Lu Sudré
(Imagem: Alex Reipert)
Ela foi fundada em 1º de junho de 1933. Ele nasceu pouco depois de um mês, em 5 de julho do mesmo ano. Em 2018, a Escola Paulista de Medicina (EPM) e o doutor José Carlos Prates, dois personagens importantes de uma mesma história, comemoram 85 anos. Não é possível falar dela, sem mencioná-lo. Não é possível falar dele, sem se referir a ela. Suas trajetórias estão entrelaçadas, e seus nomes cruzam-se em todos os lugares.
José Carlos Prates nasceu em Piracicaba, no interior do Estado de São Paulo. É o segundo mais velho de seis filhos, de mãe italiana e pai descendente de portugueses e alemães. Toda a sua formação foi desenvolvida em escolas do município, até o ingresso na universidade. Decidido a cursar Medicina, não quis ficar muito longe da família e optou por estudar na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Sorocaba, a aproximadamente 1h20 de viagem da casa dos pais. Mas o destino havia-lhe preparado algo ainda maior na capital: um caminho bem mais longo, que o levaria à docência, à direção de um departamento e à direção da EPM.
Durante os anos na faculdade, Prates conheceu aquele que viria a ser seu grande mentor, Renato Locchi, por ele considerado um dos melhores professores de Anatomia da América do Sul. Mal sabia que essa disciplina também entraria em sua vida para nunca mais dela sair. Após terminar a graduação, em 1959, começou a trabalhar como interno na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, onde realizou cirurgias e auxiliou em procedimentos até o momento em que recebeu um convite de Locchi, na forma de bilhete.
“Assumi a Anatomia na Escola Paulista de Medicina. Gostaria que você viesse trabalhar comigo”, conta Prates, reproduzindo palavra por palavra daquele recado tão importante. “Ele marcou uma reunião comigo em uma quarta-feira, às 15 horas. Como o professor Locchi era muito exigente e pontual, cheguei às 14h30. Quando deu a hora, bati à porta; ele me convidou para trabalhar aqui, mas disse que não havia cargo, eu teria de colaborar gratuitamente até a abertura de uma colocação”. Recém-formado, o jovem médico analisou muito bem a situação, já que, como ele mesmo reconhecia, na Santa Casa havia a garantia de “cama e comida”.
“Pensei: trabalhar com Locchi, que era o maior professor de Anatomia do Brasil, seria como trabalhar com o papa dos papas e faria uma grande diferença para minha carreira. Aceitei e, durante vários meses, fui auxiliar de ensino, sem receber nada”, relata Prates. Posteriormente, foi contratado pela Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), até passar a integrar diretamente o corpo docente da EPM, em 1961, intercalando – por algum tempo – as funções exercidas nessa instituição e na Santa Casa. Seu 1,9 metro de altura rendeu-lhe o apelido de Comprido pelos colegas professores.
A influência de Locchi deu-se na área da Medicina e na vida pessoal. Prates apaixonou-se pela Anatomia e também pelo ato de ensinar. Como professor adjunto, trabalhou muitos anos ao lado de seu mentor, que se aposentou em 1966 e passou a direção do departamento a seu antigo e fiel monitor. “Foi uma honra sucedê-lo. Nunca disse que o substituí, porque um homem como Locchi aparece a cada cem anos. Ele era uma sumidade”, destaca Prates, ajeitando os óculos no rosto e evidenciando um genuíno olhar de admiração.
Mesmo aposentado, Locchi continuou a ir à EPM e a trabalhar em sua sala no Departamento de Morfologia e Genética, no Campus São Paulo. E foi esse mesmo lugar que Prates ocupou como professor titular, após o falecimento de Locchi em 1968. Cheia de livros, papéis, fotos e desenhos, a sala é claramente um ambiente confortável e aconchegante para ele, que mantém as placas e crachás de Locchi pendurados à porta como sinal de respeito e admiração por seu grande professor.
