Da Redação
Com a colaboração de Rosa Donnangelo
O paletó xadrez de quadriculado miúdo acompanhava o professor Otto Richard Gottlieb nas inúmeras viagens que fazia para orientar os alunos que compunham os seus grupos de pesquisa em Química de Produtos Naturais. Os tabletes de chocolate no bolso do paletó lhe garantiam uma pausa na rotina corrida e algum valor calórico para enfrentar a fila de jovens que se formava em dias de orientação.
Embora fosse tímido e modesto, tinha humor aguçado, e uma notícia de jornal ou até mesmo a propaganda de um outdoor podiam render ao mestre alguma observação espirituosa em meio às aulas. Cada detalhe da matéria a ser ensinada ou da fala a ser proferida em uma palestra eram cuidadosamente preparados: o professor queria garantir que o conhecimento pudesse chegar a todos, sem nenhum tipo de barreira – nem visual nem auditiva. Os slides eram feitos com cuidado e dedicação. Mas ele não se prendia somente a isso. Mudava o que fosse preciso, no momento, sem deliberação prévia. E ao falar sobre seu trabalho parecia ser o homem mais extrovertido: driblava a timidez e mostrava o que sabia fazer – repassar conhecimento.
O canto superior esquerdo da lousa era o ponto de partida da aula. E nenhuma das alunas entrevistadas conseguiu descrever ao certo o que havia de tão extraordinário nas explicações de Gottlieb. Vanderlan Bolzani, Nidia Franca Roque e Maria Renata Borin mostraram em suas faces expressões de espanto, mas não conseguiram explicar por que suas aulas eram tão especiais. “Nossa! Dava vontade de pegar o quadro e levar para casa”, comenta Renata. Em meio a uma explicação e outra, uma piada, um comentário e mais aula, que só terminava no canto inferior direito da lousa.
A trajetória de Gottlieb como pesquisador começou relativamente tarde. A formação superior em Química Industrial pela Escola Nacional de Química, que pertencia à então Universidade do Brasil (atual UFRJ), no Rio de Janeiro, foi concluída em 1945, mas somente dez anos depois ele estaria inserido na carreira acadêmica. Durante esse período, trabalhou na indústria de óleos essenciais de propriedade da família. Não abandonou, porém, o hábito de pensar em coisas novas e de estudar. Publicou artigos, pesquisou vários temas em sua área e realizou testes. Um, inclusive, não acabou bem: uma explosão, que ocorreu durante a tentativa de melhorar certas reações químicas, fez Gottlieb perder a visão do olho direito. Mas isso não o impediu de continuar explorando o que ele julgava ser o assunto certo para o Brasil – a flora brasileira. “Para determinar o assunto certo, basta abrir a janela e olhar as plantas, as flores, a natureza”, dizia.
O renomado pesquisador acreditava que o maior desafio em sua área de atuação era manter o conhecimento vivo, ativo. Perguntava a si mesmo o porquê da dificuldade em ir adiante com a química de produtos naturais, uma vez que a matéria-prima para os estudos estava por toda parte, e os alunos estavam dispostos a aprender. O que o motivava era a sede dos alunos pelo conhecimento.
“A alegria que sinto ao expor um conhecimento novo proporciona energia suficiente para impulsionar um autêntico processo cíclico restaurador que me mantém em funcionamento”, declarou Gottlieb em 1999, durante uma entrevista concedida a Sérgio Massayoshi Nunomura para a Divisão de Produtos Naturais da Sociedade Brasileira de Química (SBQ).
Em viagens pelo país realizou palestras, ministrou aulas e, principalmente, encaminhou pesquisas. As 52 dissertações de mestrado e as 68 teses de doutorado, orientadas e defendidas, só evidenciam sua alta produtividade na área acadêmica. Além disso, publicou 664 artigos científicos em periódicos nacionais e internacionais.
Por seu intermédio, foram formados grupos de pesquisa em Química Orgânica em várias instituições brasileiras: Instituto de Química Agrícola (Rio de Janeiro), Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal de Pernambuco, Universidade de Brasília, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Manaus), Instituto de Química da Universidade de São Paulo, Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Rio de Janeiro) e Universidade Federal Fluminense (Niterói-RJ). Para dar suporte aos alunos, viajava semanalmente ou quinzenalmente até essas instituições. Alguns dos orientandos deixaram para trás o seu lugar de origem para acompanhá-lo nos estudos desenvolvidos no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), unidade na qual exerceu o cargo de professor titular e alcançou o maior nível de produção acadêmica de sua trajetória como pesquisador.
Não é por acaso que Gottlieb foi apelidado por Paschoal Senise, docente da USP, de “professor itinerante”. Apesar da idade, não se cansava e fazia as viagens com disposição e energia. “Era uma ótima companhia. Muitas vezes eu dizia ‘Professor, o senhor não se cansa?’ Porque eu me cansava, e ele não”, explica Maria Renata Borin.
Acima, à esquerda, viagem para coleta de plantas em Juazeiro (Vale do São Francisco). Da esquerda para a direita: Otto R. Gottlieb, motorista (não identificado), Benjamin Gilbert e Walter B. Mors.
