Flavia Kassinoff
Reeleita, em 2013, à presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC); professora honoris causa pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pesquisadora nível 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e condecorada com a Ordem Nacional do Mérito Científico. A professora Helena Bonciani Nader acumula prêmios e reconhecimento por toda uma vida dedicada à pesquisa e à ciência.
Sua intensa carreira acadêmica ganhou impulso em 1967 quando, ao voltar dos Estados Unidos – onde cursou o último ano do antigo colegial (atual ensino médio) –, ingressou no curso de Ciências Biológica/modalidade médica na Unifesp. “Voltei ao Brasil e entrei nessa instituição, onde fui contaminada irreversivelmente pelo vírus da pesquisa e da ciência. Não há vacina, nem medicação”, conta Helena.
Quatro anos depois, já graduada, começou a se envolver com a pesquisa para a pós-graduação. Conheceu, então, seu professor e orientador, Carl Von Peter Dietrich, que posteriormente se tornaria seu marido, um companheiro de vida e de profissão. Os dois tiveram uma filha, Júlia, que atualmente trabalha com pesquisa na área de educação.
Professora titular da Unifesp desde 1989, Helena mantém com a universidade uma relação que combina, de forma intensa, compromisso profissional e afeto. O vínculo é tão forte que provoca o ciúme da filha Júlia, para quem a Escola Paulista de Medicina ocupa o lugar de irmã mais velha.
Na avaliação da própria professora, a vida dedicada à pesquisa cobrou seu preço, em termos de realizações pessoais: “Deixei de tirar algumas férias. Deixei de fazer algumas viagens. Mas se pudesse fazer tudo de novo, faria sem pestanejar. Eu não me arrependo.”
Um traço característico de sua carreira foi, desde os anos de juventude, a rejeição à ideia de que há um muro, uma barreira entre ciência e sociedade. A militância política, sempre em defesa do desenvolvimento da ciência e da tecnologia na perspectiva dos interesses nacionais, levou-a a filiar-se à SBPC, em 1969. Na condição de associada à entidade, participou da resistência à ditadura militar, implantada no país em 1964. Atualmente, como presidente da sociedade, continua firme em suas propostas e defende com afinco a ciência e a educação de qualidade.
Durante a vida, Helena teve várias oportunidades de estudar e realizar pesquisas fora do país. Sempre optou por permanecer no Brasil, e hoje se orgulha disso. “Talvez lá fora eu fosse mais uma. Aqui eu pude ajudar a construir algo significativo.”
Com a agenda cheia de compromissos – com a academia e com a presidência da SBPC –, a professora afirma ser hoje difícil encontrar tempo para desenvolver atividades criativas na vida pessoal, das quais tanto gosta. Isso inclui a culinária, atividade que pratica sem seguir “receitinhas”, pois gosta de inovar. “A cozinha é um grande laboratório. Adoro experimentar novos temperos, ver no que dá.” Antes cozinhava com mais frequência, “quando Pedro (como chamava Dietrich) era vivo.”
Com uma carreira invejável e as posições importantíssimas que ocupa, não perde a simplicidade e a honestidade nas falas e no modo de ser. Diz que chegou aonde chegou por ser privilegiada pela família e pelos professores que teve, e sempre divide o mérito de suas conquistas com eles. “Meus pais me ensinaram que devemos buscar tudo que almejamos com ética e que não há limites para o que nós podemos fazer. E isso é verdade, nós é que colocamos nosso próprio limite”, conclui Helena.
Entreteses - Qual a sua avaliação sobre a pesquisa no Brasil hoje e quais foram os principais avanços nesse setor?
