Erika Sena
O médico e pesquisador Elisaldo Carlini, do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid/Unifesp), é um dos precursores, no país, dos estudos sobre a utilização de substâncias derivadas da planta Cannabis (popularmente conhecida como maconha) no tratamento e/ou redução de danos de diversas doenças, principalmente a epilepsia. É uma autoridade mundialmente reconhecida e organizador de quatro simpósios internacionais sobre o tema, o mais recente dos quais realizado em maio. Instado por Entrementes, Carlini expõe, em seguida, os seus pontos de vista sobre o uso medicinal da droga.
Desde quando e por que o senhor começou a estudar os efeitos terapêuticos da maconha?
Comecei a estudar a maconha – mas, inicialmente, não os seus efeitos terapêuticos em 1952. Fui aprovado no vestibular da EPM e logo em seguida comecei a estagiar com o professor Ribeiro do Valle, no Departamento de Farmacologia. Realizávamos apenas um trabalho de observação, com o objetivo de descrever os efeitos sobre os usuários. Havia um preconceito enorme, porque os usuários eram, em sua maioria, negros e pobres. Mais tarde, passei a observar os efeitos tóxicos da maconha em animais de laboratório e realizar investigações sobre a química da maconha. Obtivemos dados sobre os canabinóides, que são derivados da Cannabis, responsáveis pelos efeitos farmacológicos e psicoativos da planta. Existem cerca de 70 canabinóides, e os mais bem estudados são o delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC), responsável pelos efeitos alucinógenos, e o canabidiol (CBD).
Como se iniciaram os estudos?
Investigando os efeitos do canabidiol. Foi o primeiro trabalho no mundo feito com essa substância, há 40 anos, aqui na EPM. Foi feito com canabidiol isolado, extraído da planta pelo professor israelense Raphael Mechoulam (que enviou a substância ao Brasil), e também com canabidiol importado da Alemanha. Primeiro verificamos se no homem ele tinha efeito tóxico. Já tinha sido testado em animais de laboratório, e não conseguimos detectar nada. Então passamos a trabalhar com pacientes epiléticos e notamos efeitos positivos. Foi um estudo piloto com oito pacientes. Eles tinham, no mínimo, uma convulsão por semana, que não era neutralizada pelos agentes antiepiléticos da época. Quatro desses pacientes tiveram melhora total e ficaram quatro meses e meio sem nenhuma convulsão. Três apresentaram alguma melhora, mas abandonaram o tratamento no meio, e um não teve melhora.
Algo mudou no preconceito contra o uso medicinal da maconha nos últimos 40 anos?
No III Simpósio Internacional sobre a Cannabis Medicinal, realizado em 2010, o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), à época, afirmou que o CFM não aceitaria a utilização da Cannabis para fins medicinais porque, segundo ele, não havia base científica e que, se algum médico fizesse prescrição de substâncias relacionada à Cannabis, seria punido, inclusive com cassação do diploma. Recentemente, li na imprensa que eles disseram que não vão interferir.
É possível fazer uma avaliação da evolução dos estudos sobre o uso medicinal da Cannabis, tendo como base os quatro simpósios realizados?
O I Simpósio, denominado Tetra-hidrocanabinol como Medicamento aconteceu em 1995. Tentamos mostrar trabalhos positivos e a vantagem terapêutica para a inibição dos sintomas como náusea e vômito em pacientes com câncer e para despertar o apetite em pacientes com Aids. Queríamos conseguir a aprovação, pelo menos para esse único fim. Mas a Sociedade Brasileira de Oncologia bloqueou a ideia. A maconha era considerada uma droga maldita pela ONU. Então, a ideia do II Simpósio, realizado em 2005, era a de tirar esse estigma. Aprovamos uma moção dizendo que não se justificava considerar a maconha como uma droga especialmente perigosa, mas bloquearam no Itamaraty. O III Simpósio, em 2010, foi uma continuação disso: pedíamos a criação de uma Agência Brasileira de Cannabis Medicinal para aprofundar os estudos a respeito. No IV Simpósio, em maio deste ano, chamamos pessoas que sofrem de problemas de saúde que poderiam ser amenizados com a utilização de Cannabis para participar e contar suas histórias, além de médicos estrangeiros que tratam doentes com a utilização de maconha fora do Brasil.
Qual é a função do canabidiol e do THC no tratamento de doenças?
Aqui no Brasil, as leis e a burocracia dificultam pesquisas sobre os mecanismos de ação da droga. Sabemos que o cérebro humano tem um sistema chamado canabinóide, que interage com as substâncias da maconha. Mas tivemos que suspender os estudos. A última tentativa foi a de pesquisar os feitos da Cannabis em tratamentos de depressão. Queríamos testar um produto já existente, o Sativex, uma mistura de THC com canabidiol. Seria um trabalho experimental, em animais, para verificar se produtos à base de maconha teriam efeito no tratamento de depressão. Seria uma dissertação de mestrado de um dos nossos alunos. O laboratório nos cedeu o medicamento de graça e conseguimos a documentação para importar. Mas o produto está há mais de um ano e meio na alfândega. É um desrespeito à universidade, à ciência e ao Brasil.
O senhor é a favor da legalização da maconha?
Não sou a favor nem contra, por ignorância. Sou a favor da descriminalização e do uso medicinal. Eu, como médico, não entendo o que está acontecendo e duvido que algum médico entenda quando se pede o uso recreativo. Se eu considero a existência de um ser humano, uma doença e um medicamento, tenho um trio. Avalio o risco e o benefício desse medicamento - no caso, a maconha - para a doença, e prescrevo ou teria o direito de prescrever. Sou carente de informações científicas sobre o uso recreativo. Por isso, acho que a Marcha da Maconha deveria organizar simpósios e conferências sérias para se discutir esse assunto.
Qual a diferença entre descriminalização e legalização?
A descriminalização implica a adoção de diversas regras para o uso, inclusive em termos quantitativos. No caso da legalização, não é crime ter posse, vender, comprar, produzir, comercializar. Na Holanda, o Ministério da Saúde contratou uma empresa chamada Bedrocan, que fornece a planta: eles secam na quantidade adequada, embalam em frascos pequenos e vendem para as farmácias. O médico também pode prescrever.
O que mudaria, no Brasil, com a alteração de classificação do canabidiol da lista F1, de substâncias proibidas, para C1, de medicamentos permitidos, mas sujeitos a controle, da Anvisa?
Haveria a permissão para importação legal, com o rigor de controle que a Anvisa vai exigir. O mesmo ocorre com a morfina. A Anvisa foi muito corajosa ao comparecer ao nosso simpósio e declarar publicamente que iria analisar a alteração [A discusão sobre o enquadramento do canabidiol será retomada pela Anvisa em agosto].
Como era possível fazer pesquisas com maconha no Brasil, sendo a droga proibida?
Há 40 anos não havia essa burocracia. Os cientistas de outros países se comunicavam, falavam do interesse em realizar um trabalho científico e as substâncias eram enviadas pelo correio.
Como está o processo de criação de uma Agência Brasileira de Cannabis Medicinal?
A agência foi proposta pelo III Simpósio, em 2010, por unanimidade. Mas a proposta foi simplesmente engavetada em algum setor do poder público. É preciso ter vontade política para criar a agência.