Ana Cristina Cocolo
Transmitido pelo Aedes aegypti, o mesmo vetor biológico da dengue e o chikungunya, o zika vírus (ZIKV) não causa só febre, coceiras e manchas vermelhas pelo corpo. Em recém-nascidos de mulheres infectadas, além do risco da já devastadora microcefalia – anomalia que prejudica o desenvolvimento cerebral dos bebês e pode levar à deficiência motora, mental e à morte prematura –, podem também surgir graves alterações na visão.
Estudos conduzidos pela Unifesp, em parceria com a Fundação Altino Ventura, em Recife (PE), e Hospital Roberto Santos, em Salvador (BA), indicam que cerca de 30% das crianças infectadas podem apresentar lesões graves na retina e nervo óptico com consequente e importante diminuição da visão ou até mesmo cegueira legal futura – quando a visão corrigida do melhor dos olhos é de 20/200 ou menos, ou seja, a pessoa pode ver a 20 pés (6 metros) o que outra, com visão normal, enxerga a 200 pés (60 metros). Esse tipo de cegueira impede o indivíduo de realizar atividades laborais.
A relação das lesões no fundo de olho associada à infecção presumida por ZIKV e microcefalia, publicada em janeiro na revista científica The Lancet, é a primeira descrição na literatura científica que associa a presença de lesões oculares em recém-nascidos microcefálicos com infecção congênita presumida pelo ZIKV. Em seguida, outras publicações foram feitas pelo mesmo grupo nas revistas indexadas Arquivos Brasileiros de Oftalmologia e JAMA Ophthalmology.
Segundo dados do artigo publicado no periódico JAMA, foram encontradas lesões oculares que incluem a degeneração da retina (área responsável pela captura da imagem) em diferentes níveis e também do nervo óptico, bem como lesões mistas. Entre abril e novembro de 2.015, foi registrado um aumento anual de casos em até 20 vezes.
De acordo com os pesquisadores do Departamento de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo, 138 olhos de recém-nascidos de mães presumidamente infectadas pelo ZIKV, bem como suas mães, já foram avaliados e os achados oculares são significativos e reprodutíveis. Além disso, cerca de 70% dos achados são bilaterais, o que torna as sequelas ainda mais importantes. Com um número crescente de casos de gestantes infectadas por ZIKV no país e as recentes evidências científicas da relação causa-efeito da infecção com a microcefalia (em especial nos Estados de Pernambuco e Bahia), em percentagens ainda desconhecidas pela literatura médica, o quadro tem uma importância alarmante em saúde pública.
Todas as mães, mesmo de recém-nascidos com anormalidades oculares, foram examinadas e nenhuma reportou sintomas de conjuntivite, uveíte ou, ainda, apresentou sinais de infecção ocular ativa.
“Além das óbvias consequências gravíssimas para a família dos recém-nascidos, devido às sequelas, as crianças afetadas apresentarão não apenas problemas neurológicos, mas também visuais graves, resultando em um ônus econômico e social extremamente impactante ao Estado e impossível de ser calculado corretamente”, afirma Maurício Maia, professor do Departamento de Oftalmologia da EPM/Unifesp e um dos pesquisadores envolvidos nos estudos.
Retinografia de olho esquerdo de criança com microcefalia evidencia lesão macular coriorretiniana escavada atrófica, associada a mobilização de pigmento perilesional
Maurício Maia, um dos responsáveis pelo estudo
Testes sorológicos negativos para outras infecções
Como a microcefalia – definida como perímetro encefálico inferior a 32 centímetros – pode ser resultado de causas genéticas ou de outras infecções perinatais TORCHS (toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, herpes e sífilis) e o vírus da imunodeficiência humana (HIV), todas as mães e crianças acompanhadas em Pernambuco e na Bahia realizaram testes específicos para essas doenças e apresentaram resultados negativos. Fatores como alcoolismo e casos de microcefalia na família foram excluídos.
