Narradores indagam os tempos da ditadura e o seu legado

Pesquisador investiga como são escritas as memórias e histórias que lidam com os efeitos da transição entre o regime instituído em 1964 e a redemocratização brasileira

Juliana Narimatsu

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Em um contexto de forte censura à imprensa e às artes, não deve ser emblemática a imagem ao lado. Data: 1970. Local: Brasília (Imagem: Rocha, Linsker e Brito - 2002)

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No decorrer dos enfrentamentos com manifestantes, as forças de repressão foram incorporando novas ferramentas ao seu arsenal, que iam de cassetetes eletrificados a caminhões que disparavam jatos d’água fortíssimos. Data: 1968 (Imagem: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro)

31 de março de 1964. Os movimentos oposicionistas ao governo, formados por civis e militares, afastam o presidente João Goulart do poder; estopim para ruptura democrática e instauração de um regime que começa a fechar o país. A dissolução de todas as liberdades políticas e a radicalização da repressão e da violência resumem um período que marcou a história do Brasil. A mais longa ditadura, que perdurou por mais de duas décadas (até 1985), deixou fragilidades e traumas que estão sendo discutidos nos dias de hoje.

E qual história não provoca uma reação em uma pessoa? Seja oral ou escrita, seja memorialista ou ficcional, quando uma narrativa é apresentada, ela desperta reflexões que, inclusive, incitam a mudanças. O papel daquele que relata é fundamental para esse processo. O narrador, de variadas facetas, se torna uma preocupação dos autores contemporâneos, justamente por ser “um reflexo do tipo de arte que produzem e, mais, agente de suas inquietações, investimentos e, sobretudo, ideologia”, explica Ricardo Lísias. O narrador, aliás, possui a capacidade de realizar a ponte do eu para o coletivo, ao compartilhar suas experiências e transferir o seu testemunho para o outro.

História e narrador, esses são os eixos que norteiam a pesquisa de Ricardo Lísias, escritor e pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) – Campus Guarulhos. Lísias investiga como algumas tendências da literatura lidam com os efeitos da transição entre a ditadura militar e a redemocratização brasileira, em especial a maneira como os narradores são constituídos. O trabalho, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), está em sua fase final, sob supervisão de Mirhiane Mendes de Abreu, docente do Departamento de Letras da EFLCH/Unifesp. 

Para facilitar a exposição dos argumentos, a pesquisa de Lísias foi dividida em três momentos: o primeiro estuda o papel da memória de envolvidos na resistência à ditadura, no caso, Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis; o segundo realiza uma reflexão sobre a sociedade brasileira do fim da ditadura militar a partir dos personagens de Sérgio Sant’Anna e João Gilberto Noll; já o terceiro trata da questão do legado, analisando a produção de Rubem Fonseca.

Memória como artifício

O Que é Isso, Companheiro? (1979), escrito por Fernando Gabeira, e Os Carbonários (1980), de Alfredo Sirkis, são parecidos em muitos aspectos, apesar de compartilharem memórias de indivíduos distintos. Ambos retratam a passagem de seus autores pela luta armada brasileira, ao descrever suas ações nos grupos guerrilheiros até finalizar com o episódio de exílio fora do país. “As semelhanças são bem maiores que as diferenças”, constata Lísias. Na verdade, as similaridades não estão apenas nos enredos apresentados, mas também, e sobretudo, nos recursos explorados para a construção dessas narrativas.

Em diferentes formas e intensidades, a violência encontra-se presente nos livros, “talvez o que mais chame atenção, já que praticamente constitui os narradores ou, se não tanto, cerca-os o tempo inteiro”, reforça o pesquisador. A supressão dos direitos civis, por exemplo, é expressada pela censura sofrida por Gabeira logo no início de sua carreira jornalística ou pela repressão presenciada por Sirkis nos movimentos estudantis. Já o ato físico, mais significativo, é visto ao longo das narrativas não só pelos riscos que correm os protagonistas e seus companheiros, mas pela constante possibilidade de prisão – que, de fato, acontece com Gabeira – e de tortura. As relações íntimas também são afetadas com o desaparecimento de colegas próximos ou quando os narradores presenciam a violência de perto. “Os afetos acabam sempre fraturados por causa da repressão”.

