Ana Cristina Cocolo
Todos os dias, bem cedo, uma mesa de café da manhã é posta no pátio da pequena Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, zona leste de São Paulo. À frente dela, padre Júlio Lancellotti, 67 anos, recepciona quem tem fome, com a ajuda de voluntárias que trabalham na secretaria da paróquia. Com a fala mansa, pergunta a cada um dos moradores de rua que lá adentram se precisam de alguma coisa a mais naquele dia: um sapato, uma blusa, um remédio ou até mesmo apenas uma bênção que, após dada, é complementada com um abraço sincero e um “Vá com Deus, meu filho!”
Quem conversa com ele, nem imagina as raízes que o levaram a ser considerado autor de uma obra humanística incalculável para a maioria e um perfeito anarquista para outros. Lancellotti sempre está brigando, ao lado da população carente, resistindo a processos de reintegração de posse e em manifestações de rua contra injustiças sociais. “Meu lema de ordenação de padre é o que está escrito na Bíblia Sagrada, no primeiro livro de Coríntios, capítulo um, versículo 27: ‘Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir os fortes’”.
Natural do bairro Belém, centro-leste de São Paulo, a religião entrou em sua vida não porque seus pais tinham uma rotina dentro da igreja – apesar de católicos –, mas porque ingressar em colégio particular era mais fácil do que em escola pública.
Filho de um comerciante e uma dona de casa, sua infância foi marcada pelas brincadeiras nas ruas do Tatuapé, mais precisamente na praça Pádua Dias, junto com os irmãos, Milton, mais velho, e o caçula, José Luiz, ambos já falecidos. “O Milton era, depois da minha mãe, minha referência. Era aventureiro e corajoso”, conta. “Foi ele quem me ensinou a andar de bicicleta, jogar futebol, andar com carrinho de rolimã. Por tirar as melhores notas, era ele quem me ajudava na escola”.
Mas a vida não era só feita de brincadeiras. Os três também ajudavam a limpar a mercearia do pai e, ao final do trabalho executado, ganhavam como prêmio um copo de leite com groselha. “Era uma felicidade só”, sorri ao lembrar.
Padre Júlio teve a infância muito marcada pela presença da mãe que, antes de ser dona de casa por exigência do marido e do costume da época, falava espanhol e chegou a trabalhar como secretária de grandes advogados, além de passar pela empresa Hamilton Hunter e pela Câmara Argentina. “De excelente datilógrafa, estenógrafa e taquígrafa foi ser cozinheira para ajudar no sustento da família, dando pensão diariamente, em casa, para mais de 40 pessoas”, lembra o religioso. “Na imagem mais antiga que guardo estou dentro de um cesto, na cozinha, vendo minha mãe trabalhar”.
Alguns anos depois, conta ele, a mãe adoeceu do sistema nervoso e a formação rígida e machista do pai contribuiu para isso, apesar de classifica-lo como um homem sensível. Falecida em 2010, aos 88 anos, foi ela – uma leitora compulsiva de obras literárias nacionais, principalmente de Érico Veríssimo, e internacionais – quem o ensinou as primeiras letras do alfabeto.
Travesso e com um ‘quê’ de rebeldia, confessa que deixava as freiras de cabelos em pé. No Educandário Espírito Santo, ele e o amigo Augusto eram acompanhados por uma irmã chamada Inezita, que quase não enxergava. Em uma tarde, em que foram escalados para ajudar em uma missa, foi desafiado pelo amigo a colocar um morteiro na caixa de correio de uma vizinha da igreja. Não teve dúvidas e concluiu a molecagem. Explodiu o objeto, sem deixar uma parte sequer inteira. “Quando voltei, minha mãe me questionou sobre o ocorrido, já que ela justificou para a mulher que eu estava na missa e que era coroinha”, ri alto. “A mulher falou para ela que eu não era coroinha, mas sim um demônio”.
Lancellotti conheceu as amarguras de um sistema educativo autoritário ainda muito menino, aos 12 anos, quando ingressou dentro de um seminário, em Araraquara, distante seis horas de trem de São Paulo e da família. Lá, foi coroinha de um padre alemão muito bravo, que sofria com traumas de guerra. “Apanhávamos com vara de bambu e éramos humilhados na frente de todo mundo”, conta. A saudade de casa e o método rigoroso imposto à época fizeram com que ele abandonasse o seminário pela primeira vez.