O quadro é ainda mais dramático porque sabe-se que a apresentação de alguns dos sinais e sintomas clássicos da infecção por ZIKV na gravidez, que são vermelhidão na pele, dores nas articulações e febre, são observados em apenas cerca de 20% a 30% das mães infectadas pelo ZIKV, sendo a maioria assintomática. Além disso, a confusão diagnóstica da infecção pelo ZIKV com outras viroses, como dengue e chikungunya, torna o diagnóstico da doença ainda mais difícil.
A equipe de pesquisa tem focado muitos dos seus esforços na análise sorológica das mães e de seus recém-nascidos e, até o momento, todos que foram analisados para ZIKV pelo método da detecção de anticorpos IGG mostraram-se positivos, sugerindo contágio prévio. Entretanto, reações cruzadas com outras infecções virais podem ocorrer, o que dificulta a avaliação.
Segundo Maia, o aspecto clínico das lesões encontradas é bem diferente das causadas por outras infecções como TORCHS e HIV, que também podem causar diversos prejuízos cerebrais ao feto, incluindo a microcefalia, se contraído nos primeiros meses de gestação.
Ações de saúde pública
A equipe de pesquisa recomenda que recém-nascidos microcefálicos de mães presumidamente infectadas pelo ZIKV devem ser submetidos a exame de fundo de olho para estimulação visual precoce, caso tais anormalidades sejam encontradas.
Os autores ainda enfatizam que não se sabe ainda se as alterações oculares estão relacionadas diretamente ao efeito da infecção pelo ZIKV, à microcefalia ou a ambos os mecanismos e estudos adicionais são necessários para o melhor entendimento dessa questão.
Os pesquisadores também afirmam que, como a vacina contra o ZIKV (que seria a situação ideal) ainda não está disponível no mercado, as ações devem ser focadas na prevenção do contágio da doença por meio do combate ao mosquito Aedes aegypti e de se evitar áreas endêmicas pelas grávidas, além do uso de repelentes em gestantes com risco de contágio da doença.
“É preciso mais investimentos públicos e privados para o melhor entendimento da doença”, afirma. “A falta de recursos financeiros para pesquisa é um fator limitador extremamente importante para esse processo, com profundo impacto para a saúde pública do Brasil e do mundo todo”.
Artigos relacionados:
VENTURA, Camila V., MAIA, Mauricio; BRAVO-FILHO, Vasco; GÓIS, Adriana L.; BELFORT JÚNIOR, Rubens. Zika virus in Brazil and macular atrophy in a child with microcephaly. The Lancet, v. 387, n. 10.015, p. 228, 16 jan. 2016. Disponível em: < http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(16)00006-4/fulltext >. Acesso em: 18 abr. 2016.
FREITAS, Bruno de Paula; DIAS, João Rafael de Oliveira; PRAZERES, Juliana; SACRAMENTO, Gielson Almeida; KO, Albert Icksang; MAIA, Mauricio; BELFORT JÚNIOR, Rubens. Ocular findings in infants with microcephaly associated with presumed Zika virus congenital infection in Salvador, Brazil. JAMA Ophthalmol. 9 fev. 2016. Disponível em: < http://archopht.jamanetwork.com/article.aspx?articleid=2491896 >. Acesso em: 18 abr. 2016.
VENTURA, Camila V.; MAIA, Mauricio; VENTURA, Bruna V.; LINDEN, Vanessa Van Der; ARAÚJO, Eveline B.; RAMOS, Regina C.; ROCHA, Maria Angela W.; CARVALHO, Maria Durce C. G.; BELFORT JÚNIOR, Rubens; VENTURA, Liana O. Ophthalmological findings in infants with microcephaly and presumable intra-uterus Zika virus infection. Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, São Paulo, v. 79, n. 1, jan/fev. 2016. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-27492016000100002 >. Acesso em: 18 abr. 2016.