Brasil vive tempos de barbárie

A imagem mostra quatro pessoas, a primeira é uma mulher que tampa os ouvidos da segunda, a segunda mulher fecha os olhos do terceiro homem, o homem fecha a boca da quarta mulher

A prática da violência extrema – resultado da incapacidade de lidar com a diferença –, exacerbada nos últimos dez anos e presenciada em todos os setores da vida cotidiana, coloca o país como líder em homicídios no mundo, numa sociedade dividida e cada vez mais habituada à banalidade do mal

Ana Cristina Cocolo

Direta ou indiretamente, a violência já é parte de nosso cotidiano e não distingue gênero, credo ou posição social. Ela nos é imposta sob as mais diversas formas e, quando não somos as vítimas, somos as testemunhas.

Evidenciada nas ruas, nos lares, nas escolas, no ambiente de trabalho e na política ou veiculada pela mídia e pelas redes sociais, a violência – física ou psicológica –, motivada muitas vezes por diferenças ideológicas, sociais, religiosas e étnicas, pode acarretar sequelas imensuráveis. Uma tragédia com prejuízos que vão além da própria pessoa e atingem a massa, além de afetar o desenvolvimento econômico e social de um país. 

De acordo com o relatório do Institute for Economics and Peace (IEP), publicado em fevereiro de 2015, os custos da violência em todos os 162 países analisados – que correspondem a 99,6% da população mundial – somam US$ 7,16 trilhões. Quando incluída a perda de oportunidade de investimento na economia, esse valor duplica e corresponde a 13,4% do Produto Interno Bruto (PIB) global. O levantamento feito pelo IEP, órgão de pesquisa australiano que, desde 2008, estuda o impacto econômico da violência no mundo, baseou-se em despesas militares e no cálculo de variáveis que envolvem crimes, conflitos e segurança interna dos países.

O estudo em questão avaliou que, no Brasil, os custos alcançaram US$ 255 bilhões em 2013, ou seja, 11,5% do PIB. Isto fez com que o país ocupasse a quinta posição no ranking dos que mais gastam com violência, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China, Rússia e Índia. Enquanto nos países do Oriente Médio os maiores gastos se concentram em conflitos armados, no Brasil são os homicídios que consomem 50% desse valor. E podemos compreender o porquê.

O Brasil bateu o recorde de homicídios em 2014 (59.627 casos), com alta de 21,9% em relação a 2004 (48.909 casos), segundo o Atlas da Violência 2016 – estudo que é desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Esse índice elevou a taxa de homicídios no país de 26,5 para 29,1 mortes por 100 mil habitantes, colocando-o como detentor do percentual de mais de 10% dos homicídios ocorridos no mundo. 

Entre as principais vítimas estão jovens do sexo masculino, afrodescendentes e em situação de pobreza. Quanto à violência de gênero, 13 mulheres são assassinadas todos os dias no país, segundo balanço que utilizou dados de 2014 do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Cerca de 4,8 mil mulheres foram mortas por agressão, revelando um aumento de 11,6% entre 2004 e 2014.

Estado de guerra

O Mapa da Violência 2016, de autoria de Julio Jacobo Waiselfisz, sociólogo e coordenador da área de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), traz um panorama dos homicídios por armas de fogo no Brasil entre 1980 e 2014. Nesse período, quase 1 milhão de pessoas perderam a vida, ocorrendo – em 85% dos casos – agressão com intenção de matar. O percentual restante recai sobre os suicídios (3,9%), acidentes (1,7%) e intenção indeterminada (8,6%). Só em 2014 foram quase 45 mil mortes provocadas por armas de fogo, representando 123 vítimas por dia ou cinco óbitos por hora. 

Para José Paulo Fiks, psiquiatra e coordenador do Grupo de Pesquisa Qualitativa em Violência e Saúde Mental do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (Prove), vinculado ao Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo, as questões que cercam a violência no Brasil já resvalam na barbárie.   “As ações violentas no âmbito urbano, político, doméstico, racial e de gênero são extremas, com o único objetivo de destruir a paz, o equilíbrio emocional, e aniquilar o indivíduo”, diz. “O que vivemos hoje não é mais violência, mas barbárie.”

De acordo com ele, a violência não termina na ação do agressor ou na morte da vítima. Suas sequelas são sentidas pelas testemunhas do ato e por familiares e amigos que perdem o ente querido. “Morrem, anualmente, cerca de 60 mil pessoas assassinadas e outras 60 mil no trânsito”, afirma Fiks. “Se pensarmos que, desses 120 mil indivíduos mortos, no mínimo cinco testemunhas e/ou parentes são afetados diretamente em decorrência do evento violento, teremos quase 1 milhão de pessoas vítimas do transtorno de estresse pós-traumático.”

O transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é uma condição psiquiátrica de sofrimento psíquico devida à revivescência sistemática do trauma por meio de lembranças e pesadelos. No Prove, 60% dos atendimentos adultos realizados em 2015 são referentes a assaltos e abuso sexual e, entre as crianças e adolescentes, os principais tipos de violência sofrida correspondem a abuso sexual (59%) e maus-tratos (18%). 

Nesta edição, pretendemos oferecer uma reflexão sobre as causas da intolerância e da violência, além de discutir práticas capazes de criar alternativas que possibilitem a superação desse quadro repleto de dramas e tragédias.

A capa desta edição foi composta com trechos de comentários postados no Facebook
Fotografia: Ana Cristina Cocolo
Arte: Ana Carolina Fagundes