Comissão da Verdade Marcos Lindenberg encerra os trabalhos
Ao longo de três anos, foram vasculhados cerca de 5 mil documentos produzidos pelos órgãos de repressão, além das entrevistas realizadas com professores, funcionários e todos os que, direta ou indiretamente, viveram as consequências da ditadura na Unifesp
Ana Nemi
Inauguração do Instituto de Biologia pelo então diretor Marcos Linderberg (de costas) A placa não pôde ser encontrada pela Comissão da Verdade
A foto ao lado talvez possa simbolizar as trajetórias possíveis dos trabalhos de uma Comissão da Verdade. O diretor da Escola Paulista de Medicina (EPM), e responsável pela Reitoria da UFSP (Universidade Federal de São Paulo, instituída pela Lei 3.835/1960), professor Marcos Lindenberg (1901-1979), de costas, descerra a placa que inaugura o Instituto de Biologia, em 14 de setembro 1963. A inauguração marcava os 30 anos de fundação da escola e as comemorações propostas pelo seu diretor incluíram um filme, intitulado Uma Escola de Médicos, dirigido por J. B. Duarte e E. Szankovski.
O narrador do pequeno filme em preto e branco de 9 minutos, tendo ao fundo imagens aéreas do quadrilátero localizado entre as ruas Napoleão de Barros, Loefgren, dos Otonis e Borges Lagoa, alternadas com imagens de aulas em laboratórios e de atividades livres dos alunos, além do Hospital São Paulo, apresentava uma EPM que articulava sua experiência à marcha pela emancipação do Brasil e pela superação do subdesenvolvimento.
O texto produzido pelos autores do filme é bastante elucidativo, pois afirmava o papel da UFSP na solução dos graves problemas do Brasil e, especialmente, aqueles relacionados ao atendimento à saúde dos brasileiros: “Esta será uma universidade nova, aquela em que o povo não se sentirá um estranho, mas realidade única e razão mesma da sua existência. Aquela Escola Paulista de Medicina será a universidade do povo, de todos os pontos do país e levará o país ao seu magnífico destino histórico”.
Tratam-se, portanto, de dois documentos, uma fotografia e um filme/documentário, entre os muitos perscrutados e estudados pela Comissão da Verdade, que revelam os sentidos da experiência vivida pela EPM no início dos anos de 1960. A fotografia, guardada no acervo do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (Cehf i/Unifesp), é bastante elucidativa das poucas marcas que a experiência da UFSP deixou na EPM: a placa simplesmente não se encontra mais, embora o filme tenha sido guardado por membros da comunidade. O filme, aliás, mostra o momento do descerramento da placa e os discursos que aconteceram no dia. As palavras do narrador citadas acima, e que encerram a película, assim como o incômodo pela busca da placa jamais encontrada nos espaços da escola, suscitaram reflexões as mais diversas entre os comissionados.
Três anos de pesquisa
Os depoimentos dos membros da comunidade, junto aos documentos levantados e estudados ao longo de quase três anos de pesquisa, permitiram reconstruir esta experiência e, acima de tudo, compreender as muitas propostas e projetos para a escola e para o país que se entroncavam nas reuniões da congregação, nas assembleias do Centro Acadêmico Pereira Barreto (CAPB) e nas ações dos servidores da escola e dos funcionários do hospital naquele início de década.
Se o texto da película de Duarte e Szankovski permite afirmar a inserção de Lindenberg nos debates desenvolvimentistas da época, a leitura das atas da congregação revela outras possibilidades de entendimento dos desejos da comunidade epemista no momento de fundação da UFSP. No mesmo sentido, se em uma primeira visada parecia ser assertivo considerar um grupo mais progressista afeito à UFSP e um grupo mais conservador contrário à UFSP - grupos que se dividiriam entre os que sofreriam as agruras do golpe de 1964 e aqueles que apoiariam o golpe -, os depoimentos recolhidos e os outros documentos estudados complexificaram as tintas desta narrativa.
Houve apoiadores do golpe que defendiam a formação da UFSP e a inserção da EPM nela, e houve aqueles para quem o golpe significou a possibilidade de sepultar a experiência da UFSP. O relatório que entregaremos à comunidade nos próximos meses pretende enfrentar esta complexidade de interpretações possíveis e, a partir da reconstrução da experiência da escola nos anos anteriores ao golpe, durante a ditadura, nos anos de luta pela abertura e nos primeiros anos após a queda do regime militar, compreender trajetórias e ações estabelecendo um diálogo com a Unifesp que queremos para os dias de hoje.
O trabalho dos comissionados consistiu basicamente em colocar depoimentos e documentos, produzidos por diferentes atores sociais e em diversos suportes (discursos, artigos, legislação, documentação produzida pela repressão, periódicos do CAPB, fotografias, etc.) em diálogo. Um diálogo profícuo em que documentos e depoimentos apresentaram sombras e luzes que, confrontadas pelos comissionados, permitiram compreender melhor as tintas e sentidos da experiência da comunidade no período referido.