De volta à cidade natal, terminou o ginásio em uma escola de padres agostinianos, teve várias namoradinhas e entrou, novamente, para o seminário, quando chegou a ser frade e concluiu um curso de auxiliar de enfermagem na Santa Casa de Misericórdia de Bragança Paulista, também interior de São Paulo. Aos 19 anos, não aceitou mais o autoritarismo, rebelou-se e, pela segunda vez, largou a batina. O religioso lembra que os seminaristas não tinham acesso aos noticiários e às visitas familiares. “Não ficamos sabendo nem mesmo da morte de John Kennedy”, diz. “Fui convidado a sair. Esse tipo de atitude nada tinha a ver com religião”.
Junto à sua caixa de fotografias e ao porta-retrato da menina Milene, para quem ele ajudou a achar um lar. Falecida após uma doença, Lancellotti a considera sua redenção
Momentaneamente longe da batina, mas nunca do social
Com o diploma de auxiliar de enfermagem e longe do sacerdócio, trabalhou nos hospitais São José do Brás, em São Paulo, e na Santa Casa de Misericórdia de Bragança Paulista. Ingressou nas Faculdades Oswaldo Cruz e concluiu o curso de Pedagogia. Em seguida, fez especialização em Orientação Educacional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), onde atuou como professor-assistente do professor Carlos Alberto Andreucci, além de ministrar aulas nas faculdades Oswaldo Cruz, Castro Alves, Piratininga e no Instituto Nossa Senhora Auxiliadora. Neste, focado na formação para magistério.
Lancellotti também trabalhou no Serviço Social de Menores, que, mais tarde, se transformou na Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, e no Centro de Apoio ao Imigrante, no Brás, dando aulas para crianças com dificuldade de aprendizado.
Em 1980, conheceu Dom Luciano Mendes de Almeida e ficaram muito próximos. Juntos, fizeram toda a fundamentação da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo. No mesmo ano, durante a visita do Papa João Paulo II, Dom Luciano perguntou quando iria ordená-lo padre. “À época, ele nem sabia que eu estava namorando uma garota chamada Cecília, com quem fiquei por três anos”, conta.
Um ano depois, começou a estudar Teologia e, em 1985, foi finalmente ordenado padre por Dom Luciano. “No dia da minha ordenação, ela compareceu e, furiosa, vomitou um monte de desaforos em mim”, lembra, sorrindo. “Hoje somos amigos e cheguei a celebrar seu casamento”. Com bom humor, ele observa que no dia da cerimônia de bodas de sua antiga namorada, metade dos presentes na igreja estavam lá para vê-la e a outra para observar como ele reagiria a tal situação, um tanto quanto inusitada para muitos.
Prêmios e honrarias
• Prêmio Franz de Castro Holzwarth, em 2000, concedido pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil por seu trabalho contra a violação sistemática dos direitos das crianças e dos adolescentes.
• Prêmio Opas, em 2003, da Organização Panamericana de Saúde, dado à Casa Vida.
• Prêmio Nacional de Direitos Humanos, em 2004, concedido pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos.
• Prêmio Nacional de Direitos Humanos, categoria livre, em 2004, pela Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo.
• Menção honrosa do Prêmio Alceu Amoroso Lima - Direitos Humanos, em 2005
• Prêmio Direitos Humanos, em 2007, promovido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República na categoria Enfrentamento da Pobreza.
• Título de Doutor Honoris Causa, 2004, pelas universidades São Judas Tadeu e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Escudo dos fracos e oprimidos
Júlio Lancellotti participou da fundação da Pastoral da Criança e na formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e tem atuado fortemente junto a menores infratores, detentos em liberdade assistida, pessoas carentes e em situação de rua, imigrantes sem teto e refugiados, além de crianças e adultos com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) ou com a síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids). Em 1991, fundou a Casa Vida I e, em seguida, uma segunda unidade (Casa Vida II), que acolhem essa população.
Há mais de 25 anos, é vigário episcopal da Pastoral do Povo da Rua e lidera vários projetos municipais, como A Gente na Rua, composto por agentes comunitários de saúde e ex-moradores de rua e, mensalmente, realiza missas junto aos indivíduos que habitam a Cracolândia.
Defensor ferrenho dos travestis em situação de rua, em 2015 protagonizou uma cena que foi condenada por muitos, inclusive vista como exagerada por alguns membros da Igreja Católica. Em um ato de desagravo, junto com pastor José Barbosa Júnior, líder do movimento Jesus Cura a Homofobia, lavou os pés da atriz transexual Viviany Beleboni, após ela ter se crucificado durante a 19º Parada Gay, em São Paulo. O ato, segundo ele, foi um pedido de perdão pelas críticas vorazes dirigidas a ela e à população LGBT.