Helena Nader - A pesquisa no Brasil avançou muito. Na década de 70, nós éramos realmente periféricos. Havia pouca ciência, embora de boa qualidade, porém em um número baixo. Hoje, nós estamos, segundo informação que tive, na 14ª posição no ranking mundial de produção científica. Estávamos em 13ª, porém foram computados alguns resumos de congresso, e a Holanda nos ultrapassou. Mas, em termos de ranking mundial, estamos muito bem. É importante situar que a pesquisa institucionalizada no Brasil é recente. Ela começa na universidade, com a carreira docente deixando de ser algo esporádico e quando se cria a dedicação exclusiva. Isso faz diferença no impacto da ciência. A nossa ciência tem início no final do século XIX, em institutos, quando não havia universidades. A primeira é da década de 20 e, portanto, essa instituição não tem nem cem anos. Se compararmos com a Europa, onde as instituições de ensino mais novas têm quinhentos anos, onde há universidades de quase mil anos de existência, é fantástico ver aonde chegamos. Eu vejo a pesquisa no Brasil crescendo para patamares cada vez melhores. A qualidade da produção científica pode ser aferida pelo número de citações e pelo impacto das revistas onde os trabalhos são publicados. Então, de 70 para cá houve uma evolução, não só no número, mas também nos periódicos em que o Brasil passa a publicar. Isso prova que a ciência feita aqui tem mérito, tem qualidade. Agora, o Brasil “corre atrás” porque o resto do mundo não está parado. A China está crescendo bastante em produção científica e optou por construir universidades internacionais, algumas fortemente centradas em produção de ciência. Esse país tem uma vantagem com relação a nós porque investiu pesado em educação básica. Outra coisa é que os chineses hoje falam inglês. Nós ainda possuímos uma dificuldade nessa língua. Mas se o Brasil quiser, e isso é uma opção de nação, insisto nisso, ocupar o ranking mundial de ciência, fazer parte de um clube restrito, tem que passar a investir nisso. E também tem que mudar a legislação, porque hoje o maior gargalo para o pesquisador brasileiro é a lei vigente.
E. - Como presidente da SBPC, a senhora defende a proposta de destinação de parte dos royalties do petróleo para ciência e tecnologia. O projeto de lei aprovado pela presidente Dilma destina a maior parte dos royalties para educação. Como nós sabemos, educação e ciência são duas áreas complementares, mas no momento atual do país qual área carece de maior investimento?
H. N. - As duas. Educação básica não é só investimento financeiro, mas também o acompanhamento de um projeto real por parte do governo. A área da educação básica é um gargalo total. No Brasil aconteceu o seguinte: na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, começou-se a matricular obrigatoriamente toda criança na escola. Esse projeto iniciou-se naquela época com um ministro que propôs a descentralização de verbas para educação básica. Porém, com isso ele deixou a universidade à míngua. Foi péssimo. Então, não adianta apenas investir em um setor para depois investir em outro. É uma cadeia de investimentos. A proposta da SBPC, com relação aos royalties do petróleo, é dedicar 70% ao ensino básico, 20% para ao ensino universitário e 10% à ciência e tecnologia. O governo mudou e colocou 75% para a educação e 25% para a saúde. Então, o que estamos sugerindo é que destes 75% se faça essa repartição. Porque sem ciência e tecnologia não há inovação. O governo do presidente Lula e o da presidente Dilma primam pela inclusão. A expansão do Bolsa Família foi dramática, no sentido de trazer uma população que não tinha capacidade de compra para a sociedade de consumo. Isso significa que é preciso ter produto para essas pessoas. E esse produto, essa tecnologia, só será gerado com a ciência, ou continuaremos importando pacotes. O Brasil precisa decidir o que quer. Se quer de fato pautar a economia mundial, precisa fazer ciência. Porque sem ciência, não há tecnologia nem inovação.
E. - O que falta para o país avançar nesse sentido?
H. N. - São muitas coisas. Faltam leis, não no sentido de banalizar a legislação e a fiscalização da ciência. A fiscalização é muito importante, porém, não pode travar todo o resto do processo. Veja o caso da Unifesp: tivemos que devolver dinheiro à Finep e à Capes, pois a legislação inviabilizou o gasto. Então, uma instituição que faz ciência de qualidade e precisa devolver recursos, porque a legislação representou uma barreira, está no caminho errado. Temos uma legislação muito arcaica. A lei nº 8.666 (lei das licitações) não é adequada para quem faz pesquisa. O pregão pode até servir para comprar caneta, papel, mas não serve para comprar reagente para pesquisa, por exemplo. São esses impasses que estamos tentando mostrar ao Ministério Público e à Procuradoria Geral da União. Estamos conseguindo dialogar. Outro debate do qual venho participando bastante refere-se à instituição do RDC (regime diferenciado de contratações) para ciência e tecnologia, como foi feito para a Copa do Mundo e Olimpíadas. Se foi feito para construir estádios, por que não pode ser feito para educação e ciência? Agora, na minha visão (tenho insistido nesse aspecto e talvez seja por isso que cheguei a esse cargo na SBPC) educação e C&T são programas de Estado e não programas de governo. Independente de qual partido esteja no poder, esses programas devem continuar.
