Ana Cristina Cocolo
Valquíria Carnaúba
Professora titular em Saúde Coletiva do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo e ex-pró-reitora de Extensão (2009-2011) da Unifesp, a socióloga e cientista política Eleonora Menicucci de Oliveira assumiu há três anos o cargo de ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Em 2 de outubro, a reforma ministerial e administrativa anunciada pela presidente Dilma Roussef uniu a secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial, a de Direitos Humanos e a de Políticas para as Mulheres em uma única pasta, criando-se o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos. Com isso, Eleonora passou a ocupar o cargo de secretária especial do órgão no qual havia atuado como ministra.
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sua luta pelo posicionamento das mulheres na sociedade começou a partir da militância de esquerda nos anos 1970. Sofreu perseguição política, tendo sido presa e torturada durante a ditadura militar; nessa época foi também privada de criar a filha, então com um ano e dez meses, de quem ficou separada por quase três anos.
Feminista convicta, essa mineira, natural de Lavras, dedicou toda a trajetória acadêmica a pesquisas que tratam das condições de vida das mulheres brasileiras nas mais variadas esferas: direitos reprodutivos e sexuais, saúde integral, envelhecimento, violência de gênero, aborto, direitos humanos e políticas públicas. Provocada por Entreteses, a secretária expõe o trabalho que vem desenvolvendo e as dificuldades para desconstruir a cultura da violência de gênero em nosso país.
Saúde da mulher
Entreteses - Qual sua visão sobre as políticas nacionais voltadas à saúde integral da mulher?
Eleonora Menicucci de Oliveira - A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Pnaism) foi reelaborada em 2003, uma vez que o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Pnaism) é datado de 1983, quando uma equipe técnica definiu a importância de redesenhar as diretrizes que orientam as políticas de saúde da mulher. O processo de elaboração da Pnaism contou com a parceria dos diferentes departamentos, coordenações e comissões do Ministério da Saúde. Incorporou as contribuições dos movimentos feminista, de mulheres negras e de trabalhadoras rurais, das sociedades científicas, pesquisadores e estudiosos da área, ONGs, gestores do SUS e agências de cooperação internacional. Por fim, a referida política foi submetida à apreciação do Conselho Nacional de Saúde e da Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher (Cismu). A Pnaism reflete o compromisso com a implementação de ações e serviços de saúde que contribuam para a garantia dos direitos humanos das mulheres e reduzam a morbimortalidade por causas previsíveis e evitáveis. Incorpora, em um enfoque de gênero, a integralidade e a humanização da atenção à saúde como princípios norteadores, bem como consolida os avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. Reconhece as mulheres como sujeito de direitos, com necessidades que extrapolam o momento da gestação e parto, com ações que lhes proporcionam a melhoria das condições de saúde em todos os ciclos de vida. É um instrumento de apoio às secretarias de saúde dos Estados e dos municípios. O responsável pela execução dessa política é o Ministério da Saúde. A SPM apoia, contribui e busca sua implementação.
E. Infarto, AVC, diabetes, gripe e câncer lideram o ranking das principais causas de morte entre mulheres, segundo relatório de 2012 do Ministério da Saúde. Como combater o problema?
E.M.O. O maior desafio é a universalização das ações do Pnaism. O que significa implantá-las com qualidade no atendimento em todos os municípios. Temos um sistema federativo – União, Estados e municípios – que é responsável pela implementação dessas ações e segue as diretrizes da descentralização do SUS. Além disso, é importante que os municípios e Estados tenham organismos de políticas para as mulheres, que exerçam parcerias com as secretarias de saúde e capacitem os profissionais para atender a todas as demandas desse contingente, respeitando suas singularidades. Por fim, destaco o papel de controle social dos conselhos de saúde e das próprias mulheres.
Violência contra a mulher
E. De acordo com o Mapa da Violência 2012, de 1980 a 2010 foram assassinadas no país cerca de 91 mil mulheres, sendo 43,5 mil só na década de 2000. O número de mortes nesses 30 anos passou de 1.353 para 4.297. A que a senhora atribui esses índices no Brasil?