Acima, à direita: viagem para coleta de plantas em região da caatinga, 1958. Otto R. Gottlieb (de boné)
Centro, viagem a Juazeiro (Vale do São Francisco) para coleta de plantas (1958). No grupo figuram: Walter B. Mors (em pé), Benjamin Gilbert (sentado, à esquerda), motorista ou piloto (de óculos, no centro), Otto R. Gottlieb (agachado, à direita) e Mauro Taveira Magalhães (de paletó, à direita)
Abaixo, à esquerda - escritório de Otto R. Gottlieb em seu apartamento (Copacabana, RJ)
Abaixo, à direita - conferência de abertura do 22nd International Symposium on the Chemistry of Natural Products, IUPAC, 2000 (UFSCar, São Carlos, SP)
O legado de Gottlieb é incontestável. Docente titular, foi reconhecido nacional e internacionalmente como pioneiro nos estudos de Química de Produtos Naturais (QPN), recebeu por três vezes a indicação ao Prêmio Nobel e foi agraciado com o título de doutor honoris causa por dez universidades brasileiras e pela Universidade de Hamburgo (Alemanha). E, mesmo diante desses fatos, não se vangloriava, apenas exercia o seu trabalho.
Suas alunas contam que diversas vezes os prêmios em dinheiro eram revertidos em bons livros na área, dicionários específicos e assinaturas de revistas científicas. Um verdadeiro acervo bibliográfico foi criado em benefício dos alunos para possibilitar as consultas e preservar, por meio de registro, a memória de inúmeros dias de testes, descobertas, aulas e pesquisas.
Havia colaboradores, geralmente alunos, que auxiliavam o professor para que a pesquisa fluísse em meio à demanda de orientação. “A área de pesquisa na qual ele se tornou conhecido - análise de substâncias extraídas de plantas, mais especificamente da região amazônica, sobretudo com Lauraceae e Myristicaceae – rendeu trabalhos muito interessantes. Descobriu uma nova classe de substâncias, as neolignanas, e – depois de um certo momento – empenhou-se no desenvolvimento de métodos para encontrar princípios bioativos vegetais, estudar a biodiversidade e classificar as plantas por meio das substâncias químicas encontradas nelas. Desse esforço, surgiu uma nova linha de pesquisa no país – a Evolução, Sistemática e Ecologia Química. Foi nessa área que ele se destacou profissionalmente e formou muitas pessoas”, comenta Nidia Franca Roque, sua ex-aluna de doutorado.
À esquerda, Otto R. Gottlieb foi o primeiro a receber o Prêmio Fritz Feigl – que homenageava os profissionais que se destacaram na respectiva área de atuação e contribuíram para o desenvolvimento da Química
À direita, Otto R. Gottlieb recebe da Presidência da República a condecoração Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (1994)
A esposa de Gottlieb, Dona Franca, que mora no Rio de Janeiro e tem 90 anos, diz que nunca teve motivo para reclamar do marido. Em uma conversa bastante descontraída – por telefone – contou que nunca tirou a aliança de casamento. “Ele era tranquilo, vivíamos muito bem! Adorava brincar com as crianças”. Se estivesse vivo, Gottlieb poderia desfrutar de bons momentos com os oito bisnetos. Hugo, Raul e Marcel são seus três filhos. A Química, que trouxe à família tanto orgulho e tantas conquistas, é também a paixão do filho mais velho, Hugo.
A carreira de prestígio não influenciou Gottlieb negativamente. Pelo contrário, continuou a produzir os trabalhos com o mesmo rigor de sempre. “Ele era uma pessoa simples, porém metódica e exigente. Além disso, ajudava muito os alunos. A vida dele era o trabalho”, comenta Vanderlan Bolzani, sua ex-aluna na pós-graduação. Apesar da atividade intensa, o mestre aproveitava os momentos de descontração, que eram acompanhados por música clássica.
Gottlieb foi diagnosticado com a doença de Parkinson e, devido às complicações desta última, faleceu em 19 de junho de 2011, com 90 anos. Suas palavras e seu legado científico permanecem, porém, atuais.
Muitas declarações por ele proferidas em entrevistas, palestras, aulas e congressos poderiam perfeitamente ser empregadas para tentar elucidar os problemas pelos quais o nosso ecossistema passa hoje. Ele acreditava que o grande desafio da ciência e da Química, principalmente em sua área, era entender os mecanismos de funcionamento da natureza.
“Esse é o desafio para a geração atual: entender que a Química é essencial para ajudar-nos a compreender a linguagem da vida, da natureza. A Química é a base fundamental do maravilhoso mistério que é a vida. Por meio dela é possível entender a origem, a diversidade e o futuro da vida. O químico deveria ser um dos profissionais mais valorizados no mercado de trabalho. Sua contribuição é essencial para o entendimento de todos os mecanismos do mundo vivo e não vivo”, explicou Gottlieb em entrevista ao Informativo CRQIII – setembro de 2003.
Em razão das indicações ao Prêmio Nobel, repetiam-se as perguntas sobre o que faria se recebesse essa honraria. Em uma das respostas manifestou a ideia de criar uma fundação de pesquisas em assuntos brasileiros. O sonho ainda não se realizou. Todo o material que o laureado cientista acumulou durante os anos dedicados à ciência – livros, dicionários, slides, periódicos científicos e anotações – foi doado pela família ao Instituto de Química da USP. Maria Renata Borin está empenhada em tornar real o desejo expresso por ele.
A importância da preservação desse material não é só histórica, é uma questão de repassar o conhecimento. Afinal, como disse Gottlieb: “Não é possível em ciência queimar etapas. Ciência é um estudo holístico. Possui um legado histórico que precisa ser claramente mantido na memória antes da formulação de novas propostas. Aliás, boa ciência gera automaticamente boas aplicações. Ciência é tudo ou nada.”
Otto R. Gottlieb visita a reserva ecológica de Caxiuanã, no interior do Pará