Não só o valor nutritivo determina a qualidade da refeição

Produtos da agricultura familiar proporcionam maior variedade ao alimento oferecido em escolas dos municípios dos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo

Da Redação
Com a colaboração de Patricia Zylberman

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O cardápio da alimentação escolar dos municípios brasileiros poderá melhorar significativamente com a implementação da Lei Federal n.º 11.947, de 16 de junho de 2009, que estabelece o emprego de 30% dos recursos financeiros repassados pelo governo federal para a compra direta de alimentos produzidos pela agricultura familiar. O problema é que a variedade oferecida ainda pode ser considerada pequena, o que prejudica a composição nutricional das refeições. Na prática, ainda é preciso incentivar a introdução de produtos que respeitem os hábitos alimentares locais e que sejam preferencialmente de origem orgânica ou agroecológica. Em tais quesitos diversos municípios dos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo ainda deixam a desejar, conforme mostra um estudo feito por Hélida Ventura Barbosa Gonçalves, nutricionista com mestrado em Ciências da Saúde (área interdisciplinar) pelo Instituto de Saúde e Sociedade (ISS/Unifesp) - Campus Baixada Santista.

Hélida sempre se interessou pelo tema da alimentação escolar, tendo atuado como agente do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) no Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar (Cecane) da Unifesp, localizado no Campus Baixada Santista. Com a promulgação da Lei n.º 11.947/09, decidiu focar seu trabalho de mestrado nesse assunto. Sob a orientação de Veridiana Vera de Rosso e a coorientação de Elke Stedefeldt, docentes que estão respectivamente vinculadas ao Departamento de Biociências e ao Departamento de Gestão e Cuidados em Saúde, desenvolveu a dissertação denominada Da Agricultura Familiar à Alimentação Escolar: Avaliação da Qualidade dos Cardápios e do Potencial Bioativo de Frutas, Verduras e Legumes, que analisa os benefícios da produção familiar na composição do cardápio de escolas públicas de ensino básico.

Para a realização desse projeto, Hélida escolheu os Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, pois ambos constituem a área de abrangência do Cecane - Unifesp. Segundo o coordenador de gestão dessa unidade, professor Daniel Henrique Bandoni, também pertencente ao Instituto Saúde e Sociedade, o intuito dos Cecanes – que resultam de parceria entre instituições federais de ensino superior e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) – é “assessorar municípios, acompanhar a implementação das compras da agricultura familiar, realizar oficinas e seminários com todos os atores envolvidos na alimentação escolar (merendeiras, nutricionistas e gestores municipais) e melhorar as boas práticas de manipulação dos alimentos, entre outras atividades”.

Baixa adesão

A primeira parte do projeto previa a obtenção de dados referentes à compra de alimentos da agricultura familiar pelos municípios selecionados e, para tanto, a autora enviou questionários com perguntas que incluíam a forma de aquisição, a composição dos cardápios e a qualidade higiênico-sanitária dos produtos. Outra questão objetivava quantificar os municípios que adquiriam no mínimo 30% dos itens por meio da produção familiar. Para surpresa das pesquisadoras, esse número estava abaixo do esperado, contrapondo-se à hipótese inicial de que a lei era seguida à risca pela grande maioria das administrações municipais.

Hélida também buscou determinar quais eram os motivos para a baixa adesão ao programa. Inicialmente concluiu que a principal limitação à implementação dessa política em cada município era o desinteresse dos próprios agricultores familiares, uma vez que, para atender à demanda local, tinham – não raro – de alterar seu plantio habitual. Como no passado muitos haviam sofrido prejuízo financeiro, por problemas causados pela má gestão municipal, os produtores – agora – encaravam a nova lei com ceticismo. A segunda razão para o baixo índice de adesão decorria da impossibilidade de atendimento das condições higiênico-sanitárias, levando-se em conta as características exigidas pela legislação federal para comercialização de alimentos. A terceira e última razão era a mudança de governo. Se, por exemplo, o governo atual exigisse a compra de itens de estabelecimentos familiares e a administração seguinte, ao assumir o poder, decidisse que seria inviável essa transação, os agricultores acabariam perdendo toda sua produção.

