Da redação
Colaboraram
Rosa Donnangelo
João Valdir Comasseto, professor titular livre-docente do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Famacêuticas da Universidade Federal de São Paulo – Campus Diadema
Luiz Juliano Neto, ou simplesmente Juliano, não poderia imaginar que o ano de 1963, quando ingressou no curso médico da Escola Paulista de Medicina (EPM), seria apenas o início de uma carreira acadêmica que percorreria toda a sua vida. Os dois primeiros anos da graduação foram de fácil adaptação para ele, que no terceiro ano se interessou pela área de Biofísica, na qual permanece até hoje.
A ascendência italiana de Juliano é facilmente perceptível, na forma de gesticular e na descontração enquanto conversa, mas também à mesa, quando aprecia uma boa massa, revela. O avô paterno chegou ao Brasil em 1896 ainda menino. O pai sustentava a família com a barbearia que tinha no bairro da Mooca, em São Paulo, onde Juliano nasceu e cresceu. “Tive uma infância muito feliz”, comenta. O professor tem dois irmãos mais novos – um engenheiro de produção, já falecido, e uma professora titular da EPM/Unifesp no Departamento de Biofísica.
Hoje, o senhor de 70 anos, marido, pai e avô, ainda encontra tempo, disposição e energia para exercer a docência na Unifesp. Jean Clark, psicóloga e esposa de Juliano há 50 anos, não poupa palavras e impressões que tem a respeito do marido. Afirma que há duas maneiras de enxergar Juliano: a fantasiosa – “ver um ser que vive nas nuvens, tem ideias muito próprias, não olha para os lados” – e a real – “dar a maior importância para o trabalho dele”.
O “ser que vive nas nuvens” desperta às quatro horas da manhã para trabalhar. Às cinco horas já está sentado em frente ao computador, assimilando ideias, buscando novos trabalhos ou resolvendo questões de um antigo projeto. Juliano só se sente feliz quando está lotado de ideias e deveres, e por isso adota um comportamento introspectivo. “Se o deixarmos quieto num canto, estará bem”, afirma Jean, apontando no álbum, que ela mesma fez para presentear o marido no Natal, a imagem de um duende com vários objetos na cabeça, simulando os pensamentos dele.
A aposentadoria está próxima e Juliano se sente satisfeito. “A Escola ainda me quer”, comenta. A dedicação exclusiva à EPM/Unifesp se encerra, mas muitos projetos estão em andamento. O professor não ficaria sem sua segunda casa, o laboratório, por muito tempo.
Na época em que Juliano começou a se interessar por Biofísica, a síntese de peptídeos – fragmentos de proteínas com funções biológicas que vão desde hormônios como ocitocina, produzida na hipófise, até antibióticos que os organismos produzem para se defender – em fase sólida ganhava importância. Bruce Merrifield, um químico que atuava nos Estados Unidos, criou uma máquina que possibilitava a reprodução de peptídeos em laboratório. Antônio Paiva, professor orientador de Luiz Juliano na época, conseguiu adquirir e instalar uma dessas máquinas na EPM e a evolução do estudo no Brasil foi uma das consequências boas, não só para a instituição, que ganhou prestígio internacional, mas para Luiz Juliano, que dedicou sua carreira e atuação profissional à síntese de peptídeos e é reconhecido por ser o primeiro pesquisador brasileiro a ter um espectrômetro de massas e introduzir os projetos de identificação de microrganismos.
A prática da interdisciplinaridade surgiu, naturalmente, como resultado do método de trabalho adotado pelo professor. O trabalho embasado em peptídeos e, por consequência, proteases, que liberam peptídeos das proteínas, fez com que profissionais das áreas de Físico-Química, Química Orgânica e Analítica e Fisiologia fossem aliados ao estudo e desenvolvimento de projetos. O gosto pela leitura científica, por Cálculo Matemático e pela aquisição de conhecimento começou desde cedo na biblioteca do colégio Mackenzie. “A Engenharia do Mackenzie sempre foi muito forte, é até hoje. Eu estudava Cálculo naquela biblioteca, por conta própria”, relembra. A expansão da Unifesp poderá trazer, na visão sempre otimista de Juliano, uma grande interação entre os laboratórios e os novos campi. A condição sine qua non é o encantamento pela ciência.
A vontade que tem de conhecer sempre mais impele Juliano a buscar as fronteiras do conhecimento, e é, provavelmente, a principal característica de uma carreira que lhe assegurou projeção e reconhecimento internacional.
“Você tem que ser um pouco ousado e sonhador também”, comenta ao falar sobre um projeto inovador que desenvolve no Parque Zoológico de São Paulo. O projeto teve início no ano de 2007 quando surgiu a ideia de prospectar enzimas de interesse biotecnológico em microrganismos provenientes de fezes de animais selvagens. O projeto evoluiu e, com apoio da Fapesp, da empresa Tortuga e do próprio Zoológico, um laboratório de Microbiologia e Biologia Molecular foi construído no espaço. O professor orienta hoje dois doutorandos que usam o material colhido dos animais do Zoo.
