Soraya Smaili
Reitora da Unifesp
Momentos de crise têm o mérito de interpelar as instituições e os indivíduos pertinentes que, em princípio, teriam o dever de apontar as soluções mais adequadas para o problema em pauta. Não é durante a normalidade amena da vida cotidiana que as aptidões e competências são testadas, mas sim em épocas que demandam respostas emergenciais. À primeira vista, tudo isso é evidente. Mas, muitas vezes, ocorrem situações de crise que sequer são reconhecidas enquanto tais – por incompetência técnica, por interesses políticos e ideológicos ou por falta de sensibilidade; não importam os motivos.
A questão da responsabilidade diante da crise foi apontada, há milênios, por Hipócrates (c. 460–377 a.C.). Para o “pai da Medicina”, caberia ao médico o dever de identificar a ocorrência de um estado crítico a partir dos sintomas apresentados pelo paciente, para, em seguida, fazer o diagnóstico e recomendar o tratamento. Reconhecer a existência de uma crise, portanto, é um primeiro passo necessário para resolvê-la. A tradição aberta por Hipócrates configura uma ética, uma forma de agir que, obviamente, extrapola os limites da prática médica e deve ser respeitada pelo profissional, qualquer que seja a sua área de atuação.
A crise do sistema de abastecimento de água no Estado de São Paulo constitui um momento que, no âmbito da Administração Pública, interpela o governo e seus agentes e, no campo da compreensão científica do fenômeno e formulação de propostas, indaga a universidade pública e os seus pesquisadores. A instituição pública de ensino superior vem tentando cumprir com o seu papel.
Há anos, os pesquisadores, professores e especialistas das universidades públicas federais e estaduais, em especial os paulistas, vêm alertando para a necessidade de agir com o objetivo de evitar a crise hídrica. Tradicionalmente, boa parte das pesquisas sobre o tema é realizada no interior dessas instituições. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) financia estudos realizados segundo rigorosos padrões nacionais e internacionais.
Vários encontros, seminários e simpósios produziram propostas que poderiam ter sido melhor aproveitadas pelo poder público, além de contribuir com os esforços feitos por entidades ambientalistas e institutos especializados, incluindo o Conselho da Cidade de São Paulo, a Academia Brasileira de Ciências e a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental. Apesar de todas essas manifestações e da amplitude da crise, as universidades não obtiveram as informações necessárias e suficientes, por parte dos órgãos gestores da administração pública, para determinar o impacto exato implicado pela crise hídrica.
As universidades públicas querem, podem e devem contribuir e oferecer soluções no melhor interesse do conjunto da sociedade. Além do plano emergencial para nossas próprias instituições, propomos a instalação de um Painel Técnico-Acadêmico de Recursos Hídricos, com a participação das universidades estaduais (USP, Unesp, Unicamp) e federais (Unifesp, UFSCar e UFabc) em São Paulo, além do IFSP. Sua missão é a de apresentar estudos concretos e de relevância científica e tecnológica sobre a questão hídrica. As primeiras providências e medidas aprovadas no âmbito do painel incluem:
1. Demandar e ajudar a implantar um Plano de Contingência geral e coordenar os planos de cada universidade e seus órgãos associados (hospitais, clínicas, bibliotecas, estações);
2. Obter e contribuir para um Plano de Comunicação da Crise, com o objetivo de manter a população em geral, e em especial a comunidade universitária, plenamente informada;
3. Indicar e ajudar a implantar o Programa de Gestão e de Demanda na região da macrometrópole;
4. Verificar e fazer cumprir o monitoramento integrado da quantidade e da qualidade das águas;
5. Obter e trabalhar para adquirir planos de ações de incentivo financeiro e solicitar linha de crédito federal e estadual para adequação das estruturas ao contingenciamento;
6. Reformular e dinamizar as atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, juntando especialistas de nossas universidades e associações científicas.
Exagerando um pouco no uso da técnica interpretativa, em abril de 1959, John Kennedy afirmou: “Quando escrita em chinês, a palavra crise é composta por dois caracteres. Um representa perigo e o outro representa oportunidade”. A afirmação de Kennedy, repetida inúmeras vezes nas décadas seguintes, nos mais variados cenários, pretendia mostrar que situações críticas também abrem novas possibilidades de crescimento. O “exagero” vem do fato de que o caractere chinês “ji”, ao qual ele se refere, pode significar muitas outras coisas, até mesmo “oportunidade”. Mas a ideia é boa.
Cabe ao governo, em todos os níveis, aproveitar o momento para valorizar a universidade pública, transformá-la em parceira e estimular a comunidade científica em nome dos interesses maiores da sociedade brasileira. Nós, junto com Hipócrates, fazemos a nossa parte.