E.M.O. Com uma taxa de 4,4 assassinatos para cada 100 mil mulheres, o Brasil ocupa a sétima posição em um ranking de 84 nações. O feminicídio é um crime hediondo, caracterizado pela morte violenta de mulheres por razões de gênero. Essas altas taxas costumam ser acompanhadas de elevados níveis de tolerância à violência contra as mulheres, e ainda encontramos alguns obstáculos para superar essa situação, tais como: operadores do sistema de justiça que reproduzem estereótipos e práticas que revitimizam as mulheres e impedem o acesso à justiça e à reparação das vítimas; negligência e irregularidades na produção de provas, com ênfase na prova física e testemunhal; pouca credibilidade na palavra da vítima e de seus familiares. Por isso, tem grande importância a sanção da Lei 13.104, em março deste ano, como forma de visibilizar e qualificar o fenômeno do feminicídio no Brasil. É uma clara postura de tolerância zero à violência contra as mulheres.
E. Em março, o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) divulgou que a Lei Maria da Penha fez diminuir em 10% a taxa de homicídio contra as mulheres dentro das residências. No entanto, essa redução não ocorreu de modo uniforme no país; a explicação, de acordo com o estudo, está ligada aos diferentes graus de institucionalização dos serviços de proteção às vítimas de violência doméstica. Qual a sua avaliação?
E.M.O. A pesquisa do Ipea considerou os dados sobre o homicídio de mulheres não apenas do ponto de vista do aumento ou diminuição da taxa. Foi feita uma análise contrafatual para avaliar, caso não houvesse a lei, se os homicídios teriam crescido mais do que foi observado. Como a avaliação foi positiva – haveria um crescimento de 10% na taxa de homicídio de mulheres –, concluiu-se que a legislação é efetiva. O estudo também aponta como fatores relacionados à efetividade da Lei Maria da Penha a responsabilização dos agressores (que não mais se enquadrariam na Lei 9.099/95) e a previsão legal das medidas protetivas para a mulher e agressor ou agressora.
No que se refere à institucionalização dos serviços especializados de enfrentamento à violência contra as mulheres, dados levantados em junho de 2015 apresentam a rede de atendimento à mulher composta de 1.565 serviços especializados: serviços de abrigamento (79), centros de referência de atendimento à mulher (240), delegacias especializadas de atendimento à mulher/DEAMs (370), núcleos/postos de atendimento à mulher nas delegacias comuns (131), juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher (80), varas adaptadas de violência doméstica e familiar (22), núcleos de defesa dos direitos da mulher das defensorias públicas (44), promotorias especializadas e núcleos de gênero dos ministérios públicos (59), serviço de promoção da autonomia econômica de mulheres em situação de violência (2), unidades móveis de atendimento (54), serviços de saúde especializados no atendimento à violência sexual (482) e unidades da Casa da Mulher Brasileira (2).
Atualmente, os 1.565 serviços especializados estão distribuídos por região em 657 dos municípios brasileiros: Nordeste (302), Norte (186), Sul (260), Sudeste (480) e Centro-Oeste (337). Frisamos a importância das 54 unidades móveis entregues pelo governo federal aos Estados para a orientação e proteção às mulheres do campo, da floresta e das águas em situação de violência. Desde 2014, já foram realizados 35.000 atendimentos de mulheres do campo, da floresta e das águas em 343 municípios.
E. Em 2014, o Ligue 180 registrou um aumento de 18% nas denúncias de violência sexual em relação ao ano anterior. Qual seria a explicação para esse número?
E.M.O. Esse dado não representa necessariamente um aumento do número de casos, mas de denúncias. Percebe-se maior conscientização da população, em especial das mulheres. Segundo pesquisa do DataSenado, 89% das mulheres entrevistadas garantiram que, caso presenciassem um ato agressivo contra uma mulher, fariam denúncia. Nessa situação, a pesquisa quis saber quem a entrevistada procuraria primeiro. As delegacias – comum e da mulher – foram as opções majoritariamente apontadas por 62% e 21%, respectivamente.
E. Quais foram os resultados da portaria interministerial que estabelece um atendimento integrado às vítimas de violência doméstica e da integração da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) com os números de emergência 190 (Polícia Militar) e 193 (Corpo de Bombeiros)?