Mais frutas e verduras no cardápio

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Foto à esquerda: professor Daniel Henrique Bandoni
Foto à direita: coorientadora Elke Stedefeldt, pesquisadora Hélida Ventura Barbosa e orientadora Veridiana Vera de Rosso (da esquerda para a direita)

A segunda parte da pesquisa consistiu na análise dos compostos bioativos existentes nos alimentos adquiridos pelos municípios para a alimentação escolar. De acordo com Veridiana, esses compostos “são componentes presentes nos alimentos, que – diferentemente dos macronutrientes, como proteínas, lipídios e carboidratos – aparecem em menor concentração, principalmente em alimentos de origem vegetal, e apresentam ações bioativas no organismo humano”. Sua principal atuação incide sobre a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis. Era, portanto, necessário que as nutricionistas responsáveis pela alimentação escolar nos municípios encaminhassem à pesquisadora amostras de produtos locais.

A análise desses produtos, efetuada nos laboratórios da Unifesp, detectou os teores de carotenoides, de ácido ascórbico – que é uma forma ativa da vitamina C – e de compostos fenólicos totais, além da atividade antioxidante relacionada à presença dos compostos bioativos. A principal forma de atuação desses compostos está, justamente, na atividade antioxidante: quanto maior for o seu valor, maior será o potencial benéfico do alimento para a saúde. “Os compostos bioativos têm a capacidade de desativar os radicais livres, principalmente os radicais peroxila, que são deletérios ao organismo. Quanto maior a frequência no consumo de alimentos ricos em compostos bioativos, maior o efeito ante esses radicais e a prevenção de doenças crônicas”, acrescenta Veridiana.

Para determinar o teor de compostos bioativos e a atividade antioxidante, Hélida empregou diversos métodos, na maioria baseados na desativação dos radicais ABTS e peroxila ORAC. Tais métodos tentam simular reações químicas que ocorrem no organismo humano em condições controladas de pH e temperatura.

Os resultados da avaliação relativa à variedade e ao potencial bioativo dos alimentos originários da agricultura familiar demonstraram que, embora as frutas, legumes e verduras estivessem presentes com mais frequência nos cardápios escolares após a edição da Lei n.º 11.947/09, o valor bioativo da maioria desses alimentos era pequeno. Isso decorreu da pouca variedade de espécies adquiridas, e não propriamente da forma de cultivo – convencional ou adaptada às técnicas agroecológicas. Deve-se, contudo, levar em conta que os produtos oriundos da agricultura familiar eram mais saudáveis. “Uma abordagem que usamos para essa conclusão é que, normalmente, o alimento da agricultura familiar não é processado; então, teoricamente, há nele uma conservação maior dos compostos bioativos do que, por exemplo, naquele que é processado pela indústria”, afirma Veridiana. 

“Se você consome um produto proveniente da agricultura familiar de seu município, que é, portanto, colhido em uma região próxima, a expectativa é que o alimento esteja no auge de seu potencial de nutrientes e de compostos”, afirma a coorientadora Elke.

A tríade de pesquisadoras acredita que é preciso ainda aprimorar o cardápio escolar de cada município. Os profissionais de nutrição responsáveis por essa área deveriam entrar em acordo com os agricultores familiares para conhecer o que é produzido em cada região e o que poderia ser aproveitado na alimentação escolar diária. Desse modo, seria possível planejar o cultivo de produtos, com o objetivo de melhorar a qualidade nutricional em termos de compostos bioativos. Na visão de Hélida, um prato perfeito consistiria de cereais, como feijão e arroz, uma fonte de proteínas (carnes e leite), hortaliças e verduras, podendo optar-se por cenouras ou abóboras, pois ambas são fonte de carotenoides (o que contribui para o valor da pró-vitamina A).

Elke acredita ser importante que as crianças aprendam sobre as propriedades dos diferentes alimentos, habituando-as à variedade existente. Desse modo, os alimentos provenientes do plantio familiar poderiam ser incorporados totalmente às refeições escolares. “Nós vislumbramos que, após o primeiro passo – que é a compra desses produtos e, com isso, o aumento da quantidade de frutas e hortaliças no cardápio das escolas –, cabe às autoridades dedicar maior atenção à educação alimentar e nutricional das crianças para que elas também aceitem a variedade”, finaliza a professora.

Artigo relacionado:
BANDONI, Daniel Henrique; STEDEFELDT, Elke; AMORIM, Ana Laura Benevenuto; GONÇALVES, Hélida Ventura Barbosa; DE ROSSO, Veridiana Vera. Desafios da regulação sanitária para a segurança dos alimentos adquiridos da agricultura familiar para o PNAE. Vigilância Sanitária em Debate: Sociedade, Ciência & Tecnologia, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 107-114, 2014. Disponível em: <https://visaemdebate.incqs.fiocruz.br/index.php/visaemdebate/article/view/473/172>. Acesso em: 30 abr. 2015.