Ana Cristina Cocolo
Além do impacto com a ocupação de suas margens, a represa Guarapiranga também sofre com os produtos químicos lançados na água para o controle de algas e de cianobactérias
Uma das atuais ferramentas de avaliação da qualidade de água oficialmente adotada no Estado de São Paulo, o Índice de Qualidade da Água (IQA) não é tão eficiente quanto parece e precisa ser revisto.
A conclusão é de um estudo realizado por pesquisadores do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo (ICAQF/Unifesp) do Campus Diadema na represa Guarapiranga, segundo maior sistema de abastecimento de água potável da região metropolitana de São Paulo e responsável por atender cerca de 20% dessa população.
Décio Semensatto, professor adjunto do Departamento de Ciências Biológicas do instituto, e Tatiane Asami, bióloga que apresentou a pesquisa como seu trabalho de conclusão de curso (TCC) na universidade, debruçaram-se nos dados históricos da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) – ligada à Secretaria do Meio Ambiente do Governo do Estado de São Paulo – sobre a qualidade da água da represa entre os anos de 1978 e 2010 em nove parâmetros: coliformes fecais, pH, demanda bioquímica de oxigênio, nitrogênio total, temperatura, turbidez, resíduos sólidos totais, fósforo total e oxigênio dissolvido.
Além de analisar a degradação histórica da água da represa Guarapiranga nesse período, paralelamente, eles também verificaram a eficácia de duas ferramentas utilizadas para monitorar as tendências de qualidade: o IQA (que possui cinco classes: excelente, boa, regular, ruim e péssima) e Análise de Componentes Principais (PCA), em inglês Principal Component Analysis, que trabalha com diversas variáveis ambientais integradas. A PCA é um procedimento estatístico de análises multivariadas.
No ponto da represa com melhor índice de IQA, considerada excelente, 97% de oxigênio dissolvido medido e 94% das concentrações totais de fósforo ultrapassaram o limite legal. A mesma situação foi encontrada com relação a coliformes fecais e concentrações de oxigênio dissolvido em pontos classificados como bons pelo mesmo índice.
De acordo com Semensatto, até a década de 1970 a represa Guarapiranga era um reservatório com pouca entrada de esgoto e IQA bom. “Na década de 1980, mais precisamente entre 1986 e 1987, já percebe-se um primeiro declínio, mas ainda assim, predominantemente, a água permaneceu boa, com alguns episódios de classificação regular”, afirma. “Em 1995 houve uma grande piora nesse índice, justificado pela descarga direta de esgoto não tratado e pelo grande número de assentamentos irregulares no local. Já se passaram 20 anos e o reservatório ainda não conseguiu recuperar o nível de qualidade, mantendo-se razoável, mas com maior tendência de piora. O que variava entre regular e boa, hoje varia de regular para ruim”.
PCA e esgoto puro
O estudo separou as análises de um ponto específico da represa em períodos distintos por três décadas: 1978 a 1987, 1988 a 1997 e 1998 a 2010.
Trabalho em campo: professor Décio Semensatto (de colete) com os alunos, à época, Adriana Rodrigues e Philipe Leal
Para se ter uma ideia do declínio da qualidade da água, em um dos parâmetros avaliados no PCA, os casos de não conformidade da concentração de coliformes fecais avançaram de 46% em 1978-1987 para 87,5% em 1988-1997 e para 96% em 1998-2010.
“Apesar das variáveis levadas em conta no IQA, ele frequentemente manteve-se relativamente estável na classificação da qualidade da água ao longo do tempo, principalmente em parâmetros importantes que indicam uma significativa degradação do reservatório, como os coliformes fecais, nitrogênio total e concentração de fósforo”, explica o pesquisador. “Dessa forma, a avaliação com a PCA representou uma alternativa mais eficaz para a gestão da qualidade da água”.