O anúncio da possibilidade de tortura, de acordo com Lísias, propicia um sentimento inverso ao de repulsa, fazendo com que floresça uma empatia entre leitor e livro praticamente obrigatória. “Se já nos prendemos pelo ritmo vertiginoso da narrativa e o inconformismo pela situação do país, a ameaça de tortura nos deixa solidários com os narradores e, por fim, aderimos a eles”. Além disso, expor esse tipo de recordação transmite a ideia de que esses protagonistas conseguiram vencer seus traumas e/ou estão em busca de uma espécie de lucidez, pois as vítimas de violência acabam, por muitas razões, silenciando-se. Dessa forma, apesar de serem tormentos difíceis de se superar e compartilhar, em termos literários, tornam-se positivos para os narradores, que acabam estabelecendo até mesmo uma aproximação com o público. Contudo, vale salientar um ponto em especial: nos textos de Gabeira e Sirkis não há indicações de um tipo de “visão de sacrifício” no que diz respeito à violência física, ou melhor, a tortura aparece apenas insinuada, não há detalhes sobre como aconteceu ou mesmo se os próprios autores passaram por ela.

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O desgaste da relação entre policiais e estudantes pelos frequentes enfretamentos levou a extremos de autoritarismo e violência. Seguidamente, os manifestantes presos eram constrangidos e humilhados. Era usual a prisão e fichamento de grandes grupos de jovens, que eram interrogados por vezes sob violência física e psicológica. Data: 1968 (Imagem: Manchete, 06.06.68)

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Ainda que impotentes para alterar os rumos do golpe, os estudantes tentaram organizar, a partir de sua sede, passeatas e a distribuição de panfletos conclamando a população à resistência no Rio de Janeiro. Por sua coragem na defesa da legalidade, a União Nacional dos Estudantes pagou com o criminoso incêndio de sua sede no dia 1º de abril. Data: 01.04.64 (Imagem: Abramo e Maués - 2006)

Lucidez dos narradores

A lucidez dos narradores é outra marca encontrada nos enredos, pois os protagonistas constantemente refletem sobre suas ações e apontam erros em suas trajetórias. Aqui, portanto, é exposta uma autocrítica que adquire uma dupla função literária. “A relativização da própria ideologia e a exposição dos defeitos de si mesmo e dos outros. Em primeiro lugar, seguem o clichê de criar figuras contraditórias e complexas, mais ou menos como qualquer pessoa real. Depois, esse tipo de recurso costuma gerar no leitor novamente aquele sentimento de empatia e, dependendo da habilidade do autor, adesão a suas hipóteses políticas, atitudes e opções. Afinal de contas, são gente como a gente”. 

Conclui-se, assim, que os elementos descritos estabelecem uma conexão entre público e narradores, o que pode contribuir para a aceitação e a disseminação da ideologia transmitida pelas obras. “Na teia de vozes que estavam se constituindo durante o fim da ditadura militar, as de Gabeira e Sirkis aparecem ocupando um lugar privilegiado e se expressando com força e muita habilidade de convencimento”. Para o pesquisador, os relatos trazem a percepção de uma experiência derrotada, ficando a vitória que atribuem à ditadura bastante fortalecida. “Não é exagero dizer que o tempo inteiro os dois livros, com o argumento de analisar as próprias fraquezas ou obedecer a algum tipo de impulso de integridade, diminuem a importância dos grupos de resistência, chegando em alguns momentos até à zombaria”.

Os valores propagados pelas obras, por fim, provocam dois efeitos que interferem nos diferentes contextos vividos naquela época. Um deles, mais amplo, está relacionado às pautas políticas discutidas no momento de transição da ditadura militar para a redemocratização, no caso, a conivência da anistia judicial aos crimes. Já o outro, mais pessoal, refere-se aos papéis que os próprios autores assumiram após o retorno do exílio. Gabeira e Sirkis chegaram ao Brasil com a intenção de voltar às atividades políticas e suas obras serviram para recolocar o nome deles em circulação. 