E. - E como o governo atual está tratando a questão da ciência?
H. N. - No primeiro ano de gestão, a presidente Dilma fez alguns cortes em ciência e tecnologia e nós questionamos. Agora, ela decretou que ciência e tecnologia são prioridades em seu governo. Tanto é que criou um projeto gigantesco, denominado Ciência sem Fronteiras para enviar estudantes de todos os níveis, do ensino médio, graduação, pós-graduação e pós-doutorado, para estudar no exterior. É um programa fantástico, mas infelizmente a mídia só ressalta o lado negativo. Todo projeto está sujeito a acertos e erros, mas, nesse caso o balanço para o lado positivo é muitas vezes maior do que o lado negativo. O projeto foi muito criticado por não englobar as ciências humanas e sociais, mas bolsas de estudos para essas áreas já existem. É um projeto com começo, meio e fim, feito para quatro anos. Neste ano atingirá 50 mil bolsas. Na SBPC fiz uma reunião trazendo estudantes de diferentes regiões do Brasil, que voltaram da graduação e da pós, em diferentes áreas. Foi fantástico, estava lotado, havia gente sentada no chão. É incrível ver os depoimentos desses jovens, principalmente os de graduação, que têm uma experiência bem diferente no exterior. A graduação brasileira é muito arcaica. O sistema de graduação não se atualizou, continuou o mesmo desde o século XIX. Não tem flexibilidade. Então, temos que nos posicionar dentro de um mundo que hoje é globalizado, e isso está acontecendo. Esses jovens vão chegar trazendo ideias para o país.
E. - Como a senhora avalia a produção científica da Unifesp atualmente e qual é seu impacto dentro e fora do país?
H. N. - A produção científica é muito boa. Recentemente foi lançado um livro intitulado A pós-graduação e a evolução da produção científica brasileira, que provém de uma tese de Elenara Almeida, sob a orientação de Jorge Almeida Guimarães (presidente da Capes). No levantamento efetuado, dois pesquisadores da instituição ocupam o primeiro e o segundo lugar no ranking de publicações científicas entre 2000 e 2009 no país. Então, nós estamos “muito bem na foto”, vamos dizer assim. Mas isso é porque temos uma tradição, e essa tradição não se pode perder. A Unifesp, que hoje tem praticamente todas as áreas do conhecimento, começou como uma escola de Medicina privada, mas desde sempre acreditou na ciência. Os professores José Leal Prado e José Ribeiro do Valle, faziam pesquisa no porão do Hospital São Paulo, no segundo subsolo. E aquilo foi contaminando o ambiente acadêmico. Então, o diferencial do estudante da Escola Paulista de Medicina era o envolvimento com a pesquisa. Depois, foi criada a universidade e outros programas de pós foram inaugurados. É óbvio que os programas mais recentes demoram um tempo para se firmar. Não se pode esperar programas com nota 7 nos campi que ainda não têm dez anos de existência. É paulatino. Mas foram contratados professores altamente qualificados para coordenar esses cursos. Essa foi outra matéria pela qual nós brigamos na SPBC, quando o governo propôs uma lei que tirava a obrigatoriedade do doutorado para ser docente de universidade federal. Nós aqui estamos contratando só pós-doutores. A ideia da lei ia na contramão, mas a SBPC reverteu isso. Nossa pós-graduação é muito boa. Alguns programas têm avaliação média, com notas 3 e 4, outros têm nota 5 e há os de excelência, com notas 6 e 7, atribuídas pela Capes. A ciência que é produzida na instituição é reconhecida internacionalmente.
E. - E a senhora acompanhou pessoalmente a história da pós-graduação na universidade...
H. N. - Sim, eu pertenci às primeiras turmas. O programa de pós começou em 1970, defendi o doutorado em dezembro de 1974. Quem criou esse programa foi meu esposo, já falecido, professor Dietrich. Ele criou a pós-graduação com todas as regras e, depois do programa de Biologia Molecular, nasceram os outros. Surgiram os de áreas clínicas, o de Microbiologia e Imunologia, entre outros. Mas o primeiro foi o de Biologia Molecular. E o primeiro doutor em Bioquímica foi Jorge Almeida Guimarães, que hoje é o presidente da Capes.
E. - Como está a participação das mulheres no setor da pesquisa? É uma participação expressiva? Aumentou nos últimos anos?