E.M.O. Desde a criação do Programa Mulher, Viver sem Violência, em 2013, a SPM e os Ministérios da Saúde, da Justiça e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome têm realizado ações conjuntas visando à humanização do atendimento e à integração dos serviços. Entre os principais resultados, cabe citar: a definição dos protocolos e diretrizes de atendimento da Casa da Mulher Brasileira; a definição de indicadores dos registros administrativos dos serviços das diferentes áreas (para subsidiar o planejamento e avaliação do programa); a implantação de unidades da Casa da Mulher Brasileira e sua integração com os demais serviços da rede de atendimento; e a humanização do atendimento às mulheres vítimas de violência sexual nos serviços de saúde. Em maio de 2015, foram realizados o cadastramento e a classificação de 457 serviços no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES), dos quais 56 dizem respeito à interrupção da gravidez nos casos previstos em lei e 149 têm caráter de referência para a atenção integral nos casos de violência.
Foram realizados três cursos de capacitação, com a presença de 240 profissionais (da área da saúde e dos IMLs); foi também publicada a Portaria Interministerial nº 288, de 25 de março de 2015, da SPM e Ministérios da Justiça e da Saúde, que estabelece orientações para a organização e integração do atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e pelos profissionais de saúde do SUS, quanto à humanização desse atendimento e ao registro de informações e coleta de vestígios. Também acabamos de publicar a norma técnica de atenção humanizada às pessoas em situação de violência sexual com registro de informação e coleta de vestígios. Quanto ao Ligue 180, a Central de Atendimento à Mulher, trata-se de um serviço de utilidade pública, gratuito e confidencial, oferecido pela SPM desde 2005. Além de receber denúncias de violência e reclamações relativas aos serviços de atendimento, informando as mulheres sobre seus direitos e a legislação vigente, o Ligue 180 orienta as pessoas que buscam a central sobre os telefones de emergência disponíveis, tais como o 190, o 192 e o 193.
E. Quais são as políticas públicas em que a pasta está trabalhando para prevenir a violência?
E.M.O. A prevenção passa pela desconstrução da cultura da violência com seus estereótipos de gênero, que é alimentada pelo machismo. A SPM apoia e realiza campanhas continuadas, como Compromisso e Atitude ou Quem Ama Abraça – Fazendo Escola, e programas de informação sobre direitos, como os veiculados pelo Ligue 180 e Casa da Mulher Brasileira (CMB). Além disso, foram repassados recursos para financiamento de campanhas em Estados e municípios. A SPM tem parceria com o Ministério da Educação, visando à formação de educadores na temática da violência contra as mulheres, como no caso do Programa Gênero e Diversidade na Escola. Foi também incluído na CMB um serviço voltado para a autonomia econômica das mulheres. Embora as pesquisas demonstrem que a dependência econômica não seja a única causa da violência, essa questão pode ser um dos entraves para dar fim ao ciclo da violência. Também foram entregues a cada um dos Estados duas unidades móveis de atendimento, que têm por objetivo (entre outros) orientar as mulheres do campo e da floresta sobre seus direitos e sobre a Lei Maria da Penha, além de prestar atendimento. Temos também o barco-agência da Caixa Econômica Federal, que leva esses serviços às ribeirinhas do arquipélago do Marajó.
E. As campanhas têm mostrado alguma mudança no comportamento dos homens?
E.M.O. É difícil mensurar seu impacto. Apesar de não podermos estabelecer uma relação de causa e efeito, é possível notar, no Ligue 180, uma mudança no perfil das pessoas que ligam relatando as situações de violência. Houve a diminuição do número de relatos informados pela própria vítima, concomitante a um aumento do número de amigos, familiares e vizinhos. Avaliamos como um indicativo da maior conscientização da sociedade para o fenômeno da violência contra as mulheres e para a desconstrução da concepção da violência (em especial, da violência doméstica) como um assunto privado. Outro dado que corrobora essa mudança cultural diz respeito aos indicadores da pesquisa do DataSenado, segundo a qual 97% das mulheres entrevistadas concordam em que o agressor deve ser processado, mesmo contra a vontade da vítima. Apenas 2% acham o contrário.
E. A reincidência não é incomum nos casos de violência contra a mulher. O que falta para garantir a segurança da mulher ameaçada?