“Foi deixada uma vida democrática entre nós bastante frouxa. Não é possível esperar que a justiça vá garantir progresso quando há torturadores identificados e muitas vezes confessos que não são interpelados pelo sistema judiciário. O Que é Isso, Companheiro? e Os Carbonários, ao ridicularizarem e tirarem a legitimidade da resistência à ditadura, caminham em direção a um discurso que procura estar a favor do pensamento oficial. Pode estar aqui o germe de uma literatura sempre a favor da norma, estranha à contestação e tentando agradar o maior número possível de leitores. Seus autores, além de tudo, também queriam votos”.

Contudo, Lísias reconhece a importância dessas obras, já que “confirmam a hipótese de que, depois de um período traumático, há grande necessidade de produção de memória”. Tal evidência não está apenas no sucesso que ambas adquiriram na época de seus lançamentos – próximo ao fim da ditadura militar –, mas também por realizarem “um registro histórico reforçando a veracidade dos fatos”. Testemunhar momentos delicados como uma ditadura alcança finalidades distintas, de expiação do sofrimento à necessidade de expor um acontecimento para que ele não se repita. Outra possibilidade é a reconstrução e a restauração de laços sociais e comunitários perdidos em razão da violência e do exílio. Há também a função terapêutica desse processo, pois quando se compartilha experiências, os traumas e as angústias individuais são transferidas para um coletivo, tornando-as, assim, um acontecimento social e, mais ainda, político. Além disso, denúncias, correções de distorções históricas e novas versões de determinados fatos podem vir à tona.

Uma sociedade fraca

Sérgio Sant’Anna e João Gilberto Noll são autores que se consagram no fim da ditadura militar com os respectivos livros O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982) e O Cego e a Dançarina (1980). Não só nesses contos, mas também em outras ficções lançadas posteriormente, nos primeiros anos democráticos do país, ambos os escritores propõem criar protagonistas que refletem o que a história fez com a sociedade daquela época: “são personagens doentias, perdidas, esquálidas e sofrendo; quem deve falar são os fracos, a parcela da população que, portanto, representa o Brasil”, pontua Ricardo Lísias. 

Uma das características notáveis desse período nas obras de Sant’Anna e Noll é a desidentificação. Nomes próprios raramente aparecem, sendo os personagens designados pela profissão ou por pronomes pessoais, como é o caso dos Ele e Ela de Um Romance de Geração (Sant’Anna, 1980) ou no quarto conto de O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, quando o Cristóbal contracena com o Expectador, figura identificada apenas por uma ação que realiza ao longo da história. 

Além do anonimato, a questão da desidentificação traz a ideia, também, de proteção, por não se revelar, ou de preparação para a ausência de todas as outras coisas – o desaparecimento dos conhecidos, da mulher, do dinheiro e, inclusive, da própria vida. Tal recurso é explorado constantemente em A Fúria do Corpo (Noll, 1981), nas várias situações em que o narrador (sem nome) não confere nenhuma característica individualizante para as pessoas com quem se relaciona, descrevendo-as como o menino traficante ou o homem que contrata serviços de prostituição. “O narrador recusa-se a ter um nome, por segurança. Se as garantias individuais são um dos principais pilares da civilização, temos, aqui, um paradoxo: para estar seguro é preciso deixar de ser um indivíduo. A conclusão é fácil: a civilização não garante mais segurança”, esclarece o pesquisador.