Quando questionado sobre ser professor, Prates cala-se por um segundo, estica-se até a ponta da mesa com certa dificuldade – já que a idade lhe rendeu algumas dores nas costas – e entrega um texto que havia escrito no dia anterior à entrevista para ser publicado na revista da Academia de Medicina de São Paulo. O título era justamente Ser Professor, que para ele eram palavras curtas, mas muito significativas.
“A missão do professor é ensinar, orientar, instruir e educar cientificamente. O Mestre deve conservar-se jovem a despeito da idade. O professor deve estruturar seu espírito com uma parcela de filosofia e, no sentido clássico, de lógica de raciocínio, autocrítica, acuidade psicológica e amor ao saber, que é o equilíbrio harmônico do pensar. A função do professor requer renúncia, serenidade, bondade, tolerância, respeito aos colegas e alunos, competência e honestidade, mas requer, ainda, sensibilidade moral e social.”
Prates segue apaixonado pela Anatomia e orgulha-se ao dizer que nunca deixou de lado essa disciplina (Imagem: Alex Reipert)
O especialista em Anatomia comenta que sempre gostou de ensinar e que costumava passar muito tempo com seus alunos, e ainda o faz, sempre que possível. Ele se lembra de cada pormenor e de como se sentiu na primeira aula como titular em 1968. “Foi muito bom”, resume, balançando a cabeça com uma saudosa expressão, enquanto desliza a mão nos cabelos brancos.
A voz rouca não se cansa quando Prates discorre sobre seus momentos marcantes enquanto professor. Ele menciona um episódio em julho de 1965, quando – ainda professor adjunto e diretor do departamento – acompanhou um jogo universitário entre os estudantes da EPM e da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), o conhecido clássico Pauli-Poli. A EPM não ganhava há cinco anos, e Prates, que já havia jogado “muita bola” com seus alunos, disse que daria um ponto a mais na média final para quem marcasse gol. O centroavante da EPM era o então aluno Ulysses Fagundes Neto, que décadas depois se tornaria reitor da Unifesp e que fez dois gols no fatídico jogo
“Fui viajar para os Estados Unidos e no meu lugar ficou o professor Durval Gurgel de Carvalho. Não é que o Ulysses foi cobrar os dois pontos na média dele para o Durval, que era um militar? Ele botou o Ulysses para fora e o reprovou. Quando voltei de viagem havia uma turma reunida no pátio para defender o colega. Conversei com o Durval, que lhe aplicou um exame e mudou sua nota. Foi uma ocorrência interessante”, lembra, rindo das peripécias de seus alunos.
A pouca diferença de idade entre Prates e os estudantes de suas primeiras turmas aproximara-os muito. É o que conta Walter Manna Albertoni, do Departamento de Ortopedia e Traumatologia, que foi reitor da Unifesp no quadriênio de 2009-2013 e tornou-se professor emérito em 2015. Tendo ingressado na EPM em 1961, Albertoni fez parte da primeira turma da qual Prates foi professor auxiliar e é por este recordado com muito carinho.
“As primeiras disciplinas que frequentamos são Anatomia e Histologia, mas Anatomia é a grande disciplina, a mais impactante para o calouro que está chegando – ter de lidar com um cadáver. Foi muito ‘legal’ para nós termos encontrado o professor Prates. Ele era assistente do Locchi, um professor excepcional, mas austero. A presença de Prates, mais jovem, e o modo como nos tratava, era muito bom”, reconhece o ex-reitor. “Ele era tão querido por nossa turma que foi o homenageado na formatura, em 1966.”
Segundo Albertoni, a disciplina em questão era difícil, mas Prates sempre foi de um acolhimento muito grande. “Passamos para o segundo, o terceiro e o quarto ano e não nos esquecemos da Anatomia. Tivemos a satisfação de recentemente comemorar os 50 anos da turma, com a presença do doutor Prates. Fizemos uma sessão na Escola e depois um almoço, e ele estava conosco. Foi uma felicidade enorme”, relembra, elogiando a postura do professor assistente na sala de aula. “Muito claro, paciente e com uma excelente didática.”