Não é a primeira vez, no entanto, que Lancellotti é visto lavando os pés de travestis. “Esse ato é muito marcante para mim, mais ainda para essa população em específico, pois já presenciei algumas dessas ‘meninas’ com os pés deformados pelo silicone, aplicado clandestinamente, que acaba descendo para o membro inferior”, explica. “Elas são sofridas no corpo e na alma; são incompreendidas, violadas, execradas. Se Deus está junto dos sofridos, não tenho dúvida que está ao lado delas incondicionalmente e as aceita como são”.
Lancellotti lavando os pés da atriz transexual, Viviany Beleboni; com moradores de rua que buscam ajuda na Igreja São Miguel Arcanjo, onde é pároco; na Cracolância, onde reza missas periodicamente
Outro episódio que o marcou foi a prisão de Fábio Hideki Harano, acusado de ser líder dos Black Blocs, durante protesto contra os gastos da Copa do Mundo, em junho de 2014. Participante de todas as manifestações do tema, o padre explica que estava com ele no momento da abordagem. “Foi uma atitude descabida, exagerada”, diz. “Na mochila dele não havia explosivos, mas salgadinhos e objetos pessoais”.
De acordo com ele, os Black Blocs não têm nada de agressivos, conforme passado pela mídia. Ele os descreve como jovens idealistas, possuidores de muita força e coragem para cobrar seus direitos. “Só quem estava presente no dia pode explicar quem foi realmente que iniciou e incitou a violência. E não foram eles”.
Júlio conta que não permitia que os policiais batessem nos jovens apreendidos. “Eu colocava o dedo em riste e falava bravo: 'Você tem coragem de bater em um irmão? Porque ele é seu irmão, assim como eu também sou, e você de nós'”, conta ele, sorrindo. “São tantas memórias que gostaria de escrever sobre elas, as quais intitularia Antes que eu me Esqueça, mas não tenho paciência para isso”.
Acima, o padre com transexuais, contra a transfobia
Na manifestação dos Black Blocs contra o aumento da tarifa de ônibus, em 2015
Com estudantes que ocuparam a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) para forçar a abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Merenda, em maio de 2016
Vítima de extorsão por um ex-detento da antiga Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem), em 2007, que o ameaçava de denunciá-lo de pedofilia, Lancellotti “comeu o pão que o diabo amassou”, até o rapaz e uma ex-funcionária da Casa Vida, também envolvida, serem presos, em 2011, por extorsão, já que não conseguiram provar nada contra ele. Até isso acontecer, no entanto, o sacerdote teve a vida vasculhada pela polícia, pelo Ministério Público e pela igreja. Foi perseguido impiedosamente pela imprensa, por igrejas de outras religiões, por colegas de batina, por políticos e até por aqueles que desconheciam o trabalho desenvolvido por ele.
Teve que pedir até mesmo proteção policial ao governador Geraldo Alckmin. No sentido oposto, muitas foram as moções de apoio por parte da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB-I), pelo Partido dos Trabalhadores (PT), movimentos de sem teto e pela própria sociedade. “Hoje vejo esse episódio como uma articulação política muito forte, devido a minha ligação ao PT”, diz.
Segundo ele, o que mais o marcou, na época, foi o sofrimento da mãe e a perseguição a quem ousava defendê-lo, como foi o caso de uma jornalista do Diário de S.Paulo, que o procurou e confessou que foi demitida porque se recusou a escrever uma matéria em tom acusatório. “Ela chegou na paróquia chorando muito, com uma medalhinha do beato neerlandês Titus Brandsma, padroeiro dos jornalistas católicos, com a qual eu a havia presenteado muito antes de sofrer a denúncia”.
Padre Júlio conta que já sofreu ameaças de vários políticos e já foi processado. “A pressão é grande. Enfrento isso com fé e coragem, pois sei que estou do lado certo. Do lado de quem vai apanhar e de quem vai perder”, afirma.
“Sou um fracassado, pois essa é a lógica do sistema injusto e de exclusão ao qual pertencemos. Fazer sucesso é ser conivente com ele e isso eu não sou”.
De personalidade marcante, mas andar suave, o sacerdote termina a entrevista mostrando com orgulho a paróquia e a sala que transformou em um pequeno santuário com imagens de santos do mundo inteiro – todos eles com histórias de perseguição e sofrimento, as quais conhece com profundidade, por escolherem estar ao lado dos oprimidos. “Você reparou que meus santos são todos ferrados? ”, pontua.
Questionado se sentia-se realizado, responde: “Sinto-me humanizado. Eu sinto que estou do lado que Jesus gostaria que eu estivesse”.
Em seu cantinho favorito, o padre conta à repórter a história de seus santos preferidos. Em suas mãos, segura Santa Marina, a Monja, considerada, por ele, padroeira da identidade de gênero