E.M.O. Com a Lei Maria da Penha, a mulher passa a contar com importantes mecanismos que visam à garantia de sua segurança: a criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher e as medidas protetivas de urgência. Além disso, a lei prevê o fortalecimento da rede de atendimento à mulher em situação de violência (casas-abrigo, centros de referência de atendimento à mulher, defensorias e promotorias especializadas e, mais recentemente, a Casa da Mulher Brasileira). No tocante aos agressores, a lei estabelece a necessidade de criação de serviços de responsabilização e educação do agressor. Temos também um importante marco legal que é a Lei do Feminicídio, de março de 2013. Espera-se que, com a tipificação penal, seja possível visibilizar o problema social em torno dessas mortes. Destacamos, ainda, a ampliação para a área rural da Patrulha Maria da Penha, cujas diretrizes estão sendo definidas por grupo de trabalho criado em agosto deste ano. A patrulha atende às reivindicações da Marcha das Margaridas, como forma de enfrentar a violência contra as mulheres e o preconceito de cor, raça, gênero e etnia, além de reduzir as desigualdades sociais.
Aborto, gravidez e mortalidade materna
E. Existem registros sobre o número de internações e mortes, por ano, em função dos abortos clandestinos?
E.M.O. Não temos dados sobre os abortos clandestinos. Existem dados oficiais e confiáveis do DataSUS, ano a ano. De acordo com o levantamento dos três primeiros meses do ano, 47.452 mulheres em situação de abortamento ficaram internadas no SUS, sendo 22.411 por aborto espontâneo, 416 por razões médicas e 24.625 por outras gravidezes que terminaram em aborto. Em todo o ano de 2014 foram 206.572 internações, sendo 101.575 por aborto espontâneo, 1.581 por aborto devido a razões médicas e 103.416 por outras gravidezes que terminaram em aborto. Existem metodologias de cálculo, mas as estimativas da magnitude dos abortos divergem conforme as técnicas e fontes utilizadas.
E. O Conselho Federal de Medicina estabelece até o terceiro mês de gestação como limite para a prática do aborto. A tentativa de implementar o atendimento às mulheres no SUS, baseada nessa recomendação, não foi em frente. Como a senhora percebe essa questão?
E.M.O. No SUS existe a norma técnica de atenção humanizada ao abortamento, com diretrizes gerais de acolhimento, orientação e atenção clínica. Essa norma fornece aos profissionais subsídios para que possam não só oferecer um cuidado imediato às mulheres em situação de abortamento, mas também, na perspectiva da integralidade do atendimento, disponibilizar alternativas contraceptivas, evitando o recurso a abortos repetidos. Para mulheres com abortamentos espontâneos e que desejem nova gestação deve ser garantido um atendimento adequado às suas necessidades. Além da publicação de normativas sobre a organização de serviços de referência para a interrupção de gravidez nos casos legais no Brasil (estupro, risco de morte da mãe e anencefalia), há o cadastramento no Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES) – Portarias nos 485/2014 e 618/2014 –, que dispõem sobre o funcionamento desses serviços e garantem sua divulgação para toda a sociedade por meio do acesso ao SCNES no site: http://cnes.datasus.gov.br/ .
Além disso, a Portaria nº 485/2014 estabelece as competências dos órgãos gestores da saúde em âmbito federal, estadual e municipal para organização e funcionamento desses serviços. Atualmente, em nível nacional, constam 63 serviços de referência para interrupção de gravidez nos casos previstos em lei cadastrados no SCNES.
E. Quantos serviços atualmente existem no país para atender aos casos legais de aborto? Quais são os Estados que precisam de mais atenção?
E.M.O. O Ministério da Saúde lançou em 2 de abril de 2014 uma portaria que redefine o funcionamento do serviço de atenção às pessoas em situação de violência sexual no âmbito do SUS, faz a classificação de serviços e determina como estes serão organizados e monitorados. No cadastro de serviços especializados, nos casos previstos em lei, constam 63 modalidades. Temos que fortalecer os Estados da Região Norte, buscando a interiorização do atendimento às mulheres.
E. A maioria da população brasileira é contra o aborto, conforme indicam as pesquisas de vários institutos (Ibope, Vox Populi e DataSenado). Convém prevalecer o desejo da maioria ou o assunto deve ser considerado de saúde pública e ser decidido pelo Estado?
E.M.O. É uma questão de saúde pública.