Trajetória até a diretoria
Em dezembro de 1974, ocorreu um fato importantíssimo e muito honroso para Prates. Houve a eleição para a diretoria da EPM, e – a pedido de Horácio Kneese de Mello, diretor da EPM na época – o docente integrou uma lista sêxtupla que seria enviada a Brasília. Prates não imaginava que essa ação seria determinante em sua carreira.
Enquanto assessor de Assuntos Universitários do Ministério da Educação (MEC), ele frequentemente visitava universidades federais para avaliar outras faculdades de Medicina e participar de reuniões. Foi em uma dessas ocasiões, quando estava em Belo Horizonte, que recebeu um telefonema: “Disseram que eu deveria voltar o quanto antes porque no outro dia teria de tomar posse como diretor da Escola Paulista de Medicina. Puxa! Aquela noite eu não dormi”, conta, com um sorriso enorme no rosto, refletindo um sentimento bom, de nostalgia e orgulho.
“Levei o ‘maior susto da paróquia’! Não dormi de emoção, de ansiedade. Ser diretor de departamento era importante, agora ser diretor da EPM...”, continua, dando uma risada que ocupa inteiramente a sala. “Fiquei surpreso. Havia muitos professores importantes e antigos, e eu tinha 30 e poucos anos, era a ‘minhoca’ da turma”, admite o médico que saíra de Piracicaba para, a partir daquele momento, tornar-se diretor de uma das melhores faculdades de Medicina do país.
A gestão de Prates durou de 1974 a 1978. Ele relembra que ia à EPM de segunda a sábado e muitas vezes ali permanecia das 8 às 22 horas. Acabou optando por fechar sua clínica cirúrgica, que funcionava na Casa de Saúde Santa Rita. Não se arrepende, porém, dessa decisão e fala com orgulho de tudo o que fez enquanto diretor da EPM. O médico destaca as melhorias no espaço físico da instituição, que incluíram o Biotério, a ampliação da quadra de esportes e as reformas no prédio da Biblioteca Regional de Medicina (Bireme); o aumento significativo dos cursos de pós-graduação oferecidos e do corpo docente; e, em 1977, a federalização da Escola Paulista de Enfermagem como departamento da EPM, o qual viria a ser transformado em unidade universitária do Campus São Paulo. Reformas nos edifícios Leitão da Cunha e Jairo Ramos são outros feitos ressaltados. Para enumerar todas essas ações ele precisou até de um papel com anotações, já que com 85 anos a memória poderia não ajudar em algum momento.
Um feito que registra com carinho especial é a construção do edifício Octávio de Carvalho, inaugurado em 1975 com a presença do ministro da Educação na época, Ney Braga. Prates exalta a relação que, durante sua gestão, conseguiu criar com o MEC – esse vínculo não era tão forte anteriormente e foi essencial para o desenvolvimento da instituição. Por ter atuado um bom tempo como assessor de Assuntos Universitários, era benquisto e relata que o próprio Ney Braga, muito brincalhão, subia em um banquinho para falar com ele, um médico de 1,9 metro. “Nenhum ministro viera antes aqui, até a inauguração desse prédio. Foi importante para mim”, reforça.
Outro ponto que Prates menciona enfaticamente é o auxílio da equipe que o acompanhou durante aqueles quatro anos como diretor. Faz questão de citar o nome de muitos, entre eles: Antonio Cechelli de Mattos Paiva, seu vice-diretor; Ercio Pasquini, chefe de Gabinete; Paulo de Tarso Gomes, chefe do Departamento de Contabilidade e Finanças; Paulo Xavier de Morais Leite, do Departamento Jurídico; as secretárias Wanda Mura e Edneia Vicente; Yaeko Inoue, chefe do Departamento Pessoal; e José Luciano de Medeiros Borges, tesoureiro da gestão. “Lembro-me de todo esse povo aqui, pois não se administra nada sozinho. Eu tinha uma equipe muito boa e séria”, assegura Prates, enquanto arruma a gola de sua camisa social listrada.