H. N. - As feministas não vão gostar muito. Por um lado, a participação das mulheres na universidade representa maioria absoluta, já ultrapassou a dos homens. Mesmo nas engenharias, elas também os estão alcançando. Porém, o que ainda não há é um número elevado de mulheres em posições de comando. Na universidade, inclusive, são as que menos desistem dos cursos. A evasão masculina é muito maior que a evasão feminina. Isso é um dado. Na pós-graduação, há muitas mulheres, mas nos cargos de comando e de chefia elas são minoria. Isso é uma situação que precisa ser revertida, mas leva tempo. Os índices brasileiros são melhores que os norte-americanos. Na Academia Brasileira de Ciências, a participação de mulheres está por volta dos 15%. Na instituição americana é de 9%. Mas ainda estamos aquém do ideal. Acho que as mulheres têm de ir à luta, porque ninguém irá trazer essa conquista numa bandeja. Acredito sinceramente que a adoção de cotas não seria bom. Sou a favor de ações afirmativas. Quando pró-reitora de graduação, criei o programa da Unifesp de ações afirmativas, para negros e índios, oriundos de escola pública. Era um programa incrível. Não sou contra as cotas, mas creio que para nós, mulheres, chegarmos aos cargos de chefia, não terá que ser por esse caminho. Temos que lutar e mudar esse paradigma.
E. - A senhora é a terceira mulher que ocupa a presidência da SBPC. Durante sua trajetória profissional, chegou a deparar-se com alguma situação na qual teve que lidar com o machismo?
Nader - Não senti essa discriminação. Agora, sou privilegiada pela família que tive, pela EPM, pelos meus professores, que sempre me colocaram que podia fazer o que quisesse, era só me dedicar a determinado objetivo. Talvez por isso não tenha sentido.
E. - Como foi citada a questão das cotas, gostaria de saber qual modelo a senhora avalia como ideal?
H. N. - Eu vejo da seguinte forma: o que foi implantado no Brasil, foi de cima para baixo, sem uma análise de todos os projetos que já estavam em andamento no país. Como se as universidades federais estivessem isoladas em um “castelinho”, não vendo o problema da inclusão pela renda e pela cor. Que há necessidade de garantir cotas pela questão da cor, não há dúvidas. O Brasil foi o último a libertar seus escravos e nunca admitiu isso. Mas destinar 50% das vagas a alunos específicos não é a resposta. Porque varia, depende muito do ambiente onde a universidade está inserida. Esperava que o governo tivesse acompanhado os projetos que estavam sendo avaliados. Houve resultados incríveis. Nós, aqui na Unifesp, não tivemos nenhum problema na implantação das ações afirmativas. E fomos a primeira em nível federal.
E. - Já que estamos falando de ações do governo, temos atualmente a questão do programa Mais Médicos que está causando uma polêmica na comunidade médica...
H. N. - Eu até já escrevi sobre isso – o texto foi publicado no Correio Braziliense. A SBPC já se posicionou contrária, porque passou por cima de todo um contingente de pessoas dedicadas ao estudo de como deve ser a graduação de Medicina. O tema não foi discutido. É um absurdo total. Porque existe a Associação Brasileira de Educação Médica, extremamente ativa, e o sindicato, que não foram consultados. Mas o mais sério é o fato de o Conselho Nacional de Educação, que é o responsável por pensar a graduação, também não ter sido consultado. Então temos um problema grande.
E. - Ainda com relação a questões polêmicas, há tempos existe o debate sobre certas tendências religiosas que visam impedir o ensino do evolucionismo e promover o ensino do criacionismo nas escolas. Qual é a sua posição?
H. N. - Não é polêmica, não. A SPBC tem uma posição bem clara a respeito. Religião é religião, e ciência é ciência. A ciência não vai interferir na religião, mas a religião não pode interferir na ciência. Cada indivíduo tem em seu foro íntimo, a religião ou a não religião que vai seguir. Agora, o que não pode ocorrer é a religião intervir no dado científico. Criacionismo, nós somos frontalmente contra. Com relação a isso, o Brasil é um país laico. Sendo um país laico, o ensino da religião teria que ser optativo, e deveriam ser oferecidas aulas para todas as religiões. Por que não entrariam, por exemplo, as religiões africanas? Não se pode privilegiar um grupo em detrimento do outro. Mas a religião tentar escrever a história da ciência, isso não é permitido. A religião existe de per si e depende de uma crença. A ciência não é fé, não é crença, são dados. Não dá para negar a evolução. Criacionismo não é aceito. Essa é uma posição muito clara.