“A ciência não sabe para onde vai”

Olgária Matos critica a fragmentação do saber científico, cada vez mais subordinado aos interesses das indústrias que financiam pesquisas

Rosa Donnangelo

Fotografia em close da professora Olgária Matos

As novas tecnologias, como a internet, fazem com que os conhecimentos tornem-se mais voláteis, de acordo com a avaliação de Olgária Chain Féres Matos, titular da Universidade de São Paulo (USP) e professora visitante do curso de Filosofia da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Unifesp – Campus Guarulhos.

Olgária, que é doutora em Filosofia pela USP e mestre na mesma área pela  Universidade Paris 1, concentra suas pesquisas no campo da história da Filosofia. Opõe-se à instrumentalização da ciência pela indústria, preocupada com produtividade e lucro, e propõe a construção de uma prática capaz de integrar saberes e disciplinas científicas. Em sua visão, a ciência teria que recuperar o respeito ao tempo e à duração própria dos fenômenos que ela pretende observar e explicar.

Entreteses • O que significam os termos interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade?

Olgária Matos • Há um ponto de convergência entre a interdisciplinaridade, a multidisciplinaridade e a transdisciplinaridade. Os saberes não são compartimentados, não existem alas ou áreas específicas que não transitem entre outras, há uma semelhança de objetivos ou de modos de trabalho entre diversas disciplinas. Por exemplo, entre a Física e a Química existe a Físico-Química, entre a Matemática e a Biologia existe a Biomatemática. A ideia é que os saberes, na atualidade, demandam a colaboração simultânea de vários campos do conhecimento para se desenvolverem.

 

Três fotos de Olgária Matos, mostrando momentos em que ela falava durante a entrevista

E. • O conhecimento se modificou ao longo do tempo e as formas de obtê-lo também. Como a senhora enxerga essas mudanças?

O.M. • A ciência depende das mudanças culturais. Até o século XVIII, havia uma relação com o conhecimento que não era pragmático. Por várias razões, na Grécia Antiga, a ciência era contemplativa, aquela em que o elemento teórico, o elemento de busca do conhecimento pelo próprio conhecimento, predominava. O conhecimento era público e só tinha valor quando compartilhado por todos. A privatização dos saberes, os direitos autorais e toda forma de contenção da partilha do conhecimento não existiam. Partia-se da ideia de que tudo o que existe destina-se a realizar uma finalidade que lhe é própria: nada existe por acaso ou de maneira arbitrária. A ciência buscava sempre a excelência. Não era uma cultura do excesso como a nossa, da aceleração e intensificação dos estímulos nervosos. Hoje, nos esportes, como nas corridas ou levantamento de peso, não se trata de correr bem, mas de correr cada vez mais depressa, de levantar objetos cada vez mais pesados. A ciência medieval era voltada para conhecer as maravilhas da natureza e o homem, os fenômenos da natureza, mas como criação divina. Isso chega até o século XVIII, quando a perda da ideia de transcendência do divino se estabelece, e se firma o fenômeno da secularização, portanto sem referências, levando em consideração uma ideia de verdade objetiva, seja ela garantida pela própria natureza ou por um Deus, ou deuses. Significa que a ciência vai buscar, por ela mesma, critérios para sua própria fundamentação. A partir daí, você tem o homem sendo a medida de todas as coisas. Essa ideia de que a ciência pode se desenvolver infinitamente, cada vez mais e em qualquer direção, fez com que ela perdesse sua finalidade. A ciência, hoje, não sabe para onde vai, pode tanto orientar-se para a emancipação da humanidade quanto para a destruição do planeta. A técnica moderna é interventiva, ela contraria a causalidade natural das coisas. Então é um fenômeno cultural. Há um problema de princípio, uma circularidade que oblitera a crítica, impede-nos de pensar criticamente o que a ciência faz hoje. Se não é a linguagem da ciência que se fala, não há legitimidade. Há uma multiplicidade de dispositivos científicos que dão uma legitimidade para coisas que a ciência, às vezes, não tem. Não se fala mais em infância, mas em “pedagogia”; em natureza, mas em “ecologia”; em desejo, mas em “sexologia”.

 

E. • Por que a senhora escolheu Filosofia?

O.M. • Na época de meus estudos escolares, na década de 1960, havia algo muito mais razoável do que se tem hoje, que eram os cursos clássico e científico. No clássico, prevaleciam as Humanidades e Ciências Sociais; no científico, Engenharia e Ciências Médicas e Biológicas. Todas as áreas tinham todas as disciplinas. Eu gostava mais das Ciências Humanas. Comecei os cursos de Psicologia e Filosofia, optando por manter somente o último. A Filosofia pretendia elaborar, em pensamento, apesar de isso estar mudando, aquilo que os homens vivem dispersamente no cotidiano. A impressão que se tem é a de que a Filosofia está muito longe da vida, que é um saber muito abstrato, teórico, por não ter aplicação imediata. Mas, conforme você vai aprofundando o conhecimento, percebe que aquilo de que ela fala é a vida, e na Filosofia a complexidade dos fenômenos exige um rigor homólogo ao rigor que se tem nas ciências da natureza. Escolhi Filosofia, em parte, pelos professores que tive. O professor que você é capaz de admirar desperta o desejo de conhecer aquilo que ele conhece.

