirma o professor da Unifesp.

Genética Molecular: Mais de 140 Anos de Descobertas

DNA • Apesar de o ácido desoxirribonucleico ter sido descoberto em 1869 por Johann Miescher, foram os cientistas James Watson e Francis Crick que ganharam o Prêmio Nobel por desvendarem, em 1953, a estrutura da molécula de DNA. Comumente designada como um longo polímero de unidades simples (monômeros) de nucleotídeos, sua cadeia principal é formada por moléculas intercaladas de fosfato e de açúcares; a estas últimas sempre se liga uma base nitrogenada, que pode ser adenina, guanina, timina ou citosina. A descoberta, que prometia revolucionar a Medicina e a Biologia, tomou tamanha proporção que culminou na criação do Projeto Genoma Humano (1990), cujo sequenciamento foi concluído em 2003 com 99,99% de precisão.

RNA • Miescher encontrou o ácido ribonucleico (RNA) em núcleos celulares na mesma época da descoberta do DNA. No entanto, o papel do RNA na síntese de proteínas só foi definido em 1939. Após 1951, foram identificados os tipos de RNA úteis a esse processo: o RNA mensageiro (mRNA), o RNA de transferência (tRNA) e o RNA ribossomal (rRNA).

RNA de Interferência • Células saudáveis possuem DNA de fita dupla e RNA de fita simples. A aparição de um RNA de fita dupla (fdRNA) geralmente indica a presença do genoma de um vírus de RNA. A interferência por RNA (RNAi) foi descoberta em 1986 pelo geneticista molecular Richard Jorgensen e descrita na década de 1990 pelos pesquisadores Andrew Fire e Craig Mello como um mecanismo de proteção da célula contra esse tipo de vírus de RNA. Quando um fdRNA se forma, é identificado pela enzima Dicer, que o corta em fragmentos menores com até 23 pares de bases. A fita de RNA que permanece intacta, chamada de RNA de interferência, busca fitas de mRNA correspondentes às sequência de fdRNA original. Quando mRNA desse tipo é detectado, ocorre o pareamento com o RNAi, sendo então clivado e degradado. Como o mRNA não pode ser traduzido, o gene tem sua expressão reduzida.

* Com a colaboração de Neusa Pereira Silva, Professora Associada da Disciplina de Reumatologia do Departamento de Medicina da Unifesp, atualmente aposentada

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