Prates, o mais velho (à esquerda), com Olavo, seu irmão mais novo, e as gêmeas Norma e Luiza (Imagem: arquivo pessoal)
Prates, no centro, e dois colegas do time de futebol do Colégio Piracicabano, em 1951 (Imagem: arquivo pessoal)
O anatomista Renato Locchi, mentor de Prates (Imagem: arquivo pessoal)
Prates como diretor da Escola Paulista de Medicina, em 1974 (Imagem: arquivo pessoal)
Nenhum dia parado
A relação do diretor com os demais funcionários sempre foi muito positiva e, segundo Paulo de Tarso Gomes, consolidou-se como uma relação de fraternidade. O então chefe do Departamento de Contabilidade e Finanças exerceu suas funções na EPM por 30 anos e passou por sete diretores, mas faz questão de assinalar que José Carlos Prates destacou-se pelo intenso envolvimento com a atividade profissional. “Ele foi o único que se dedicou integralmente à Escola, 24 horas por dia. É um fato notável e inédito. O trabalho dele foi muito valioso e profícuo. Na época em que foi diretor, o Hospital São Paulo não teve uma crise financeira, não ficou um dia parado”, comenta Gomes, que encorpa a voz para certificar a dedicação de vida e a integridade moral de Prates.
Hoje com 80 anos e trabalhando em seu escritório particular, Gomes acredita piamente que o prestígio da EPM aumentou com a atuação do médico anatomista. “O professor Prates é um patrimônio da instituição. Por seu saber científico, por tudo. Ele é um homem de relevância internacional na Anatomia, e isso só veio engrandecer o nome da Escola."
Essa é uma opinião universal nos corredores da universidade. Não há quem critique ou não fale com carinho de Prates, que recebe um elogio a cada esquina do Campus São Paulo. Albertoni avalia que isso se deve ao fato de que, como diretor, ele tomava cuidado para proteger os alunos, principalmente na época da ditadura. “Prates mostrou equilíbrio, uma pessoa que, quando teve ‘poder’ nas mãos, fez uma condução muito tranquila e correta. Não tenho dúvida de que marcou a história da Escola, tanto que está aí até hoje.” E está mesmo.
Prates aposentou-se há mais de 20 anos por tempo de serviço, mais precisamente em 1997, e até hoje continua indo à Escola quase todos os dias da semana… exceto quando a dor nas costas aperta. Assim, salvo em ocasiões excepcionais, sempre é possível encontrá-lo na sala que lhe é reservada no Departamento de Morfologia e Genética, entre seus livros, anotações e quadros na parede. Nesse sentido, também segue os passos de Locchi. Prates aposentou-se com a marca admirável de 150 trabalhos publicados, em âmbito nacional e internacional, além de ter orientado 46 dissertações de mestrado e 27 teses de doutorado. Sobre sua atuação acadêmica, declara emocionado: “Eu nunca abandonei ‘minha’ Anatomia”.
Quando questionado sobre pessoas especiais de seu convívio diário, ele cita – sem titubear – Silvia Abuchaim, secretária do departamento, que mais cedo, ao passar pela porta da sala, mostrara-se interessada em saber: “Está tudo bem por aí, Chefão?” Chefão – esse é o jeito carinhoso com que Silvia refere-se ao professor Prates. É possível enxergar a admiração dela por meio do cuidado com que fala e da atenção com que se dirige ao octogenário. Ela conta que começou a trabalhar com o docente em 1983, justamente no dia do aniversário dele, em 5 de julho.
