O poder do nosso solo

Pesquisa aponta poder de “filtragem” de vírus de solo brasileiro e sua reação com oxidantes químicos para descontaminação de águas

Ana Cristina Cocolo

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A ameaça à nossa água não corre apenas nos leitos dos rios, lagos ou reservatórios. Ela está também abaixo de nós, nos aquíferos, que são os reservatórios subterrâneos móveis de água, provenientes das chuvas, que se infiltra pelo solo e abastece rios e poços artesianos.

Geralmente, essas águas contêm pouca contaminação microbiológica graças à ação das partículas do solo, o que atenua ou inativa o poder dos vírus e dos microrganismos. No entanto, seu uso crescente pela indústria, agricultura e consumo humano coloca em risco mais essa importante fonte do recurso natural. Vazamentos nos sistemas de esgoto, fossas sépticas e atividade agrícola com uso de estrume e chorume como fertilizantes também são algumas das principais causas de contaminação das águas subterrâneas. 

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O estudo analisou o latossolo das regiões de Piracicaba e São Carlos, interior do Estado de São Paulo
Colocados em colunas distintas, os solos foram analisados quanto ao potencial de filtragem e sua interação com a oxidação química

Controlar a contaminação de aquíferos e lençóis freáticos é um desafio. A adsorção (processo pelo qual os vírus ficam aderidos às superfícies dos materiais que formam os aquíferos) e a inativação (mecanismo pelo qual as partículas virais perdem sua capacidade de infecção) são dois fenômenos naturais que podem colaborar para a desinfecção das águas.

O estudo da capacidade de atenuação dos solos brasileiros, que em sua maioria são formados por latossolos, é parte de um projeto desenvolvido no Laboratório Multidisciplinar de Águas e Solos (Lamas) do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo (ICAQF/Unifesp) - Campus Diadema, sob coordenação de Juliana Gardenalli de Freitas, professora do Departamento de Ciências Biológicas do campus. 

De acordo com ela, há poucos estudos com esse tipo de solo nesse enfoque, sendo necessário utilizar estudos realizados fora do país, com outros tipos de solos. “Muitas vezes estamos errando nas previsões e remediações”, explica. “Conhecer o comportamento e a capacidade dos solos brasileiros nesse processo de atenuação de contaminantes microbiológicos ou de remediação é de extrema importância para mapear os locais mais seguros para a captação de água subterrânea e posterior uso humano”. 

Frequentes em regiões tropicais, existem sete tipos de latossolos no Brasil que são classificados, entre outros critérios mais específicos, pela cor e pelo teor de ferro. Em geral, são solos argilosos, constituídos predominantemente por material mineral (óxido de ferro e alumínio), o que justifica sua cor avermelhada. É também um solo pobre em nutrientes e ácido, mas, devido a sua alta porosidade, tornou o cerrado brasileiro o principal produtor de grãos do país. 

Filtro natural

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Juliana Gardenalli de Freitas coordenou e orientou as pesquisas

Juliana explica que o grupo também analisou o comportamento de vírus no Latossolo Vermelho – presente em extensas áreas nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país – e sua capacidade de inativação e adsorção de vírus. O estudo foi tema do trabalho de conclusão de curso (TCC) para o título de bacharel em Ciências Ambientais de Margarita Nuche Gálvez. De acordo com Juliana, os resultados são promissores e apontam para um grande potencial desse solo.

Para entender esse processo foram colhidas amostras do solo e de água subterrânea da região de Piracicaba, interior do Estado de São Paulo, e levadas ao laboratório no qual foram montadas colunas de solo homogêneo, sem macroporos e heterogeneidades, que simulam as mesmas condições ambientais, inclusive de fluxo da água, às quais o solo colhido encontra-se exposto em sua realidade. 

Em seguida, nessas mesmas colunas preenchidas com o Latossolo Vermelho, foi introduzida uma suspensão de fagos (tipo de vírus inofensivo aos seres humanos, que infecta apenas bactérias e é muito usado em laboratório para entender o comportamento de outros vírus patogênicos), que tem a bactéria Escherichia coli (E.coli) como hospedeira. Em forma de bastonete, a E.coli tem como habitat primário o trato intestinal de humanos e é considerada um indicador de qualidade de água por meio da análise de coliformes fecais.