Documentos e narrativas
As mais de cinco mil páginas de documentação produzidas pela repressão, notadamente Serviço Nacional de Informação, Departamento de Ordem Pública e Social e Operação Bandeirantes, em que são citados membros da comunidade epemista, foram estudadas considerando os fortes constrangimentos a que todos eram submetidos. Aqui se está falando, evidentemente, de tortura física de presos, e também de tortura psicológica contra a população como um todo, resultante do medo provocado pela ditadura.
A memória de presos e perseguidos, e de seus colegas e amigos, permitiu, assim, confrontar a documentação produzida pela repressão, uma documentação da qual se deve desconfiar sempre, inclusive se lembrarmos que os arquivos da ditadura não foram ainda integralmente abertos para consulta pública. Se para muitos intelectuais a memória pode trair o entendimento da circunstância estudada, porque sempre sujeita às injunções de sentimentos nem sempre claramente apreendidos pelos sentidos da razão, para esta comissão, as idiossincrasias da memória foram o esteio a partir do qual se pretendeu elucidar a documentação. E foi exatamente enfrentando as dificuldades de se considerar a memória como conteúdo da história que se pretendia narrar, que enfrentamos, também, os sentidos possíveis da verdade.
Onde está a verdade?
O que se espera de uma comissão da verdade é que ela dê voz às muitas interpretações da experiência vivida e que aponte claramente as injustiças que foram cometidas. E então se poderia dizer que não há verdade? Não, houve perseguição, houve membros da comunidade que foram afastados do convívio com os colegas porque professavam ideias consideradas subversivas, houve membros da comunidade que pretenderam afastar da comunidade seus desafetos (na Ata ao lado), e isso entre professores, funcionários e alunos.
A verdade, portanto, não supõe dizer quem tem ou não razão pelo conteúdo das suas ideias, mas apontar aqueles que aceitaram conviver na diferença e aqueles que preferiram supor a diferença como argumento para a exclusão e para a implantação de um regime de exceção que de todos roubou a liberdade, além de ter promovido enormíssima concentração de renda.
Os documentos e depoimentos, desta forma, apontaram possibilidades as mais ricas e diversas de reconstrução da experiência da escola durante a ditadura. Se parecia inicialmente que poderíamos encontrar um fio de meada e, tal como a Ariadne da mitologia grega, escrever uma narrativa que nos indicasse o caminho, entretanto a pesquisa nos pregou boas peças: havia muitas pontas soltas, muitos fios e caminhos possíveis, e ainda os há; nosso esforço se constituiu em tentar contemplar todas as trajetórias, pontas e fios possíveis. Assim, as histórias que procuramos narrar com enorme respeito e cuidado são plurais, distintas, e parecem acontecer nos espaços da escola, apontam para outros lugares e possibilidades que também procuramos acompanhar e deslindar.
Apoio da comunidade
Fundamental na trajetória da Comissão da Verdade Marcos Lindenberg (CVML) foi o apoio da comunidade, atendendo aos nossos convites para depoimentos, e especialmente o trabalho dos estagiários, que bravamente leram a documentação que eles mesmos perscrutaram nos arquivos junto com a coordenação da CVML, escreveram biografias e transcreveram os mais de 50 depoimentos que recolhemos (e aqueles que ainda estamos recolhendo).
Trecho da ata da congregação em que o professor Bernardes de Oliveira sugere um IPM para indicar os opositores do regime. Livro de Atas da Congregação da EPM, número 8, 9 de abril de 1964, pp. 43-44
Além disso, como ao longo de três anos de pesquisa muitas foram as desistências de participantes, todas legítimas, sem dúvida, cabe afirmar os voluntários que se foram aproximando e trabalhando apenas por respeito aos objetivos da CVML, como o professor Bruno Comparato e as técnicas da biblioteca do Campus Guarulhos Patrícia Silva e Sheila Marques, essas duas imprescindíveis em disponibilidade e cooperação, mesmo em meio ao trabalho de mudança da biblioteca da unidade provisória para o Campus Pimentas da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp). Do grupo original, apenas esta coordenação, o professor Javier Amadeo e o Técnico Elson Matos permanecem.
Se esta comissão foi, desde o início e por sugestão da Reitoria, paritária, tornou-se na prática, pelas desistências, novas adesões e presença constante dos estagiários por exigência do plenário da CVML e concordância sempre pronta da Chefia de Gabinete da Reitoria, talvez a única comissão da Unifesp com maioria estudantil, e todos com direito a voto, comme il faut em comissões desta ordem
Convidamos, portanto, a comunidade a ler o relatório, a completar onde for necessário, a propor novos estudos naquelas partes que parecerem incompletas (que não devem ser poucas) e a acreditar na convivência democrática como único caminho para enfrentar, parafraseando livremente o médico e escritor João Guimarães Rosa, a perigosa jornada da vida.