Da redação
Imagem acima - Professor Baruzzi no Departamento de Medicina Preventiva da EPM, discutindo estratégias da primeira viagem ao PIX (julho de 1965)
Em 1962, o jornal A Gazeta – à época de grande circulação em São Paulo – publicou uma notícia sobre a caravana médica do doutor Oswaldo Monteiro, que estava de partida para a região do Araguaia com o objetivo de atender à população ribeirinha. Aquela matéria despertou a atenção de Roberto Geraldo Baruzzi, professor titular aposentado da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e idealizador do Projeto Xingu.
Depois de algum tempo, por acaso ou sorte, conheceu Monteiro em uma visita ao departamento médico da Caixa Econômica Federal, onde atuava desde 1957. “Falei que havia ficado sabendo da expedição e, de imediato, ele me convidou para participar da próxima”.
No ano seguinte, Baruzzi, que é especialista em Medicina Tropical pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Medicina Preventiva pela Unifesp, já estava integrado à equipe da caravana. Os participantes dividiam-se em grupos que eram transportados pelo avião da Força Aérea Brasileira (FAB) até determinados lugares, onde atendiam os povos indígenas. Santa Terezinha, localizada em Mato Grosso, foi seu primeiro destino, prestando assistência aos índios Tapirapé.
Entretanto, a viagem de 1964 foi a mais importante, quando assumiu a coordenação da expedição a pedido de Monteiro. Foi um momento também de novas ideias. Na volta para São Paulo, depois de ficar com os índios Caiapó e Carajá, a rota fez um pequeno desvio para deixar um piloto no posto de Leonardo Villas Bôas no Xingu. Enquanto esperavam em terras, um desconhecido – que soube depois se tratar do próprio Leonardo – aproximou-se e perguntou se existia alguém para atender um enfermo. O próprio Baruzzi se prontificou a ajudar. “Fiquei intrigado, queria conhecer mais o trabalho dos Villas Bôas”.
Depois do episódio, várias tentativas foram feitas para encontrar os irmãos, mas sem sucesso. No entanto, como se o destino o acompanhasse, Orlando Villas Bôas apareceu na Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp). O diretor do Parque Indígena do Xingu (PIX) se interessou pela participação da escola no Araguaia. Propôs, assim, um convite: organizar uma equipe para avaliar as condições de saúde daqueles povos indígenas. Nascia, então, o Projeto Xingu.
O primeiro programa de extensão da EPM/Unifesp, pioneiro na linha de assistência médica, baseava-se em três pilares: plano de saúde contínuo, sistema de vacinação e abertura do Hospital São Paulo (HSP/HU/Unifesp) como retaguarda para casos extremos. No início, as caravanas eram realizadas quatro vezes ao ano e a primeira delas se deu em 1965, com oito integrantes levados pela FAB.
Imagem acima: Professor Baruzzi entre índios alto xinguanos
Imagem abaixo, à esquerda: Professor Baruzzi e Orlando Villas Bôas no posto indígena Leonardo, no Alto Xingu
Imagem abaixo, à direita: Professor Baruzzi durante pesquisa com índia Panará, na aldeia Nãcepotiti
Nas primeiras viagens, o principal objetivo era examinar e entender qual era a situação da saúde e os principais problemas. Após esse mapeamento, a prioridade foi a vacinação, principalmente porque os índios estavam totalmente vulneráveis às doenças para as quais já existiam vacinas. Além de levar a imunização a todas as aldeias, a equipe prestava assistência médica, curativa e preventiva, com atendimento às queixas, além de acompanhamento de gestantes e recém- -nascidos. A equipe fazia o cadastramento de todos os indivíduos, criando prontuários especiais organizados por famílias nucleares e ampliadas, por aldeia e por etnia, estratégia que perdura até os dias de hoje.
De acordo com Baruzzi, a situação encontrada pelos profissionais da área da saúde no local foi difícil. A introdução da ficha médica, com número de registro, foto, dados pessoais, dados clínicos e lista de vacinas foi necessária para um melhor atendimento. “Tínhamos um perfil de cada aldeia. Chamávamos índio por índio para o exame e, quando não apareciam para a consulta, íamos até suas casas. Às vezes, estavam doentes ou não queriam ser atendidos. Existiam também aqueles em reclusão pubertária”.
A reclusão referida por Baruzzi é um rito de passagem comum em 10 dos 17 povos do Parque Xingu, que visa o desenvolvimento social, psicológico e físico do adolescente e sua inserção à vida adulta. Entre as meninas, a reclusão ocorre logo após a menarca para, entre outras razões, evitar o relacionamento sexual e fortalecer o corpo para a futura maternidade. Já os meninos são afastados para torná-los fortes para luta e resistentes para desempenhar as funções masculinas. A reclusão pode variar de vários meses até um ano entre as meninas e de até três anos para os meninos, principalmente se ele estiver sendo preparado para um futuro cargo de chefia.
Cada contato com os povos era feito cuidadosamente. Os pajés, figuras lendárias, criaram uma sinergia com a equipe. “Nunca houve problemas. Não fomos competir com a Medicina deles e eles respeitavam a nossa. O índio tinha liberdade para ir ao médico ou pajé”. Um episódio mostra claramente esse relacionamento. Depois de comer uma bela peixada, Baruzzi começou a passar mal. Era gastroenterite e ele repousou três dias na rede. “Eu ia para o mato de vez em quando e as crianças falavam: ‘Ih, Baruzzi perdeu a barriga!’ Realmente fiquei bem magro”. Mais tarde, após várias tentativas com o chá de folha de goiabeira, uma pajelança foi feita. “O grande pajé fazia gestos, passava a mão na minha barriga, assoprava e cantava. Naquela noite, já estava bom”.
A partir das primeiras visitas, o programa só foi se fortificando, estreitando ainda mais seus laços com as aldeias. Foi um novo conceito médico-pedagógico formado, mostrando um outro sistema de vida, e a EPM incorporava, assim, a cultura xinguana. “A minha marca na escola acabou sendo o Projeto Xingu”. O relacionamento com os irmãos Villas Bôas também se fortaleceu. O próprio Orlando participou, por vários anos, da aula inaugural do curso médico.
Hoje, aos 86 anos, Baruzzi está organizando seu passado. É meio século de um acervo que conta com fotos, materiais audiovisuais e peças artesanais que documentam o trabalho do Projeto Xingu. É a reconstrução de uma vocação que transcendeu a diferença cultural e resultou, além de tudo, em amizade.
Sobre o início de sua atuação no Parque Indígena do Xingu, o Dr. Baruzzi comentou: “Eu estava preparado para esse trabalho do ponto de vista clínico, mas não tinha experiência com o índio. Essa aproximação cultural foi muito interessante. Nunca imaginei que a leitura de uma notícia poderia desencadear em um programa de tamanha dimensão”, finaliza.
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Projeto Xingu
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