As drogas e a universidade pública

Soraya Smaili
Reitora da Unifesp

retrato da reitora Soraya Smaili

O mercado de drogas ilícitas movimenta, atualmente, cerca de 900 bilhões de dólares ao ano, o equivalente a 35% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, ou 1,5% do PIB mundial. A cifra, por si só astronômica, dá uma medida do poder de uma indústria que dinamiza e movimenta o crime organizado, com todos os seus tentáculos: tráfico de armas, órgãos e pessoas, contrabando, prostituição, lavagem de dinheiro, corrupção e outras atividades associadas, que, em seu conjunto, movimentam cerca de 2 trilhões de dólares, ou 3,6% de toda a riqueza produzida no planeta, segundo dados divulgados pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc).

No Brasil, o quadro é tão catastrófico quanto o observado globalmente. O preço da cocaína brasileira está entre os mais baixos no mundo, apesar de o produto causar impacto relativamente mais forte sobre o usuário do que o verificado na média (é o país que apresenta os maiores índices de procura de serviços de emergência após o uso). O crack é igualmente barato. Como resultado, o consumo é amplamente facilitado. 

Cerca de 5 milhões de brasileiros consumiram cocaína pelo menos uma vez na vida e 1,8 milhão fez uso de crack, segundo o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (II Lenad), realizado em 2012. Os dados são alarmantes também no capítulo das drogas legalizadas, em particular o álcool, cujo consumo, no Brasil, está entre os maiores do mundo. O cenário melhora apenas com referência ao consumo de tabaco, único exemplo nacional de combate às drogas bem-sucedido.

O sucesso econômico do narcotráfico, em escala global, coloca em evidência o fato de que a política de “guerra às drogas”, impulsionada principalmente pelos Estados Unidos, ao longo do século XX, até hoje, está muito longe de oferecer os resultados esperados. Ao contrário, o uso intenso dos mecanismos de repressão e controle contribuiu para abarrotar sistemas prisionais nos Estados Unidos, Brasil e outros países, não raro colocando até mesmo usuários ocasionais de drogas em contato com traficantes perigosos, agravando os problemas sociais subjacentes, incluindo práticas repressivas orientadas pelo racismo.

Em contrapartida, a partir do final do século passado, começaram a ser formuladas, em todo planeta, políticas públicas alternativas à “guerra às drogas”, incluindo, em particular, a legalização da maconha (tanto para uso terapêutico quanto recreativo). Atualmente, pelo menos 33 países legalizaram total ou parcialmente o uso e o porte da erva, com variações nas legislações. O caso mais emblemático até o momento é, provavelmente, o do Uruguai, que, em 2014, autorizou a produção e o comércio da maconha, sob controle do Estado. Mesmo nos Estados Unidos, apesar de uma lei federal absolutamente proibitiva, alguns Estados autorizaram o uso recreativo da maconha, outros se limitaram ao terapêutico. 

No Brasil, o debate ganhou corpo dentro das universidades e envolve intelectuais, políticos, sociólogos, médicos, parlamentares, religiosos e usuários, especialmente jovens, que protagonizam um movimento em defesa da legalização. Em novembro de 2015, a discussão foi levada a um novo patamar, quando o juiz federal Marcelo Rebello Pinheiro determinou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) retirar o THC (tetrahidrocanabinol), derivado da maconha, da lista de substâncias psicotrópicas cujo uso e venda são proibidos no país e permitir a importação, para fins medicinais, de medicamentos e produtos que possuam como princípios ativos os componentes THC e CDB (conhecido como óleo de maconha).

A presente edição de Entreteses aborda de frente essa questão, por meio da divulgação de um dossiê que reflete o trabalho desenvolvido no âmbito da Unifesp. A nossa universidade se orgulha de ter, entre os seus quadros, alguns dos mais importantes e destacados pesquisadores sobre a questão das drogas, cujos trabalhos produzem impacto e influenciam o processo de elaboração de políticas públicas. Nem sempre as conclusões e propostas são consensuais – ao contrário, eventualmente, são até antagônicas. Mas este, precisamente, é o papel da universidade pública: fornecer elementos para estimular a reflexão, a crítica e a interlocução como meio de resolver as grandes questões e impasses que afetam o país.