Uso do açaí beneficia a realização de cirurgias intraoculares

Composto desenvolvido a partir de fruta brasileira é eficaz, seguro e mais barato que os convencionais

Juliana Narimatsu

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Imagem: Lets (CC BY-NC-ND 2.0)

Facilitar os procedimentos cirúrgicos intraoculares, por meio de uma técnica natural, barata e acessível, que permite visualizar os tecidos microfinos do olho, de forma eficaz e segura. Foi com esse objetivo que pesquisadores do Departamento de Oftalmologia e Ciências Visuais da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo desenvolveram um corante feito à base de antocianina, substância encontrada no açaí (Euterpe oleracea), fruta originária da Amazônia. 

“O composto, criado a partir de matéria-prima da flora brasileira, pode tornar-se, em breve, um produto comercial muito mais barato que os corantes sintéticos atualmente disponíveis no mercado. Além disso, é um antioxidante com evidências preliminares – ainda não conclusivas – que sugerem maior segurança para uso intraocular que a dos corantes já existentes. Tal resultado, ao ser apropriado pela saúde pública, representa um ganho tanto para os pacientes quanto para os profissionais de saúde que realizam cirurgias vitreorretinianas”, comenta Mauricio Maia, coordenador do estudo e professor adjunto do departamento. 

O corante é aplicado na parte interna dos olhos para facilitar a identificação das membranas e dos tecidos transparentes que irão passar por alguma intervenção. A técnica, denominada cromovitrectomia, é usada principalmente em cirurgias da retina (camada mais interna do globo ocular, responsável pela formação da imagem) e do vítreo (conteúdo gelatinoso que preenche quase todo o espaço intraocular). 

“A retina, por exemplo, apresenta estruturas extremamente finas: algumas delas possuem cerca de um milímetro, dividido em 100 partes. É extremamente difícil a identificação intraoperatória, mesmo com microscópios de alta resolução. Os corantes, assim, são fundamentais para facilitar a visualização e realização da cirurgia”, argumenta Maia. Os procedimentos operatórios citados são necessários para doenças que comprometem o fundo dos olhos, como a retinopatia diabética, o buraco macular, a membrana epirretiniana, a síndrome de tração vitreomacular e o deslocamento da própria retina ou do vítreo, entre outras. Doenças com potencial, inclusive, de causar cegueira total.

Os corantes utilizados atualmente são a indocianina verde – mais tóxica –, a triancinolona e o azul brilhante, cujos custos variam entre R$ 200,00 e R$500,00 por dose. Tais substâncias não são capazes de colorir todas as estruturas essenciais à cirurgia, sendo necessária a utilização de mais de um corante para as diversas etapas cirúrgicas. No entanto, quando aplicadas em excesso, corre-se o risco de causar atrofia nas camadas da retina. “Nossa busca se concentrou, então, em um produto menos tóxico e mais eficiente”, pontua. 

A pesquisa iniciou-se em 2010 e analisou mais de vinte opções de corantes naturais já conhecidos pelos indígenas – urucum, açafrão, pau-brasil e beterraba, entre outros –, e utilizados para a pintura da pele. Foram feitos testes laboratoriais de pH, de cor e de adesão da antocianina às membranas intraoculares. 

O açaí, no caso, revelou capacidade de tingimento superior, deixando os tecidos mais visíveis, além de não causar alterações identificáveis em 78 olhos cadavéricos testados com os diversos corantes da flora brasileira. O produto demonstrou afinidade na coloração da membrana limitante interna (localizada na parte central da retina, onde estão as células responsáveis pela identificação dos pormenores e cores da visão) e do vítreo. Concluiu-se, portanto, que as moléculas antioxidantes, com capacidade de tingimento arroxeado das antocianinas presentes no extrato do fruto, podem ser substitutas dos atuais corantes sintéticos. 

“Esta descoberta é um exemplo – na área da ciência – de que ideias criativas, que atraem o financiamento público para a universidade brasileira, podem favorecer toda a sociedade. A novidade em utilizar um fruto nacional, bastante popular, para beneficiar os pacientes é extremamente importante. Acreditamos que essa conquista precisa ser divulgada para demonstrar a competência que o Brasil possui no desenvolvimento de novas ideias e de tecnologias criativas”, justifica Maia.