“Sou suspeita para falar porque sou sua fã incondicional – ele é uma pessoa maravilhosa”, afirma, logo na primeira pergunta sobre o professor. E acrescenta que, mais do que um excelente chefe, ela o considera um excelente amigo. “Me adotou como filha, mais do que qualquer outra coisa, quando comecei a trabalhar aqui aos 20 e poucos anos. Ele realmente é uma pessoa incrível, muito humana. Do mesmo jeito que trata um diretor acadêmico, trata aquele que está limpando o pátio.”
O simpático apelido Chefão surgiu em 1997, quando Prates aposentou-se e foi substituído por Ricardo Luiz Smith, que passou a ser o novo chefe de Silvia. Claro, entretanto, que a relevância de Prates se manteve. A solução foi chamá-lo assim, de forma carinhosa, o que também é uma homenagem. “Ele é nosso cacique, nunca vai perder sua posição.”
Um "chefão" exigente, mas generoso
O professor brinca com sua altura ao posar ao lado da enorme prateleira com órgãos humanos para estudo, no Departamento de Morfologia e Genética (Imagem: Alex Reipert)
Prates interrompe a narrativa para receber a visita inesperada de sua médica, Mariza Helena Prado Kobata, professora da disciplina de Gastroenterologia Cirúrgica, responsável pelo grupo de Proctologia. Ela estava preocupada porque precisava alertar Prates para que suspendesse um remédio que estava tomando, mas não conseguira contato – na verdade, ele desligara o celular para contar um pouco de sua história. Em resposta, ele enche a boca e anuncia: “Eu já suspendi! Afinal, também sou médico, né?” – fazendo todos rirem. Satisfeita, ela se despede, dando um beijo na mão de Prates, que retribui com o mesmo carinho. “Essa aí foi minha aluna também, viu?”, complementa com animação.
Kobata confessa que tem uma “dívida de coração” com seu professor. Quando estava no terceiro ano de Medicina, participou do Projeto Rondon em São Raimundo Nonato, no Estado do Piauí. Seu pai acabara de falecer e a família não usufruía de boa condição socioeconômica. Durante a permanência naquele município, descobriu que havia ficado de “segunda época” porque se negara a prestar um exame. Precisaria voltar três ou quatro dias antes, mas o pagamento da passagem não havia sido autorizado – a viagem era financiada pelo governo federal. Nesse caso, teria de arcar com o custo das passagens de ônibus de São Raimundo Nonato para Teresina e dessa capital para São Paulo, o que não seria possível devido à sua situação financeira.
Com o auxílio da mãe, seus colegas de turma fizeram uma “vaquinha” para trazê-la de volta, mas arrecadaram apenas metade do valor. “Foi aí que o doutor Prates completou o dinheiro para que eu pudesse voltar. Nunca tive a oportunidade de agradecer-lhe como gostaria. Recentemente ele se tornou meu paciente e, então, de alguma forma, pude retribuir essa ‘dívida de coração’ que tinha com ele”, afirma Kobata, acrescentando que é um ótimo paciente, muito disciplinado.
A médica recorda que, na sala de aula, Prates era exigente, mas sempre fazia alguma graça para que os alunos gravassem o conteúdo. Ela nunca se esqueceu de uma aula que o professor ministrou sobre o peritônio, uma membrana que recobre as paredes internas do abdômen e a superfície dos órgãos digestivos. “Prates explicava de uma forma que era possível entender os conceitos profundamente. O conteúdo era difícil, mas com ele ficava fácil. Nunca mais existirá um doutor Prates nesta Escola, ele é insubstituível.” Durante a fala de sua ex-aluna, Prates a interrompe para mostrar uma foto entre as tantas que separou para que fossem publicadas neste perfil. “Olhe seu amigo aqui, com três anos”, diz o professor, apontando para um retrato de quando era pequenino, em um álbum superorganizado por ele, com direito a legendas. “O senhor era muito bonitinho e hoje é bonitão”, brinca Kobata, o que faz Prates abrir um largo sorriso e cerrar os olhos para aproveitar o elogio.