A coleta também mostrou que fatores distintos, como a ocupação das margens e as diferentes fontes de poluição ambiental, influenciaram nesse índice em diferentes regiões do reservatório. Essencialmente, segundo Semensatto, o que está sendo jogado dentro da represa Guarapiranga é esgoto doméstico. “No entanto, encontramos metais pesados devido ao sulfato de cobre, um sal metálico jogado na água pela companhia de saneamento para controlar a proliferação de algas e de cianobactérias”.
Bactérias prejudiciais à saúde, as cianobactérias podem provocar desde alergia até comprometimento do fígado e do sistema nervoso central devido à sua toxicidade.
O pesquisador explica que apesar desses materiais decantarem e acumularem-se no sedimento do reservatório, as chuvas de verão causam turbulência nas águas e fazem com que essas substâncias suspendam e atinjam a coluna da água que vai para tratamento e posterior consumo humano. “O tratamento é feito de forma correta e elimina os poluentes já conhecidos, como coliformes fecais, entre outros”, afirma. O problema, de acordo com ele, são os poluidores emergentes, como os fármacos, hormônios e nanopoluentes, que são empregados em uma infinidade de produtos utilizados diariamente. “Ainda não temos definida uma concentração máxima aceitável de vários desses poluentes”.
Mapeamento das cianobactérias
O despejo irregular de esgoto doméstico e industrial, causados principalmente pela ocupação irregular das margens de mananciais, propicia a eutrofização das águas. Nesse fenômeno, o excesso de compostos químicos, ricos em fósforo e nitrogênio, prejudica o índice de qualidade das águas superficiais e estimula o crescimento de algas e microrganismos muitas vezes prejudiciais à saúde, como as cianobactérias.
Semensatto coordenou outra pesquisa, ao lado do biólogo Danilo Boscolo, na época professor do Campus Diadema, que teve por finalidade propor um mapa-piloto de sensibilidade ambiental às florações massivas de cianobactérias na represa Guarapiranga, mais especificamente as do gênero Microcystis, frequentemente encontradas nos reservatórios brasileiros e com toxicidade significativa.
O trabalho – que também foi apresentado como TCC para obtenção do título de bacharel em Ciências Ambientais pela aluna Adriana Rodrigues e em Ciências Biológicas por Philipe Riskalla Leal – integrou levantamentos físicos e biológicos da represa e socioeconômicos do entorno. A área estudada envolveu todo o perímetro do reservatório, que abrange os municípios de São Paulo, Itapecerica da Serra, Embu-Guaçu, Embu, Cotia, São Lourenço da Serra e Juquitiba, com uma superfície aquática de mais de 3.600 hectares.
A combinação dos parâmetros avaliados resultou em 72 valores de Índice de Sensibilidade Ambiental (ISA), que foram organizados em ordem decrescente e divididos em seis classes de sensibilidade ambiental, usando-se o ISA e adotando-se as nomenclaturas CS1 até CS6. Quanto maior a classificação numérica, maior a sensibilidade do local com relação à ocorrência de florações massivas de cianobactérias.
As informações levantadas em campo, juntamente com as bibliográficas, foram compiladas e integradas a um banco de dados que auxiliou a elaboração do mapa e sua finalização em escala 1:10.000, permitindo uma rápida identificação dos elementos que compõem a paisagem e os parâmetros para avaliar os níveis de sensibilidade ambiental associados (veja a reprodução do mapa na página anterior).
De acordo com o levantamento, a classe de sensibilidade ambiental mais frequente no entorno da Guarapiranga é o CS4, seguido pelo CS5 e CS6, presentes em 16% e 24% dos segmentos, respectivamente.
O pesquisador explica que em várias regiões do reservatório é comum verificar o uso direto da água pelos habitantes, aumentando o risco de contaminação pelas toxinas por meio do contato dérmico ou de sua ingestão. “O modelo de mapa desenvolvido pode ser estendido a outros mananciais e colaborar para uma melhor gestão da qualidade hídrica e da manutenção da segurança ambiental e da saúde pública”.