 

E. • Qual deve ser o papel do professor para que o conhecimento interdisciplinar se realize?

O.M. O professor precisa ser competente na sua área, ser muito bem formado na complexidade do saber que vai transmitir. O difícil é transformar o complexo em simples sem banalizá-lo ou empobrecê-lo. Por isso que, quanto mais intimidade se tem com o conhecimento que será desenvolvido, mais habilidade haverá para transmiti-lo. Você estuda História no ensino fundamental e médio, e depois volta a estudá-la na universidade. Primeiro, o professor explica o essencial, aquilo que faz com que os estudantes pensem no objeto que foi dado; posteriormente, eles recebem explicações sobre as diversas interpretações sobre determinado fato. O esforço é tentar contar a história do que aconteceu naqueles tempos, à luz do que podemos saber deles hoje. Mas atualmente os professores não sabem muito bem como ensinar e o que ensinar, porque não há mais conteúdo fixo nas disciplinas. Acho que existe uma grande desorientação. Se não houver uma sequência progressiva do ensino, o estudante lê um pouco de cada coisa e cria-se a desinformação, a fragmentação. A transdisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a multidisciplinaridade tentam, inclusive, corrigir esse processo.

 

E. • Como se dá a interdisciplinaridade tal como praticada hoje e como ela se relaciona com o legado humanista?

O.M. • A escola dos humanistas tenta unir conhecimento e vida. Os humanistas do Renascimento queriam transmitir pela escola todos os saberes que dignificavam a natureza e o homem. O conhecimento técnico era o conhecimento do saber fazer, uma técnica inteligente. Por exemplo, na Grécia clássica, um artesão de sela de cavalo não era julgado por outro artesão de sela de cavalo e sim por um usuário. Hoje, a competência é medida assim: um economista fala de outro economista. O saber fazer não estava separado do prazer do conhecimento e hoje está. Claro que, atualmente, diante da complexidade dos saberes e da sua conversão em especialidade, as competências não poderiam ser medidas pelo usuário. Por exemplo, o que eu posso falar para um piloto de avião? Nada. Então, são questões de competência. E esse é um dos problemas da sociedade hoje: o que se entende por democracia na sociedade e democracia nas instituições, como se todo o mundo pudesse opinar sobre tudo. A questão da especialidade ou da perda da especialidade pode ser muito comprometedora quando se confunde democracia nas instituições com democracia política, na qual cada cabeça expressa um voto.

 

E. • A ciência e a tecnologia ainda deslumbram a sociedade?

O.M. • Existe uma duplicidade. Ao mesmo tempo, há uma espécie de sentimento pós-moderno de desencorajamento, desânimo, desconfiança e descrença de tudo, mas há também a ideia de que a ciência explica o mundo e vai mudar a vida dos homens. E é verdade. A autonomia das pesquisas está cada vez mais comprometida, porque os investimentos econômicos acabam sendo privados e determinam o rumo dessas pesquisas segundo os seus próprios interesses. A indústria farmacêutica investe naquilo que ela julga ser interessante do ponto de vista econômico, não naquilo que a ciência gostaria de pesquisar e necessitaria fazê-lo. Hoje, existe o peso de as pesquisas serem ideologizadas de um lado e, de outro, há uma aceleração do conhecimento e o fetiche da inovação. É necessário saber se é preciso inovar, aprofundar ou mudar a direção das pesquisas. A tecnologia é caríssima e os interesses são enormes. Está muito difícil dissociar o poder econômico das pesquisas científicas.

 

E. • Como a senhora enxerga o conhecimento especializado?

O.M. • O conhecimento especializado não é um absurdo no sentido da competência, mas sim quando ele compartimenta o saber. A pesquisa perde o sentido, sua única referência é ele mesmo. É o problema, por exemplo, da Bioética. Não existe uma prateleira dividida em várias éticas. A ideia de ética supõe a ideia de limites e valores estáveis. Mas, em um mundo no qual a ciência e a sociedade não têm limites, no qual os valores mudam no curto tempo de uma mesma geração, como se pode ter valor ético? Ética demanda duração; como hoje tudo muda muito rápido, não se pode ter ética. Impor limites éticos à ciência está fadado ao fracasso. A ciência não pensa, ela faz.