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No Rio de Janeiro, a Greve de Protesto contra a censura em defesa da cultura mobilizou um grande número de artistas que paralisaram as peças e foram para as ruas. Grande número dos cartazes dessa manifestação foram confeccionados pelo cartunista Ziraldo. Data: 19.03.68 (Imagem: cervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo) 

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As operações de busca e detenção em larga escala, envolvendo grande número de policiais e militares, eram feitas contra a população em forma de blitz: ocupação militar de determinada área para buscas de casa em casa. As pessoas sem documentação adequada eram consideradas suspeitas e frequentemente detidas para averiguações. Data: 1969 (Imagem: Schwarcz - 1998)

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 Uma das estratégias da campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita foi a realização de entrevistas com familiares de mortos e desaparecidos, de congressos e manifestações de denúncias. Data: 1978. Local: s/l. (Imagem: Martins, Martins e Palmeira - 1978)

O que sobra é o corpo

Em contrapartida à escassez de identidade, a imagem do corpo é uma particularidade presente nas obras, sustentada por diferentes representações. “Na verdade, é o que sobra para narradores e personagens”, comenta Lísias. Em certos contextos, a alusão se faz por meio da sobrevivência dos indivíduos, como no conto Alguma Coisa Urgentemente (Noll, 1980). O leitor acompanha a história de um garoto que busca meios de viver sozinho, já que seu pai está ausente lutando contra a ditadura militar. O ápice da trama está no momento em que o menino encara a morte de perto, ao ver o corpo do próprio pai agonizando diante de seus olhos enquanto cresce um sentimento de abandono maior que tristeza. 

A prostituição, a única saída para esses corpos, é outra temática intensamente explorada. “O sexo é uma negociação entre organismos combalidos e sem afeto. No máximo, serve para que um corpo se ampare em outro, pois não lhe resta mais nenhuma base". Para os escritores, a cópula é um possível complemento ou confirmação da precariedade. Em Bandoleiros (Noll, 1985), no auge da decadência, os personagens não concretizam o ato sexual, restando-lhe a masturbação mútua. “Sant’Anna e Noll veem que o afeto não serve para construir subjetividades, se não as destrói completamente, deixa-as degradadas”, pontua Lísias.

Em razão da falta de qualquer aproximação física e afetiva, conclui-se que os personagens são seres profundamente solitários, que vivem na cidade grande justamente por ser um “ambiente perfeito para eles desaparecerem, como aconteceu com seus nomes, além de se tornar palco para os seus problemas e tensões”. 

Em Alguma Coisa Urgentemente, por exemplo, o pai do narrador retira seu filho de um espaço rural, levando-o para cidade por acreditar ser mais seguro, mas é nesse mesmo lugar que o pai morre enfrentando a repressão do Estado. “De um jeito ou de outro, para indivíduos que ficaram sem quase nada além do corpo, a metrópole é o meio em que o poder do governo é sempre mais atuante e efetivo. Por meio da constituição e localização desses personagens, os escritores indicam que o estado de exceção não iria terminar no Brasil naquela época”.

Como mencionado no bloco anterior, as características das figuras de Sérgio Sant’Anna e João Gilberto Noll representam não só a visão dos autores sobre a sociedade no fim da ditadura militar, mas, e principalmente, contribuem para a construção do retrato da história brasileira desse período. “Narradores e personagens fracos, ambiente tenso e a autoridade agindo sobre eles. Na verdade, é este o Brasil que estava saindo da ditadura: débil, fragilizado e ainda mais uma vez de joelhos diante dos aparelhos repressivos do Estado ”, declara o pesquisador.

O passado condena

Mesmo que existam discussões sobre a natureza do golpe, é fato que certos setores da sociedade se uniram aos militares para criar condições para a ruptura democrática. Entre os grupos civis, o mais importante e atuante, segundo Ricardo Lísias, foi o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes). O Ipes reuniu membros das classes média e alta com o objetivo de desenvolver estratégias e promover ações que propagassem seus interesses políticos e econômicos, sobretudo o de desestabilizar o governo de João Goulart. 

