Uma fotografia da sociedade brasileira
Virtudes do Estatuto da Criança e do Adolescente e dificuldades em sua aplicação revelam questões que marcam a história do país
Da Redação
Com a colaboração de Maria Eduarda Gulman
Há uma grande distância entre o que a lei prevê, no caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o que acontece na prática. Nem sempre há uma compreensão clara desse instituto legal por parte dos profissionais da educação, conclui uma pesquisa de mestrado desenvolvida por Claudia Maria Guarino, do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/ Unifesp) - Campus Guarulhos. Cláudia, professora da rede pública estadual de Guarulhos, esclarece que a escolha do tema de pesquisa, relacionado às formas de divulgação do ECA, resultou da necessidade de conhecer os direitos e deveres de jovens que apresentavam problemas de aprendizagem e que se tornavam alvo de atitudes discriminatórias em sala de aula.
Por meio de entrevistas e questionários, a pesquisadora colheu informações junto a instituições sediadas em Guarulhos (Secretaria Municipal de Educação, Juizado da Vara da Infância e da Juventude, Conselho Tutelar, Diretorias de Ensino de Guarulhos Sul e Norte). Os questionários foram respondidos por integrantes de comunidades escolares (diretores, vice-diretores, professores, coordenadores, alunos e agentes operacionais) pertencentes a três unidades de ensino. As questões buscavam avaliar se a legislação em pauta era conhecida e divulgada nas escolas, se existiam estratégias para sua disseminação, se era discutida pelos professores nos espaços pedagógicos e se fazia parte da formação continuada desses profissionais.
Para o Moacyr Souza, titular da Secretaria Municipal de Educação, faltam materiais impressos para a divulgação do estatuto e não há um trabalho intensivo para sua disseminação no espaço escolar. Afirma ser necessário desmistificá-lo como instrumento que respalda atitudes negativas dos adolescentes. Iberê de Castro, juiz da Vara da Infância e da Juventude, nota que ele não é ensinado em sala de aula. Para ele, a formação do menor - no âmbito da família - depende de um ambiente saudável e seguro, no qual a condição moral e a social têm mais importância do que a financeira. Para Maria Aparecida Barretos e Fátima Colaço, respectivamente dirigente regional e supervisora de ensino, o estatuto trouxe benefícios. Entretanto, a reflexão e a discussão sobre esse instrumento só ocorrem em situações pontuais como nas reuniões entre supervisores e diretores, e com professores mediadores (aqueles que passam por capacitação específica e podem lecionar qualquer disciplina), nos casos que necessitam da intervenção do Conselho Tutelar e na criação do regimento escolar.
Claudia Maria Guarino e Marcos Cezar de Freitas
O levantamento efetuado nas comunidades escolares indicou que a maioria de seus componentes tem conhecimento da existência do estatuto, embora não exista um trabalho adequado à sua divulgação. As unidades de ensino não dispõem de exemplares em número suficiente para consulta ou limitam o acesso ao material existente; por fim, muitos profissionais não manifestam interesse em estudar em profundidade o texto em questão. "Em algumas escolas visitadas não havia um único exemplar do estatuto, nem para uso da coordenadora pedagógica", diz Cláudia. O ECA deveria estar articulado ao programa das disciplinas, uma vez que a Lei nº 11.525, de 25 de setembro de 2007, acrescentou ao artigo 32 da Lei nº 9.394/96 a obrigatoriedade de inclusão do conteúdo relativo aos direitos dos menores no currículo do ensino fundamental.
Marcos Cezar de Freitas, docente do Departamento de Educação da EFLCH/Unifesp e orientador da pesquisa, acredita que apenas a existência da lei não seja suficiente: "Faz-se necessário estudar como essa lei é recebida e como é reelaborada no cotidiano, porque é na reação aos fatos do cotidiano que a sociedade se mostra aberta ao elogio da violência como solução". O estatuto, em geral, só é invocado quando uma criança ou adolescente está em situação de vulnerabilidade.
A contribuição fundamental que o ECA pode oferecer, diz Cláudia, é o reconhecimento de que tanto a educação quanto a integridade física, emocional e psicológica dos jovens não são responsabilidade apenas da família (biológica ou não), mas da sociedade como um todo. "O Estado surge como um ator importante que verifica algo que não existia antes: se a criança - de qualquer estrato social - é objeto de negligência, se há acompanhamento de seus direitos educacionais e se ela se encontra em situação de vulnerabilidade. O ECA é uma fotografia real do conjunto da sociedade."
Dissertação relacionada:
GUARINO, Claudia Maria. As formas de divulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a relevância de sua circulação na escola. 2014. 89 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) - Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2014.
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