São 85 anos bem vividos, e não há dúvida de que o médico conquistou muitos admiradores ao longo de sua trajetória. Admiração que não diz respeito apenas aos títulos que colecionou e aos trabalhos que desenvolveu, mas especialmente à pessoa que é. Nem mesmo seu 1,9 metro de altura é suficiente para receber tanto carinho. Expressando o sentimento de toda uma comunidade, Silvia emociona-se ao dizer o que Prates significa para ela: “Ele é meu eterno Chefão”.
Prates já ganhou diversas homenagens ao longo da carreira. A antiga praça da Anatomia, no número 720 da rua Botucatu, no Campus São Paulo, passou a chamar-se Professor José Carlos Prates. A homenagem repete-se no edifício Leitão da Cunha, onde há um anfiteatro que também leva seu nome. O auditório do quarto andar do prédio da Reitoria, na rua Sena Madureira, também foi batizado como Doutor José Carlos Prates.
“São muitas as histórias que vivi aqui, dá para fazer uma novela”, enfatiza o médico. Tais histórias, porém, transformaram-se em livro. José Carlos Prates: a Anatomia de uma Vida Dedicada à Medicina, escrito pelo médico e professor José Aderval Aragão, foi lançado recentemente e conta com detalhes sua trajetória. Não há dúvida: a história da EPM e a do renomado anatomista cruzaram-se para crescer juntas. “A Escola é a base da minha vida”, resume Prates, emocionado. Temos certeza disso, nosso “querido e eterno Chefão”. Muito obrigado.
“MINHA SEGUNDA CASA”
“Eu sempre digo que a Escola é minha segunda casa. Mas minha esposa diz que não, que – na verdade – a Escola é a primeira”, conta, soltando uma risada que só endossa o que Dona Nadir, como é carinhosamente chamada, defende. Também médica especialista em Anatomia e professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), Nadir Eunice Valverde Barbato de Prates conheceu o marido quando este levou um professor do Canadá para visitar sua instituição. Eles se encontraram mais algumas vezes e começaram a namorar.
Tanto ele quanto ela foram presidentes da Sociedade Brasileira de Anatomia, cuja proposta de fundação foi apresentada por Renato Locchi. De 1986 a 1990, Prates ocupou o posto pela primeira vez e, de 1994 a 1998, pela segunda vez. Já Dona Nadir presidiu a entidade de 2002 a 2006. O apoio mútuo entre os dois grandes médicos foi um aspecto importante no casamento. “Ele sempre me apoiou, nunca ficou enciumado quando, por exemplo, eu ia a um congresso, e ele não. Há homens que abafam as mulheres, mas ele é muito bom nesse sentido, sempre me incentivou. Acredita que eu tenho de exercer minha profissão, minha carreira, e ter independência”, ressalta a companheira de Prates nos últimos 43 anos, que, depois de alguns minutos de conversa, faz uma confissão. “Ele tem o gênio forte do avô… É mais bonzinho com os alunos do que em casa”, graceja.
Para Dona Nadir, a melhor característica de Prates é exatamente o jeito único que ele tem e que o torna muito querido. É “umcerto charme”, segundo ela, que faz com que os pacientes se apaixonem por ele. “O Prates dedicou a vida inteira à Medicina, e tudo isso o transformou na pessoa que é. E ele é muito feliz; por isso, apoio que continue a ir à EPM. Há pacientes que até hoje levam presentes em casa. O mesmo acontece com seus alunos e colegas – é uma unanimidade”. O respeitado senhor faz sucesso igualmente com a família, que está representada em sua sala por meio de fotos apoiadas na janela ou fixadas na parede. “Ele é adorado pelos filhos; os netinhos também o curtem muito”, menciona Dona Nadir.
São cinco filhos: Marcelo, que seguiu a mesma profissão do pai; Márcia, representada em uma foto na qual toca violino; José Carlos Prates Filho, que também atua na área de Medicina; Carla Rosana Prates e Alfredo Valverde Prates, o caçula, de 36 anos, com quem havia almoçado no dia da entrevista. Como todo pai orgulhoso, Prates aponta para as fotos e afirma em alto e bom som: “Todos com formação universitária." Em seguida, faz outra observação: “Olhe o Júnior, ele era um capetinha”, dando a entender que já teve muito trabalho no exercício da função paterna.
E, como todo avô, é na hora de falar dos cinco netinhos que Prates se derrete. “Esta é a Duda, aquela ali é a Ana Maria Clara, que chamamos de Cacau, e há também a Ana Vitória. Os mais novos são meninos”, explica com a maior atenção, enquanto puxa a carteira do bolso e mostra duas fotos 3x4. “O Antonio é um sapequinha. Olhe a cara dele. Tem um ano e meio. Já este aqui é o Leonardo, de quatro anos. Ele é terrível”, brinca o avô. “Minha casa está cheia de fotos de todos eles, são nossos xodós. Minha esposa – Nossa Senhora! –, o que ela compra e faz por eles não está escrito... Netos são filhos duas vezes.”
Aos 85 anos, o renomado anatomista tem muita história para contar (Imagem: Alex Reipert)
DITADURA CENSURA ATÉ “LIBERDADE BIOLÓGICA”
Apesar de uma saudável dinâmica presente em suas aulas, o ano de 1968, um dos mais repressivos da ditadura militar brasileira (1964-1985), foi difícil em muitos aspectos. Certo dia, ministrando aula no laboratório, Prates expôs aos alunos a liberdade biológica do homem, o que lhe rendeu uma ligação para pedir explicações. “Usar a palavra liberdade naquela época era complicado. Terminei a aula e imediatamente recebi um telefonema. Perguntei qual era o problema e responderam: ‘Você afirmou que na formação da célula, quando os polos são diferentes, há liberdade biológica’. Aí eu repliquei: ‘Diga àquele loiro cabeludo, que estava sentado no final da sala, que ele é muito ignorante’. Havia um infiltrado na turma, mas eu percebi porque os alunos eram calouros e carecas. Ficou por isso mesmo, mas foi um absurdo”, revela Prates.
Esse fato não chega perto dos relatos que descrevem as atrocidades cometidas durante a repressão, como torturas e assassinatos. O próprio Prates relembra que fora várias vezes ao prédio do Destacamento de Operações de Informações/ Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) em São Paulo, localizado na rua Tutoia, a pedido do professor Horácio Kneese de Mello, diretor da EPM na época. Este recebia muitos pais de estudantes que não sabiam o paradeiro dos filhos e pedia ajuda a Prates para que fosse até aquele órgão do Exército e tentasse encontrá-los.
“Em 1968, houve um congresso da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna, no qual muitos da EPM foram pegos. Eu era sócio do Círculo Militar, tinha contato com alguns militares e eles me confirmavam se os alunos estavam no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) ou não. Eu assumia a responsabilidade sobre eles, fazia o que podia. Depois disso, eles ficavam quietinhos, não me davam trabalho… Mas olhe que responsabilidade, hein? Um dos alunos desacatou um militar e apanhou muito”, declara o professor de 85 anos, apontando o dedo indicador e movimentando a mão como quem reafirma a gravidade da situação.
Em março de 2015, a Comissão da Verdade Marcos Lindenberg (CVML), da Unifesp, relembrou esse momento tenebroso da história de nosso país e realizou uma audiência pública no Campus Guarulhos para que a comunidade conhecesse os fatos que envolveram Crimeia Alice Schmidt de Almeida, Luiz Carlos Aiex Alves e Regina Elza Solitrenick, três dos estudantes que foram presos no referido XXX Congresso da UNE.
Durante a Operação Bandeirantes, em 1969, o episódio repetiu-se, e Prates consolidou sua atuação em defesa dos estudantes de Medicina.
Aposentado há mais de 20 anos, Prates ainda comparece ao Departamento de Morfologia e Genética quase todos os dias (Imagem: Alex Reipert)