Parcerias em busca da história
Os pesquisadores do Instituto de Botânica do governo do Estado de São Paulo, Denise de Campos Bicudo e Carlos Eduardo de Mattos Bicudo, estão coordenando um estudo mais complexo sobre os reservatórios que abastecem a região metropolitana de São Paulo, no qual envolve várias universidades, entre elas a Unifesp.
Um dos segmentos dessa pesquisa está sob a responsabilidade de Semensatto. Nele o professor está analisando o comportamento das tecamebas presentes na represa Guarapiranga, especificamente, desde antes de o local se transformar em reservatório.
Diversas espécies de tecamebas: além de servirem como alimento a outros organismos, elas também servem como bioindicadoras da ação do homem no meio aquático
Microrganismos unicelulares, as tecamebas são consumidoras de bactérias, fungos e algas, além de substâncias e detritos orgânicos. Elas participam do ciclo biogeoquímico representado pela movimentação natural de elementos químicos no ecossistema entre seres vivos, ou seja, a matéria orgânica que resulta da morte de um organismo é degradada por agentes decompositores e seus elementos químicos retornam ao ambiente para serem reaproveitados por outro organismo vivo.
As tecamebas também servem de alimento a outros protozoários e pequenos peixes e como indicativo de interferências da ação do homem no meio aquático. Recebem esse nome por abrigarem-se em “conchas” (tecas) construídas a partir de material secretado pela própria célula ou por partículas, geralmente grãos de quartzo, disponíveis no meio ambiente.
Como várias pesquisas com as algas do reservatório apontam que a poluição mudou o comportamento das mesmas, Semensatto acredita que o mesmo possa ocorrer com as tecamebas. “Dados preliminares analisados de colunas de sedimentos retirados da represa, a uma profundidade de 1,5 metros, dizem que sim”, explica ele.
Essa coluna de sedimento – chamada de testemunho e analisada centímetro a centímetro – é capaz de contar a história de décadas de contaminação e de alteração do ecossistema lá existente.
O pesquisador esclarece que todos os ecossistemas têm capacidade de absorver impactos (até um certo limite) e reorganizar-se até atingir um novo nível de estabilidade. No entanto, o estudo de alterações ambientais deve ocorrer em uma perspectiva de teia de interações, já que os organismos vivos se relacionam em série. “Quando interferimos em uma espécie, essa alteração se propaga como uma onda pela rede inteira de conexões”.
Artigos relacionados:
SEMENSATTO, Décio; ASAMI, T. . Water quality history of the Guarapiranga Reservoir (São Paulo, Brazil): analysis of management tools. In: 2nd IWA Specialized Conference ‘Ecotechnologies for Sewage Treatment Plants’ - EcoSTP 2014, 2014, Verona, Itália. Proceedings: EcoSTP 2014. Verona, Itália, 2014. v.1. p. 808-812.
RODRIGUES, A. ; LEAL, P. R. ; BOSCOLO, D. ; SEMENSATTO, Décio . Mapa de sensibilidade ambiental às florações massivas de cianobactérias no Reservatório Guarapiranga, São Paulo. In: X Encontro Nacional de Águas Urbanas, 2014, São Paulo. Anais do X Encontro Nacional de Águas Urbanas. Porto Alegre (RS): Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 2014. p. 1-4
SAAD, A.R. ; MARTINEZ, S. S. ; GOULART, M. E. ; SEMENSATTO, Décio; VARGAS, R. R. ; ANDRADE, M. R. M. . Efeitos do Uso do Solo e Implantação da Estação de Tratamento de Esgoto sobre a Qualidade das Águas do Rio Baquirivu-Guaçu, Região Metropolitana de São Paulo. Revista Brasileira de Recursos Hídricos, v. 20, p. 147-156, 2015.
SOUSA, R. S. ; SEMENSATTO, Décio . Qualidade da Água do Rio Piracicaba: estudo de caso do efeito da Estação de Tratamento de Esgoto
Piracicamirim, município de Piracicaba (SP). Revista Brasileira de Recursos Hídricos, v. 20, n. 3, no prelo, 2015.
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