Da Redação
Com a colaboração de Rosa Donnangelo
Boa parte da população brasileira demonstra predisposição genética ao desenvolvimento da doença celíaca (DC), que se caracteriza pela intolerância permanente ao glúten – principal componente proteico do trigo, centeio e cevada. Essa foi a conclusão do estudo denominado Prevalência da Predisposição Genética para Doença Celíaca nos Doadores de Sangue em São Paulo - Brasil, realizado pela biomédica Janaína Guilhem Muniz Yoshida e apresentado em 2014 para obtenção do título de mestre em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Janaína constatou que 49% das amostras de sangue coletadas de 404 doadores residentes em São Paulo apresentaram o marcador genético que indica predisposição para a intolerância ao glúten, enquanto 2,7% - além de apresentarem predisposição genética – também possuíam o anticorpo antitransglutaminase tissular humana (anti-tTG), que é o primeiro indicativo para o diagnóstico.
A pesquisa – orientada pelo médico e, na época, professor da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) Ulysses Fagundes Neto – é inovadora por ser um dos poucos trabalhos que têm como objetivo traçar o panorama da predisposição genética à DC no país.
A DC tornou-se mais conhecida nos últimos anos, mas – ainda assim – seus sintomas são pouco percebidos pelos pacientes, que somente procuram atendimento médico em casos mais extremos. Os mais comuns estão associados ao trato digestivo (diarreia crônica e outros distúrbios) ou podem ser descritos pela anemia crônica, apatia, perda de peso, fracasso no crescimento (no caso de crianças), osteoporose e convulsões. Além disso, existem as formas silentes da doença, que acontecem, por exemplo, quando o paciente tem um irmão ou parente próximo já diagnosticado com DC, mas não apresenta os sinais comuns. “Nós sabemos que cerca de 10% dos parentes de primeiro grau de um celíaco são também celíacos”, assegura Fagundes Neto.
Janaína Yoshida
Embora antigamente fosse difundida a ideia de que a doença estava associada à infância, hoje se sabe que ela pode manifestar-se e ser diagnosticada em qualquer idade. No caso de preexistência da suscetibilidade genética, a afecção pode não se revelar por determinado tempo ou nunca vir a instalar-se. “O indivíduo ingere alimentos com glúten, mas nunca teve sintomas; entretanto, por algum fator que pode estar relacionado à imunidade, a doença é deflagrada”, explica o orientador responsável.
Quase metade das amostras de sangue analisadas por Janaína apresentaram os marcadores genéticos HLA DQ2 e DQ8 positivos – no caso, isso indica que tais doadores têm predisposição genética para DC, embora não determine obrigatoriamente seu surgimento. “Os marcadores genéticos possuem alto valor preditivo negativo, o que significa que a chance de aparecimento da doença para um indivíduo que não seja portador de HLA DQ2 e/ou DQ8 é quase nula”, explica a autora. “Os doadores são pessoas saudáveis – temos isso como pressuposto. E nós poderíamos traçar o perfil do genótipo nessa população saudável.”
De acordo com a pesquisadora, em São Paulo utiliza-se o teste dos marcadores pelo sistema Luminex, que é uma tecnologia mais cara e de difícil acesso para a população atendida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Resolvemos experimentar um kit novo, da Itália, chamado DQ-CD Typing Plus, que é de fácil manuseio e vem pronto para a extração e amplificação do DNA, com aumento exponencial das moléculas de DNA por reação em cadeia da polimerase. Em seguida, analisamos as bandas referentes ao DQ2 e ao DQ8 (marcadores genéticos).”
À esquerda: Parede do intestino delgado normal
À direita: Parede do intestino delgado com doença celíaca: o glúten agride e danifica as vilosidades (dobras) do intestino e prejudica a absorção dos alimentos
Janaína afirma que o novo dispositivo tem ainda um custo alto para o SUS, embora sua adoção seja fundamental para evitar exames como a biopsia do intestino delgado, frequentemente utilizada para estabelecer o diagnóstico final para a DC. “Segundo a nova conduta da Sociedade Europeia de Gastroenterologia Pediátrica, Hepatologia e Nutrição (ESPGHAN), todos os doadores que possuíssem HLA DQ2 e/ou DQ8 positivos, tivessem o anticorpo antitransglutaminase (anti-tTG) maior que dez vezes o valor de referência e apresentassem sintomas da doença não precisariam realizar a biopsia do intestino delgado, que atualmente é o padrão ouro para o diagnóstico no Brasil. Mas essa ainda não é a realidade a ser considerada em nosso país”, comenta Janaína. Diante dos resultados obtidos no estudo, a pesquisadora e seu orientador decidiram enviar cartas aos doadores que apresentavam marcadores genéticos positivos, com a finalidade de convidá-los para a realização da biopsia do intestino delgado.
No passado, acreditava-se que a doença celíaca era uma reação à toxicidade do trigo ou até mesmo um tipo de alergia. Hoje se sabe que sua origem é genética, e a visão sobre ela mudou totalmente. “A prevalência da DC é de 1 para 100 na Europa. Se antes era considerada rara, hoje é bastante frequente, principalmente no mundo ocidental, onde o trigo faz parte da dieta de forma disseminada”, analisa Fagundes Neto. De fato, a Itália é um dos países referência nos estudos sobre a doença devido à alimentação baseada em massas – 1% dos italianos são celíacos.
Como não há remédios que possam combater essa afecção, o recurso terapêutico mais eficaz é a dieta sem a presença de glúten, adotada de forma permanente. A resistência do paciente aos alimentos com essa característica é, entretanto, o grande obstáculo para a continuidade do tratamento. Além disso, os produtos sem glúten – cuja demanda pode ser suprida pela indústria alimentícia – são mais caros e o regime prescrito é mais oneroso que o convencional. “O indivíduo que cumpre a dieta tem uma vida absolutamente normal”, finaliza Janaína.
Números sobre a doença celíaca
• Afeta em torno de 2 milhões de pessoas no Brasil, embora a maioria delas não tenha o diagnóstico de sua situação.
• Os estudos amostrais realizados em São Paulo, Ribeirão Preto e Brasília permitem estimar a incidência da doença em 1:214, 1:273 e 1:681, respectivamente. Essa constatação coloca o Brasil ao nível da população europeia – a mais afetada.
• A doença celíaca pode aparecer em qualquer fase da vida; atualmente, estima-se que um entre 400 brasileiros seja celíaco.
• De cada oito pessoas que possuem a doença, apenas uma tem o diagnóstico.
• A doença celíaca é cosmopolita e afeta pessoas de todas as classes sociais. No Brasil é diagnosticada entre os afrodescendentes e os povos indígenas, uma vez que a miscigenação vem rompendo a barreira étnico-racial.
Fonte: Federação Nacional das Associações de Celíacos do Brasil (FENACELBRA)
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YOSHIDA, Janaína G. Muniz. Prevalência de predisposição genética para doença celíaca nos doadores de sangue em São Paulo-Brasil. 2014. 80 f. Dissertação (Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo.