Crítico e sociólogo, militou no Partido Socialista Brasileiro, fez oposição aos regimes autoritários, foi mestre dedicado e produziu obra de raro valor nos estudos literários
Celina M. Brunieri e Felipe Costa
Agradecemos a Marina de Mello e Souza, professora livre-docente do Departamento de História da FFLCH-USP, pelo valioso depoimento que prestou sobre seu pai, Antonio Candido, contribuindo para a elaboração deste artigo
Expressamos também nosso reconhecimento a Laura Escorel de Moraes, que colaborou com a edição, cedendo material relativo a sua pesquisa de mestrado sobre o acervo fotográfico de Gilda e Antonio Candido de Mello e Souza, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da EFLCH da Unifesp – Campus Guarulhos
Antonio Candido discursa sobre Oswald de Andrade na conferência de abertura da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2011 (imagem: Walter Craveiro / Divulgação Flip)
A unanimidade em torno de Antonio Candido de Mello e Souza, falecido aos 98 anos em maio, parece elevá-lo à categoria de mito na história cultural do país, tal o alcance e profundidade de sua obra, a erudição e clareza de pensamento, a competência como mestre e a fidelidade aos princípios de uma sociedade igualitária. Sociólogo, crítico literário e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Antonio Candido foi militante de causas sociais, cujos atributos de integridade, tolerância, generosidade e senso de justiça qualificam-no como um ser humano excepcional.
É autor de obras fundamentais para os estudos literários e a cultura brasileira, entre as quais se enumeram: Formação da Literatura Brasileira, Literatura e Sociedade e O Discurso e a Cidade. A primeira situa-se no mesmo patamar dos grandes ensaios de interpretação da realidade brasileira como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr.
Um intelectual em formação
Em julho de 1918 nasce, no Rio de Janeiro, Antonio Candido de Mello e Souza, filho mais velho de Aristides e Clarisse. Os dois jovens entroncam suas histórias em um dos frequentes bailes na casa do doutor Miguel Pereira. O médico, cunhado de Clarisse, fora o preceptor de Aristides enquanto estudante de Medicina na então capital federal.
Oito meses após o nascimento de Antonio, ocorre a primeira de algumas mudanças significativas para a construção e compreensão da história do infante.
Com a morte repentina de Miguel, Aristides e Clarisse mudam-se para Santa Rita de Cássia, em Minas Gerais, cidade natal do pai de Antonio. Nela o genitor ganha tal notoriedade que o governo do Estado o convida para dirigir os serviços termais de Poços de Caldas. Em 1929, antes de assumir o cargo, Aristides parte para a França, junto com a família, que já somava cinco pessoas, em busca de uma segunda especialização.
Os doze meses de permanência na Europa têm grande impacto na formação de Antonio e seus irmãos. Na França, aprendem francês e história europeia com Marie Rohlfs de Sussex, mulher com alto grau de instrução. O contato com Marie faz com que os garotos conheçam os museus de Paris, estudando obras e movimentos artísticos.
Durante a estada no velho continente, a família passa o verão em Berlim. O impacto desses dias torna-se indelével na vida do garoto. Sair às ruas significa ter de lidar com a dureza do forte militarismo alemão e com os primeiros sinais do nazismo. O fascínio pela cultura do país, entretanto, o acompanha. Cinco anos mais tarde, esse interesse motiva a escrita do seu primeiro artigo para o Jornal Ariel.
Em 1930 a família retorna ao Brasil. Estabelecem-se em Poços de Caldas. E no ano seguinte Antonio conhece a italiana Teresa Maria Carini. Teresina é uma senhora culta, que se torna a melhor amiga da mãe do garoto. Antifascista e ex-militante socialista, é a responsável por transmitir certa “afetividade socialista” a Antonio Candido e por sua inserção nas letras italianas.
O convívio escolar com os irmãos Andrada e Silva marca a vida do jovem. José Bonifácio e Antonio Carlos dividem com ele leituras de obras de cunho socialista e de romances regionalistas. Esse período em Poços de Caldas afeta profundamente o leitor voraz, de tal modo que falar sobre a cidade faz sua alma transbordar durante toda a vida.
À esquerda, Antonio Candido entre os pais, Aristides Candido de Mello e Souza e Clarisse Tolentino de Mello e Souza, e com os irmãos, Roberto e Miguel, em pé, na casa da família em Poços de Caldas
À direita, Antonio Candido, em São Paulo, em abril de 1936; nos anos de 1937 e 1938, ele frequentaria o Colégio Universitário (1ª seção), curso complementar ao ensino médio, de caráter oficial, que também preparava para os exames vestibulares
(imagens: Acervo Ouro sobre Azul)
Os estudos superiores e a crítica literária
A influência do meio familiar, as interações sociais e o impacto das leituras possivelmente ajudem a rastrear o processo de formação da personalidade sensível e multifacetada de Antonio Candido. E talvez expliquem sua inclinação para a militância social. É certo, porém, que obras como ABC do Comunismo, de Bukarin, e História do Socialismo e das Lutas Sociais, de Max Beer, tiveram importância fundamental na construção de valores associados à justiça social e na opção posterior pelo socialismo democrático.
Em 1936, Antonio Candido transfere-se para São Paulo onde prosseguiria os estudos. Abandona provisoriamente o interesse pelas questões sociais e passa a frequentar a vida artística e cultural da cidade. Mário de Andrade, então nomeado diretor do Departamento de Cultura, havia criado a discoteca pública, o coral de música brasileira, o quarteto de cordas e as bibliotecas ambulantes em um esforço inédito de levar a cultura erudita às camadas populares.
No ensaio A Revolução de 1930 e a Cultura, Antonio Candido analisa as transformações culturais produzidas pela Revolução de 1930, que incluíram: a reforma educacional, com a adoção dos métodos da Escola Nova; a ampliação do número de escolas de nível médio e de ensino técnico; a criação de universidades públicas; a gradativa aceitação das inovações formais do Modernismo; e a publicação de livros didáticos elaborados por autores nacionais. A década de 1930 foi um período de intensa politização e de radicalização de posições ideológicas em face dos temas sociais em pauta: a crise econômica de 1929, a ascensão do fascismo e as repercussões da Revolução Russa de 1917.
Em 1939, Antonio Candido ingressa simultaneamente na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (curso que abandonou no último ano) e na Faculdade de Filosofia (subseção de Ciências Sociais e Políticas), fundada em 1934. Esta última despertava uma atitude de reverência porque seu corpo docente era formado por intelectuais estrangeiros de alto nível, entre os quais: Claude Lévi-Strauss (antropólogo), Fernand Braudel (historiador), Roger Bastide (sociólogo) e Giuseppe Ungaretti (poeta e professor de literatura). Quem exerceu maior influência sobre os alunos e ouvintes foi, entretanto, Jean Maugüé, professor de filosofia e marxista não ortodoxo.
Antonio Candido une-se, então, a outros jovens cultos e talentosos, que se interessavam como críticos diletantes por artes plásticas, cinema, teatro e literatura. Por iniciativa de Alfredo Mesquita, escritor e dramaturgo, fundam a revista Clima, da qual se tornam redatores. Apelidados de chato-boys por Oswald de Andrade em razão da seriedade de seus textos, responsabilizam-se pelos trabalhos editoriais, obtenção de anúncios e distribuição dos exemplares. O núcleo principal da revista, formado por Lourival Gomes Machado, Paulo Emilio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Ruy Coelho, Antonio Candido e Gilda de Moraes Rocha (sua futura esposa), vinculou-se por laços duradouros de afeto e amizade. Clima circulou entre 1941 e 1944 e, de certa forma, ajudou a definir o rumo intelectual de seus componentes.
O prestígio obtido em Clima permitiu que Antonio Candido assumisse a crítica de rodapé (inserida no espaço inferior da página) na Folha da Manhã (de 1943 a 1945) e, depois, no Diário de S. Paulo (de 1945 a 1947). A cada semana, o crítico era responsável por produzir um texto analítico sobre os novos lançamentos, e as avaliações, se inconsistentes, podiam custar o emprego ao profissional. Antonio Candido soube, entretanto, reconhecer o valor literário de autores iniciantes como Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. E apontou alguns desacertos em Marco Zero (1943), de Oswald de Andrade, que ficou irritado e, por certo período, rompeu relações com o crítico.
A colaboração com órgãos de imprensa perduraria por 24 anos, cabendo-lhe em 1956 a tarefa de elaborar, a convite de Julio de Mesquita Filho, o projeto editorial do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, que se tornaria um dos paradigmas do jornalismo cultural no país.
Da Sociologia à Literatura Brasileira
Em 1942 forma-se em Ciências Sociais e, por indicação de Fernando de Azevedo, assume as aulas de Sociologia como professor assistente. Antevendo que a literatura iria encaminhá-lo para outra área, decide concorrer, em 1944, à cadeira de Literatura Brasileira e, com esse objetivo, prepara a tese Introdução ao Método Crítico de Sílvio Romero. Classifica-se em segundo lugar, mas a aprovação no concurso permite-lhe obter o título de livre-docente, com o qual pretendia transferir-se para o ensino de Letras.
Por dever moral (embora já portasse titulação suficiente), elabora em 1954 a tese de doutorado sobre a cultura material e imaterial de populações rurais do interior paulista, à qual denomina Os Parceiros do Rio Bonito. Após 16 anos como assistente, desliga-se da Sociologia e, a convite de Antonio Soares Amora, integra-se à recém-instalada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis como professor de Literatura Brasileira. Durante a permanência nessa instituição (1958-1960) aprofunda os estudos teóricos que serviriam de base à estruturação do curso de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, por ele criado em 1961.
Exerce a atividade docente até a aposentadoria, em 1978, continuando, porém, a orientar dissertações e teses até 1992. Do contingente de pesquisadores, professores e críticos que formou sobressaem os nomes de Roberto Schwarz, Walnice Nogueira Galvão, Davi Arrigucci Jr. e João Luiz Lafetá.
Em sentido horário:
Em 1944, os amigos Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes, Antonio Candido e Lourival Gomes Machado (da esquerda para a direita), que integravam a equipe responsável pela revista Clima, reunidos na Praça da República, em São Paulo
Antonio Candido ministra aula, em agosto de 1963
Antonio Candido entre as filhas: Marina de Mello e Souza, Laura de Mello e Souza e Ana Luisa Escorel (da esquerda para a direita)
Em ato político, Antonio Candido participa de assembleia em campus universitário, durante mobilização grevista
(1ª, 2ª e 3ª imagens: Acervo Ouro sobre Azul; 4ª imagem - AC com as filhas: Guilherme Maranhão)
Militância política
No início de 1943, por influência de Paulo Emilio Salles Gomes, jovem ativista que se especializaria em cinema e futuro professor da USP, Antonio Candido integra-se a grupos de ação política que se opõem à ditadura do Estado Novo. As discussões teóricas e o convívio com militantes como Germinal Feijó (líder estudantil), Eric Czaskes (litógrafo), Paulo Zing (jornalista) e Paulo Emilio foram decisivos para seu amadurecimento político.
No início de 1945, participa do 1º Congresso Brasileiro de Escritores, evento que permitiu a tomada de posição dos intelectuais contrários ao Estado Novo. Com o afrouxamento do regime, a frente que aglutinara os movimentos de resistência divide-se e Antonio Candido ajuda a consolidar a União Democrática Socialista (UDS). Com a dissolução desta última, adere à Esquerda Democrática, que em 1947 altera o nome para Partido Socialista Brasileiro (PSB). Foi candidato a deputado estadual por essa sigla, na qual ocupou o cargo de dirigente da seção paulista e militou até 1954.
Durante a ditadura instaurada em 1964, participa de comícios e atos públicos, nos quais denuncia episódios de violência e arbitrariedades cometidas pelo regime militar. Com outros intelectuais, publica a revista Argumento, censurada no quarto número. Torna-se membro da Comissão de Justiça e Paz, criada por D. Paulo Evaristo Arns, e milita na oposição, empenhando-se na luta pela anistia e redemocratização. Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), cujo manifesto assinou em 1980.
Convívio familiar
Em 1943, Antonio Candido casou-se com Gilda de Moraes Rocha (1919-2005), que conhecera ao ingressar na Faculdade de Filosofia e seria sua interlocutora intelectual. Ensaísta e crítica de arte, Gilda fundou a cadeira de Estética do Departamento de Filosofia da USP. Dessa união nasceram três filhas: Ana Luisa, que se tornou designer e escritora; Laura e Marina, que seguiram a carreira acadêmica como docentes do Departamento de História da FFLCH-USP.
Se a imagem pública de Antonio Candido suscitava admiração e respeito, o retrato intimista composto pela filha Marina revela-o como um ser humano notável. Para ela, o pai foi uma figura extremamente presente, que soube respeitar suas escolhas e oferecer apoio quando necessário. Era muito discreto, tinha um respeito genuíno pelo próximo e valorizava o trabalho de qualquer natureza, físico ou intelectual.
Era um exímio narrador de histórias e aprazia-lhe conversar com as pessoas. Era conhecido pelos amigos mais próximos como um fantástico imitador de tipos humanos. Memorizava poemas e trechos de livros e possivelmente reequilibrava as energias ao percorrer longas distâncias a pé.
Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido, em seu apartamento em São Paulo, em março de 2002; o casal manteve-se unido por mais de 60 anos, até a morte de Gilda em 2005
(imagem: Bob Wolfenson)
Vida e obra como legado
Antonio Candido pôde conviver com os netos e bisnetos. Há algum tempo, entretanto, declarou que se sentia “expulso do mundo contemporâneo”, talvez porque já não pudesse acompanhar a velocidade das transformações tecnológicas ou porque – na percepção de Marina – observasse com tristeza e estranhamento os acontecimentos cotidianos: a violência do terrorismo, o genocídio na Síria, os níveis de corrupção, a instabilidade das relações e o desrespeito ao próximo. O fato inegável é que sua história de vida permanece como paradigma de conduta e sua obra, como referência para as novas gerações.
Uma obra voltada para a compreensão do Brasil
Elaborado entre 1945 e 1957, o livro Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos (1750-1880) estuda o arcadismo e o romantismo, períodos nos quais se configura um sistema literário – composto pela tríade autor-obra-público – e se estabelece uma tradição.
Um de seus aspectos essenciais é a apresentação do juízo crítico das obras, que são selecionadas segundo uma perspectiva histórica.
Sobre o movimento arcádico, mencione-se a congregação dos escritores em academias e, como marcas da composição, a naturalidade da linguagem, em oposição ao barroco, o bucolismo e a adaptação interna dos modelos europeus.
No romantismo, que expressou o desejo de fundar uma literatura nacional, identificam-se o individualismo, a idealização do real, a religiosidade e o indianismo. Gonçalves Dias e José de Alencar aqui fixaram o padrão a ser imitado pelos sucessores. A crítica romântica, que representou a consciência literária do período, orientou os escritores e estabeleceu o cânone ao identificar autores do passado e publicar suas obras.
Crítica e Sociologia (in Literatura e Sociedade)
A Sociologia da Literatura estuda a relação entre obra e público ou entre um gênero literário e as condições sociais. À crítica literária cabe investigar como o fator social integra-se à estrutura da obra e confere-lhe um valor estético.
No século XIX, a crítica valorizava o grau de condicionamento da obra à realidade. Posteriormente, considerou a obra como uma estrutura fechada na qual importavam as operações formais entre seus elementos.
Dialética da Malandragem
Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, não constitui propriamente um romance documentário porque, entre outros pontos, não descreve a elite dirigente ou os escravos; seu herói é folclórico, do tipo malandro, e não picaresco (como se admitia).
Em seu universo de relações humanas, o qual espelha a sociedade brasileira do século XIX, há dois hemisférios: o da ordem e o da desordem, entre os quais transitam, em um jogo dialético, os personagens. No mundo a que estes pertencem não há erro, pecado, repressão, remorso ou culpa.
A literatura como um direito
No ensaio O Direito à Literatura, Antonio Candido esclarece que todos os povos têm um acervo de criações literárias, pois a literatura é um fator de humanização que preenche a necessidade de fabulação do ser humano. A obra literária expressa uma visão de mundo, constitui uma forma de conhecimento e propõe-nos um modelo de organização (por palavras) que impressiona o intelecto.
No Brasil, a estratificação social priva as camadas menos favorecidas do acesso à cultura erudita, confinando-as à literatura de massa e à sabedoria popular.