“A gente tem que estar sempre adiante, no limite das coisas. E quem é que vai imaginar a exploração de microrganismos produtores de enzimas úteis para proteases, celulases, por exemplo? O Zoológico tem 55 herbívoros e eles vivem de quê? De celulose. Eles devem ter os bichos que comem a celulose para eles. É um bom lugar para ir? A ideia é essa. O que você vai fazer no Zoológico, mexer nas fezes dos animais? Aparentemente é um loucura. Mas tem fundamento”, explica Juliano. Atuar em uma nova área do conhecimento exige trabalho e muita dedicação, mas isso não é problema para o professor. “Ele tem as ideias dele, põe no papel e enquanto estiver em um determinado projeto, não sai. Ele é muito teimoso, muito fiel ao trabalho”, afirma Jean Clark.
O “mundo das nuvens” descrito pela esposa é caracterizado pelo professor como “fazer ciência”. Não é à toa que em determinada época do colégio, André Clark Juliano, o seu filho mais velho, foi questionado a respeito da profissão dos pais e respondeu de uma forma que até hoje provoca risadas no pai – “A mamãe trabalha no consultório, mas o papai não trabalha, ele brinca no laboratório”. Juliano não hesita em concordar e diz que até hoje continua brincando. “O laboratório é isso mesmo. Agora que virou, nos últimos vinte, trinta anos, coisa séria. Quem fazia ciência na minha época era poeta. Com o passar dos anos, a ciência e tecnologia passaram a ocupar mais importância no desenvolvimento socioeconômico das pessoas e a ciência passou a ser uma profissão”.
Jean diz que o que sempre inspirou a sua admiração foi o entusiasmo demonstrado pelo marido. Os “defeitos”, que incluem a obsessão pelo trabalho, ficam em segundo plano. “Ele só descansa a mente quando sonha”, complementa Jean. Juliano diz não ter hobbies e que gosta mesmo é de desmontar e montar computadores nas horas vagas, além de uma boa ópera. A sua preferida é “La Bohème” de Giacomo Puccini. “Nessa ópera há uma cena em que Rodolfo, um poeta parisiense pobre, apaixona-se por Mimi e ao apresentar-se a ela diz: ‘Sou um poeta... e que faço? Escrevo!’ Claro que me identifico com a cena, pois sou um cientista e o que faço? Escrevo ciência”, comenta Juliano.
Apesar do trabalho sempre ter ocupado boa parte do tempo do professor, a presença na vida dos filhos nunca faltou. “O pai Luiz Juliano é nossa grande referência de vida. Sempre muito presente em todos os momentos mais importantes da nossa vida, nos propiciou uma visão de mundo que pauta nossas escolhas e de seus netos. De uma energia sem limites, nos mostrou o que significa o poder de perseguir as ideias que acreditamos”, comentam os filhos Pedro e André.
O médico de formação deixou de seguir a carreira médica em clínica e seguiu na área acadêmica. A paixão pela ciência e pela pesquisa se tornou maior, falou mais alto. O valor que ganhava com a pesquisa somado ao salário de Jean foram suficientes para fornecer educação e uma vida confortável para os filhos.
O desrespeito ao trabalho científico está entre as coisas que desagradam Juliano. É preciso respeitar a ousadia e o sonho do pesquisador, mas a “ciência ruim”, como ele chama o discurso científico sem resultado, o irrita profundamente. “Ciência para mim é sagrada. É conhecimento, é sério. Ciência não é de fora para dentro. É de dentro para fora”.
Se alguém pedir para que o professor defina o seu ambiente de trabalho em poucas palavras, ele é rápido: “Uma floresta mágica! Não é um emprego, um trabalho, você vive ali dentro. É algo que precisa de preservação. Por isso que ciência é séria, precisa tratar com muito respeito, atenção e reverência. Tem que respeitar a criação, a ousadia do pesquisador. Você entra, mas não sabe onde vai sair”.
Viver da ciência e para a ciência exige coragem. Coragem para responder às perguntas e interpretar os resultados, que nem sempre serão os que o pesquisador gostaria de encontrar. Para o professor, a maior dificuldade está em lidar com a liberdade que a pesquisa proporciona. “É preciso ter coragem de ser um indivíduo livre. Coragem para enfrentar a liberdade. Não é simples. Escolher por você mesmo o que gosta. E as perguntas chegam para serem respondidas. Não se deve ter medo delas, porque a ciência não tem receita”, finaliza Luiz Juliano.E quanto à aposentadoria e à possibilidade de deixar a pesquisa e a EPM/Unifesp – “Enquanto a Escola me quiser, estarei presente e só saio daqui morto”.