Os fluxos controlados da água subterrânea (colhida anteriormente na mesma região do solo analisado) foram infiltrados nas colunas e as concentrações do vírus foram avaliadas ao longo de sua extensão, a medida que ele foi transportado. Os dados, após as análises, apontaram que quase 100% dos fagos ficaram retidos no solo mesmo após a injeção da água limpa. “Vimos que a retenção do vírus é bem alta e que esse solo tem potencial para evitar a contaminação das águas subterrâneas”, explica Juliana. “O próximo passo, agora, é verificar o quanto o vírus foi inativado e quanto ele foi adsorvido pelo solo e o risco de ser transportado com nova infiltração de água limpa, como a da chuva”. 

Ajuda química

Além de estudar o transporte e a atenuação de vírus em solos tropicais, outra linha de pesquisa do grupo de Juliana abrange a remediação de solos e águas subterrâneas contaminadas utilizando a oxidação química (uso de compostos químicos oxidantes para destruir substâncias orgânicas prejudiciais à natureza e à saúde). 

De acordo com a pesquisadora, para que a remediação por oxidação química traga resultados é preciso que o composto entre em contato direto com o contaminante. No entanto, quando se injeta o oxidante nessas águas, por meio de um poço – parecido com o de captação –, parte dele pode reagir com outros materiais e minerais contidos no solo, perdendo em parte ou totalmente a eficiência. “Por isso, entender a interação química com o solo é imprescindível para determinar o uso ou não de determinados oxidantes, bem como as quantidades necessárias para o efetivo processo de descontaminação do local”. 

Na remediação por oxidação química, as moléculas ambientalmente prejudiciais são transformadas em moléculas menos tóxicas, envolvendo a transferência de elétrons entre reagentes. Enquanto um elemento perde elétrons (oxidação), o outro ganha (redução). 

Persulfato em solo brasileiro

O número restrito de pesquisas sobre oxidação química e sua interação com solos tropicais levou os pesquisadores a testarem o persulfato de potássio (composto químico relativamente recente, bem aceito na área de remediação de águas subterrâneas) em três tipos diferentes de solos, comumente encontrados no país: o Latossolo Vermelho (LV), o Latossolo Vermelho-Amarelo (LVA) e o Neossolo Quartzarênico (NQ) – que ocupa 15% do território nacional e tem características distintas dos anteriores, pois é arenoso. 

As amostras de solos foram colhidas nas regiões de Piracicaba e São Carlos e levadas ao laboratório para análises físico-químicas, antes da adição da solução de persulfato de potássio em três concentrações distintas – 0 mg/L (controle), 1.000 mg/L e 14.000 mg/L –, e monitoradas por 104 dias. 

Os resultados apontaram que, nas concentrações de 1.000 mg/L, o persulfato de potássio decaiu extremamente rápido no LV e em 30 dias não foi mais detectada a sua presença. O mesmo ocorreu com o LVA e com o NQ, no entanto, com um percentual de decaimento menor. 

Nas concentrações de 14.000 mg/L, os resultados também não foram animadores. Ao longo dos 100 dias, o percentual de concentração do oxidante foi de apenas 15% no LV contra 40% nos LVA e NQ. 

A pesquisa, que foi tema do trabalho de conclusão de curso (TCC) para o título de bacharel em Ciências Ambientais da aluna Renata de Mello Rollo, comprova que fatores como a quantidade e o tipo de argila presentes no solo, bem como matéria orgânica e teores de ferro, podem influenciar no sucesso da remediação. “Quando comparamos com dados da literatura, o nosso solo apresenta um consumo de persulfato que varia de 10 a 100 vezes maior que os solos da América do Norte e Europa”, explica Juliana.

Outro oxidante está sendo estudado pelo grupo para o processo de remediação: o percarbonato de sódio. “Outra linha de pesquisa pretende avaliar quanto o processo de remediação muda o solo e se há impactos nas características físicas e químicas, potencialmente de interesse agronômico, e a liberação de metais pesados que poderiam atingir as águas subterrâneas”, diz a professora.

Artigo relacionado:
FREITAS, Juliana G.; RIVETT, Michael O.; ROCHE, Rachel S.; DURRANT, Megan; WALKER, Caroline; TELLAM, John H. Heterogeneous hyporheic zone dechlorination of a TCE groundwater plume discharging to an urban river reach. Science of the Total Environment, v. 505, p. 236-252, fev. 2015. Disponível em: <http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0048969714014053>. Acesso em: 22 Abr. 2015.

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