A imagem construída pelo Ipes, na realidade, foi de uma associação de pesquisa que investigava os problemas brasileiros propondo soluções do ponto de vista liberal. Suas atividades envolviam distintas áreas, mas Lísias traz destaque ao financiamento, supervisão de criação e distribuição de uma série de documentários divulgados durante os anos que antecederam ao golpe de 1964. “Estavam nos cinemas do país inteiro, além de clubes, fábricas, centros culturais e quaisquer outros espaços dispostos a abrir uma tela branca para veicular sua propaganda conservadora”. Tal material, dirigido por Jean Manzon, possui, no entanto, uma controvérsia: a participação de Rubem Fonseca no desenvolvimento dos roteiros. Lísias tenta elucidar essa questão ao realizar uma comparação formal entre os vídeos e a obra do escritor.

A principal atuação de Rubem Fonseca no instituto foi nos grupos de Opinião Pública, trabalhando com jornais e filmes, e de Publicações/Editorial. Ambos proporcionaram ao escritor em início de carreira muitos contatos com profissionais da mídia, do mundo literário e das agências de publicidade, além de alguns generais. “Ir atrás de espaço para publicação, divulgação e tudo que o pudesse ajudar em um meio que nunca foi generoso com iniciantes. O trabalho aplicado e fiel de Fonseca no Ipes fez muito bem a ele”, comenta Lísias. Vale compreender, no entanto, que a intenção do autor não estava em promover sua carreira; antes de tudo e principalmente, ele se enquadrava na ideologia da organização, a ponto de ocupar cargos de liderança.

O primeiro lançamento de Fonseca, intitulado Os Prisioneiros, saiu em 1963 pela editora GRD, de Gumercindo Rocha Dorea, empresário contribuinte do Ipes. A obra abre uma sequência de narrativas curtas até o ano de 1973, quando foi publicado o primeiro romance do escritor, O Caso Morel. “É possível dizer com segurança que à época em que os roteiros dos curtas metragens estavam sendo redigidos, o autor também mostrava interesse por textos curtos”, analisa o pesquisador. 

Em relação ao conteúdo, de acordo com Lísias, existem poucos elementos que remetem à crise política do país; ora tratam o comunismo com um tom irônico, como no conto O Inimigo (1963), ora apresentam pontos do pensamento liberal, como em Henri (1963). “É arriscado tirar qualquer conclusão no que diz respeito à narrativa. Grande parte das citações se estrutura a partir de uma oposição, esquematismo que justamente povoa a propaganda do Ipes: esquerda versus direita, ordem conservadora versus caos comunista, Estado versus iniciativa privada”. 

A estrutura de compor pares opostos pode ser exemplificada ao retratar a temática violência, explorada em muitos textos de Fonseca, como também nos roteiros do Ipes. A questão, entretanto, acaba contrabalanceada por algo que a diminui. No vídeo Nordeste Problema Número 1 (1962), um caixão com uma criança morta, carregado por outros jovens, é exibido durante um intervalo considerável do documentário. Na sequência, a cena é amainada com as propostas do Ipes, soluções destinadas àquela população, moradores da região Nordeste do país. Já no conto Madona (1965), tal característica pode ser vista no momento em que o personagem escreve com urina o nome da amada, acrescido de dois corações, sendo que um deles é varado por uma flecha inacabada.

Um ponto em comum nos textos de Fonseca é o hábito de ridicularizar artistas. “Sempre bobos, frágeis e bisonhos, talvez sejam, junto com a bandidagem, as figuras mais patéticas e desgovernadas dos seus livros”, pontua o pesquisador. “Lembramos que esse grupo, em geral, sempre esteve no polo oposto ao Ipes”. Outra particularidade observada é a natureza conservadora dos narradores e personagens principais. “É como se, mesmo quando feita por pessoas repugnantes ou francamente doentias, a discussão não pudesse ser conduzida por nenhum outro aspecto ideológico. É a voz do conservadorismo liberal que Rubem Fonseca eleva”. 

É evidente que, enquanto os recursos mencionados foram desenvolvidos em seus primeiros livros, Rubem Fonseca concomitantemente exercia suas atividades no Ipes. Contudo, em 1975, houve um marco na carreira do autor que inverteu a sua atuação durante esse período ditatorial: o livro Feliz Ano Novo sofreu censura sob alegação de atentar à moral e aos bons costumes da família brasileira. Depois desse acontecimento, o escritor começou a se envolver cada vez mais com a operação de neutralização da ditadura, “apoiando para que a transição se fizesse de maneira negociada e sem riscos para os envolvidos com o regime militar”, explica Lísias. Além disso, a clareza sobre suas ações dentro do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais acabou esmorecendo.

Apenas em 1994, com o artigo Anotações de Uma Pequena História, publicado na Folha de S. Paulo, Rubem Fonseca retomou esse momento em sua vida, argumentando que sua participação no Ipes foi pela crença nos princípios democráticos e de desenvolvimento, em especial das regiões menos favorecidas, que inspiravam a organização. O autor não menciona sua contribuição nos documentários e afirma seu afastamento após o golpe de 1964. Ricardo Lísias, no entanto, coloca em dúvida essa declaração, já que o legado deixado pelo escritor na época não condiz com sua justificativa. “Talvez fosse mais lúcido que o grande escritor parasse de se debater contra os documentos e, por fim, assumisse a extensão e a gravidade do seu trabalho no instituto. Entre os roteiros dos documentários filmados por Manzon para o Ipes e os primeiros contos por Fonseca existem, além de tudo, inúmeras, enormes e sintomáticas coincidências”.

Sobre o escritor Ricardo Lísias

escritor Ricardo Lísias

Imagem: Alex Reipert

Nascido em São Paulo em 1975, Ricardo Lísias estreou com Cobertor de Estrelas (1999, Rocco) e, até o momento, publicou 11 livros. Desenvolveu textos críticos, algumas resenhas para jornais e trabalhos no ramo da literatura infantil. Traduziu alguns textos, como também seus escritos foram traduzidos para diversas línguas. Graduado em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é mestre em Teoria e História Literária pela mesma instituição e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Abaixo, algumas obras do autor reconhecidas no campo literário:

O Céu dos Suicidas, lançado em 2012 pelo selo Alfaguara, foi eleito pela Associação Paulista de Críticos de Arte o melhor romance do ano e foi também finalista do Prêmio Jabuti (categoria romance) e do Prêmio São Paulo de Literatura em 2013. A história é sobre um jovem colecionador que passa pela perda de um amigo de longa data, André, que se suicidou. Com sentimentos de remorso por não ter sido capaz de salvá-lo, o protagonista busca respostas lançando-se em uma viagem, mental e física, para rememorar os últimos momentos do suicida.

O Livro dos Mandarins, publicado em 2009, também pelo selo Alfaguara, foi finalista, na edição de 2010, do Prêmio São Paulo de Literatura. A obra narra a trajetória de Paulo, um executivo bem-sucedido, obsessivo e ambicioso. Seu objetivo é ser selecionado, entre os candidatos do banco em que trabalha, para a única vaga na China. Apesar de muito estudar e pesquisar, o protagonista não conta com um pequeno detalhe: os planos reservados a ele. 

Duas Praças, de 2005, pela Editora Globo, ficou em terceiro lugar na 4ª edição do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira. O romance apresenta Maria e Marita, duas histórias paralelas e perpendiculares. O enredo percorre pelas muitas possibilidades alienantes envolvidas pelas ações, pensamentos e desejos cotidianos.

Grupo de trabalho de Perus identifica desaparecido Dimas Antônio Casemiro

Confirmação foi constatada por meio de análise genética e estudos antropológicos, médico-legais e odontológicos de uma das ossadas encontradas em cemitério clandestino de São Paulo

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Grupo de Trabalho de Perus averiguando as ossadas encontradas (Imagem: Mayara Toni)

O dia 16 de fevereiro de 2018 é considerado um marco para o Grupo de Trabalho de Perus (GTP). Desde o início das suas atividades, a data registra a primeira identificação de uma das vítimas encontradas na vala clandestina do cemitério Dom Bosco em Perus, zona norte de São Paulo. Paulista de Votuporanga e dirigente do Movimento Revolucionário de Tiradentes, Dimas Antônio Casemiro foi morto aos 25 anos de idade por agentes da repressão política do regime militar. Sua identidade, após mais de quatro décadas desaparecido, foi confirmada.