Procedimentos finais 

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Mauricio Maia, coordenador do estudo

Após o estudo experimental, o grupo de pesquisadores verificou a eficácia e a segurança do corante feito à base de açaí, formulado na concentração de 25%. Participaram dessa etapa 25 pacientes que apresentaram diagnóstico de buraco macular idiopático (cujo sintoma mais comum é a perda da visão central por conta de uma mancha ou distorção) por, pelo menos, dois anos. Todos eles foram submetidos a testes clínicos (avaliação física e pré-anestésica e demais exames oftalmológicos) e às cirurgias intraoculares. 

A cada procedimento cirúrgico, utilizando-se o corante do açaí, os dez diferentes cirurgiões envolvidos responderam a um questionário que avaliou a capacidade do corante em tingir temporariamente as membranas, classificando-a em uma escala de 0 a 10. A nota individual dada pelos cirurgiões correspondeu à experiência prática de usar a substância à base de açaí, comparando-a com outras do mercado. O resultado da pesquisa apresentou uma média de 8,8.

“A enquete informou sobre duas importantes vantagens: o corante roxo, por ser mais denso, mais pesado que a água, chega diretamente aos tecidos, não havendo a necessidade de intervenção técnica, um tipo de jato, para a sua aplicação, procedimento que pode prejudicar a retina. Além disso, determinadas membranas, como a hialoide posterior – específica dessa intervenção cirúrgica –, foram facilmente observadas. A substância foi considerada, assim, útil em todos os casos”, resume Maia.

Já em relação aos exames de acompanhamento dos pacientes, realizados nos seis meses posteriores à cirurgia – que fizeram parte das fases I e II do ensaio clínico – e até o momento, foram observadas segurança e eficácia próprias à boa técnica. O coordenador do estudo ressalta a importância do trabalho em equipe, no qual mais de 80 profissionais foram diretamente envolvidos. 

“Acreditamos que o corante natural, em relação aos convencionais, além de ter o potencial de ser mais barato, pode ser também mais seguro. Essa última questão está sendo estudada a partir de um modelo celular, e supomos, ainda, que as antocianinas podem ter um papel importante nas cirurgias vitreorretinianas como quelar (ligar-se a uma molécula danosa, que pode destruir as células) o oxigênio reativo – conhecido como oxigênio singleto –, liberado durante o procedimento cirúrgico e que é tóxico para a retina. Isso é uma grande vantagem para a substância extraída da fruta brasileira.” 

O próximo passo dos pesquisadores é aperfeiçoar o composto para inseri-lo futuramente no mercado. O estudo é financiado com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e de parcerias público-privadas. Em 2010, o corante natural foi patenteado pela Unifesp, que detém, portanto, sua propriedade intelectual. 

“O grande desafio agora é transformar a substância em produto comercial, para benefício dos pacientes, o que deve obrigatoriamente passar pelas fases e processos regulatórios da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”, conclui Maia. “Temos convicção de que será possível obter um produto útil aos pacientes brasileiros e do exterior”.

 
tubos de ensaio com diferentes cores

Diferentes tonalidades da coloração roxa do corante composto pelas antocianinas do fruto do açaí, de acordo com os níveis distintos de PH e osmolaridade, corrigidos para uso em humanos

placa

Diferentes tonalidades da coloração roxa dos diversos compostos das antocianinas do fruto do açaí, de acordo com PHs e osmolaridades distintas. O corante com PH fisiológico e osmolaridade adequada para uso no olho humano encontra-se na gota central da Placa  de Petri

injecao corante

Injeção controlada do corante desenvolvido, demonstrando a facilidade para tingir as estruturas alvo do olho, minimizando a possibilidade de danos durante o ato cirúrgico

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Etapa cirúrgica da remoção da primeira camada da retina (membrana limitante interna). O corante tem a capacidade de tingir de roxo a membrana interna, facilitando sua remoção ao redor do buraco macular

Imagens: arquivo do pesquisador

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