 

E. • Unir o saber tecnológico ao conhecimento abstrato é uma proposta do ensino interdisciplinar?

O.M. • Acho que não diretamente. A técnica era auxiliar da ciência. Para realizar certas pesquisas e desenvolver conhecimento teórico, a ciência necessitava de algumas técnicas. Mas com o desenvolvimento do capitalismo, o aumento da produção e otimização dos recursos, a ciência se associou à técnica, e a tecnociência foi criada. O aumento da produção e da produtividade, próprio à racionalidade do mercado, acabou por abranger a ciência e a técnica, instaurando-se uma tecnociência a serviço do mercado e das inovações científicas e tecnológicas. Não se pensa mais na natureza e para onde vai esse conhecimento. Acho que ensinar a ciência e a técnica com os saberes formadores deve ser feito sem perder o rumo até onde se pode chegar, beneficiando o desenvolvimento da ciência.

 

Fotografia de Olgaria Matos e a jornalista que a entrevistou

E. • Qual o papel que a universidade exerce na produção do conhecimento interdisciplinar?

O.M. • No Brasil nós praticamente não temos centros de pesquisa fora das universidades, em particular as públicas. Como as pesquisas são feitas nas universidades, é de sua responsabilidade desenvolvê-las da maneira mais rigorosa e especializada, para que possam presidir à tradução disso nos vários campos da aplicação prática na sociedade. Acredito que é uma responsabilidade grande o saber da competência, entendida não só como a especialidade isolada, mas também como uma especialidade que se pergunte pelo sentido daquilo que ela pesquisa e da destinação daquilo que ela faz. A tendência é a especialização precoce, que deve existir mesmo, mas que não deveria estar separada da formação com as disciplinas que pensam aquilo que a ciência faz, como a Filosofia e as Humanidades em geral, em especial a Literatura.

 

E. • Como fica o aluno perante o conhecimento fragmentado, em face da possibilidade de, futuramente, ser ele próprio um pesquisador?

O.M. • Acho que existe uma preocupação, sobretudo nos anos de formação no ensino médio, de todos os saberes serem integrados. Eles não são integrados porque, propositadamente, se produz a integração, integram-se “espontaneamente”. É o tempo e a maturidade no conhecimento que propicia compreender as relações da pintura impressionista com a Física corpuscular, dos contos de Machado de Assis com a filosofia de Schopenhauer. Não se pode fazer um professor falar de Física, Química, Geografia, História etc, cada um em sua disciplina, “integradamente” de maneira forçada. É a maturidade que faz convergir esses saberes. Cada conhecimento em uma determinada área deve ser desenvolvido ao máximo de sua complexidade pelo professor para poder ser transmitido, o contrário de acreditar que uma apostila e um caderno de respostas podem permitir ao professor transmitir o conhecimento. A interdisciplinaridade surge da maturidade dos vários anos de formação.

 

E. • Pesquisar exige tempo. No entanto, os pesquisadores são guiados pelos prazos determinados pelas necessidades do mercado. Essa lógica de tempo versus conhecimento prejudica o conhecimento interdisciplinar?

O.M. • Prejudica o conhecimento e o conhecimento interdisciplinar. Há uma aceleração do tempo que é industrial. Novas tecnologias, como a internet, fazem com que os conhecimentos sejam muito voláteis. Eles são fragmentados, aleatórios e dispersos. Nós abrimos uma janela cá, outra acolá, no computador – e não se reúne mais nada. A incidência da aceleração do tempo, as novas tecnologias e as revoluções tecnológicas muito rápidas acabam incidindo na universidade, que exige um tempo mais lento, fora dos padrões de produção. A universidade, a escola e as instituições de pesquisa são dominadas heteronomamente, ou seja, é de fora que vem a designação do que as universidades devem fazer e em quanto tempo. Tudo acaba tendo um tempo, e respeitá-lo é fundamental para garantir o financiamento. Muitas vezes, resultados são maquiados só para pedir novo financiamento e dar continuidade à pesquisa. Algumas recebem financiamento para dois anos ou quatro anos e, às vezes, elas precisam de quinze anos para a conclusão. Aumenta-se a quantidade de pesquisa, mas não a qualidade, porque esta permanece ligada ao tempo.

 

E. • Qual o espaço que o conhecimento interdisciplinar ganha na lógica de ensino atual?

O.M.A interdisciplinaridade vem quando cada especialista, compreendendo a complexidade do seu conhecimento, estabelece relações entre os diferentes campos do saber. O professor de História está falando sobre a Revolução Francesa – dos fatos, das causas – e, enquanto explica, já pode fazer relações e comentar sobre a filosofia dessa revolução, do estatuto das artes em relação ao passado etc. Quando esse percurso já está feito é que pode haver áreas de pesquisa transdisciplinares. É uma questão de tempo, mas é também de formação. Como rompemos com a ideia de tradição e de história, hoje se tem ideia de que o cientista inventa o saber que ele está produzindo, ao passo que – se houvesse, junto com a formação, a história desse saber – a interdisciplinaridade já se faria presente. O pragmatismo levou ao desconhecimento do desenvolvimento das potencialidades humanas, o prazer que o conhecimento poderia trazer. Produz-se um conhecimento isolado nele mesmo e excluído de sua história. O que seria da Filosofia sem a história da Filosofia? O que seria da Literatura sem a história da literatura? Essa “história”, hoje, está se perdendo.