A descoberta provém de um trabalho multidisciplinar do GTP em parceria com a International Commission on Missing Persons (ICMP). A entidade internacional, com sede administrativa em Haia, na Holanda, é responsável pelas análises genéticas realizadas em seu laboratório em Sarajevo, Bósnia. O primeiro lote enviado continha 100 amostras biológicas coletadas das ossadas, além de 77 amostras sanguíneas dos familiares. Elas foram levadas pessoalmente ao laboratório pelo coordenador científico do GTP, Samuel Ferreira, e por um representante dos familiares de desaparecidos políticos, Helder Nasser, em setembro passado.

Os resultados dos exames de DNA indicaram vínculo genético entre os restos mortais pertencentes a um dos casos com os familiares de Casemiro: uma irmã, um irmão e o filho, que perdeu o pai com três anos. O laudo genético foi entregue pessoalmente, em São Paulo, pelo diretor de Ciência e Tecnologia da ICMP, Thomas Parsons, para o coordenador científico do GTP e a equipe de peritos. Com o resultado, o próximo passo foi confirmar a identificação por meio de exames antropológicos, médico-legais e odontológicos e também por meio da compatibilidade com as informações ante-mortem registradas, como estatura, idade, dentição e trauma compatível com ação de projétil de arma de fogo. De acordo com o relatório da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Casemiro foi morto entre 17 e 19 de abril de 1971 e o laudo necroscópico descreve quatro ferimentos causados por arma de fogo e atesta a morte por choque hemorrágico.

A intenção é, ainda este ano, entregar a segunda remessa com mais 200 amostras ósseas para análise genética. O grupo analisou 756 das 1.047 caixas que abrigam as ossadas, sendo que, em algumas, há ossaria de mais de uma pessoa. Além disso, foram coletadas amostras de sangue para exames de DNA de 33 famílias de desaparecidos políticos em 16 cidades do Brasil, havendo a necessidade de ainda reunir a amostra de mais sete famílias. 

O Grupo de Trabalho de Perus foi instituído no ano de 2014 com o objetivo de analisar os restos mortais encontrados nos anos 1990 em Perus. Acredita-se que as pessoas ali enterradas sejam desaparecidos políticos, vítimas da repressão durante a ditadura militar. O GTP é constituído por representantes da Universidade Federal de São Paulo, do Ministério dos Direitos Humanos, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo e da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

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LÍSIAS, Ricardo. The voice of the weak – characters and narrators of “redemocratization”. Artememoria Magazine, Princeton, issue 1, mar. 2018. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2018.

LÍSIAS, Ricardo. A grande arte de desaparecer: Rubem Fonseca e os documentários do Ipês. ArtCultura, Uberlândia, v. 19, n. 35, p. 43-54, jul./dez. 2017. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2018. 

LÍSIAS, Ricardo. Medicados e satisfeitos. Ars, v. 15, n. 29, p. 238–243, jan./abr. 2017. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2018.

LÍSIAS, Ricardo. O que os fortes queriam? Uma análise de O que é isso, companheiro? e Os carbonários. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n.48, p. 229 -246, maio/ago. 2016. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2018.

LÍSIAS, Ricardo. Dez fragmentos sobre a literatura contemporânea no Brasil e na Argentina. Em: TELLES, Edson; SAFATLE, Vladimir Pinheiro (org.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, p. 319 – 328, 2010.

LÍSIAS, Ricardo. Capitulação e melancolia. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, v. 76, p. 289 -293, nov. 2006. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2018.

LÍSIAS, Ricardo. Um autor em busca da grande tragédia. Revista USP, São Paulo, v. 58, p. 256-260, jun./ago. 2003. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2018.

Créditos imagens ditadura:

STARLING, Heloisa Maria Murgel; ROTTA, Vera (org.). Direito à memória e à verdade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 1 CD-ROM