Jovens desenvolvem dependência de redes virtuais

Trabalho revela um quadro alarmante de uso patológico de novas tecnologias midiáticas, especialmente entre adolescentes

Valquíria Carnaúba

Ilustração de uma jovem de perfil, ela segura um smarthphone nas mãos. A ilustração é preenchida com vários símbolos de redes sociais.

É urgente a inclusão do Transtorno de Dependência de Internet (TDI) na listagem oficial do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM-6), da Associação Americana de Psiquiatria. Quem faz a defesa é Denise De Micheli, chefe da disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas (Dimesad) do departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Hoje, o distúrbio consta apenas nos anexos do guia, o que significa que é tratado como uma condição de alerta, não como uma patologia com desfecho de caso”, afirma.

A pesquisadora, que faz coro com outros profissionais de saúde mental, fundamenta-se em diversos estudos recentes sobre o tema, incluindo a dissertação de mestrado que ela mesma orientou, intitulada O Impacto do Uso de Mídias Digitais na Qualidade de Vida de Adolescentes, apresentada em 2014 por Fernanda Davidoff ao Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) – Campus Guarulhos. 

Foram avaliados 264 jovens entre 13 e 17 anos. O trabalho, planejado de modo a identificar o perfil dos usuários de internet e mídias digitais e as consequências do comportamento à sua qualidade de vida, revelou que 68% deles sofriam de dependência moderada (transtorno denominado assim pelas pesquisadoras) em relação às tecnologias atuais (como smartphones, tablets e internet), enquanto que 20% enquadravam-se como dependentes graves.

Metodologia

O estudo avaliou 264 estudantes de escolas públicas e particulares por meio de Amostragem por Conveniência, técnica que consiste em selecionar indivíduos prontamente acessíveis para avaliação de pesquisadores. Os motivos, objetivos e a metodologia da investigação foram divulgados tanto para as escolas quanto para os alunos participantes do estudo, garantindo-se o sigilo das respostas e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Denise e Fernanda valeram-se de questionários específicos de identificação geral para a coleta de dados, a exemplo do The Pediatric Quality of Life Inventory (PedsQL), elaborado na Universidade do Texas e adaptado ao Brasil para medir a saúde relacionada à qualidade de vida de crianças e adolescentes saudáveis. Destaca-se, no entanto, o Teste de Dependência em Internet, primeira medida validada e confiável de uso dependente da rede. Desenvolvido por Kimberly Young, pesquisadora da Universidade de Pittsburgh (EUA), o teste é composto por 20 itens que avaliam os graus leve, moderado e severo de dependência em internet.

Consequências sociais

Diversas conclusões puderam ser tiradas a partir dos resultados, como a incorporação definitiva da tecnologia aos hábitos diários desses jovens. De modo geral, os alunos considerados dependentes leves apresentaram média mais alta de qualidade de vida nas áreas física, sentimental e social do que os demais grupos, mostrando que o uso que fazem da internet possivelmente não afetou esses setores. Por outro lado, os dependentes substanciais apresentaram menores médias nas esferas física, sentimental, social e escolar, indicando maior prejuízo nesses campos e menor qualidade de vida do ponto de vista global.

Quanto ao manejo de celulares e tablets, 33% mencionaram usá-los quando vão ao banheiro; 51% durante as refeições; 90% na cama, antes de dormir; e 92% afirmaram checá-los logo que acordam - antes de levantar da cama. Além disso, 79,7% confessaram voltar para casa e buscar seus aparelhos em caso de esquecimento, mesmo que isso cause atrasos em compromissos ou alguma outra forma de prejuízo.

Fotografia de Denise De Micheli, ela está em frente a uma prateleira de livros.

Denise De Micheli, chefe da disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas (Dimesad)

Conectados, esses jovens podem sofrer consequências ainda mais profundas. Segundo as pesquisadoras, 82% dos estudantes se preocupam com o que pode estar acontecendo nas redes sociais enquanto está ausente; 65% resistem ao sono ou dormem pouco para continuarem on-line; 61% acreditam ficar menos tímidos e mais seguros ao conversarem por meio de aplicativos de mensagens; 45% dizem sentir alívio no dia a dia; 30% sentem-se menos ansiosos; e 23% menos sozinhos.

A pesquisa indica que o abuso dessas tecnologias pode estar associado à baixa supervisão dos pais, já que 82% dos adolescentes de escolas particulares mencionaram não ter limites definidos por seus responsáveis – em oposição aos 30%, estudantes de escolas públicas, que possuem regras de uso delimitadas. “No entanto, essa limitação imposta aos estudantes do ensino público está relacionada mais ao custo do plano de internet do que a uma preocupação genuína com os excessos”, pontua Denise.

Apesar de o relacionamento ruim com os pais não ter uma associação muito clara com o abuso de internet e tecnologias, as informações coletadas mostram que 100% dos adolescentes classificados como dependentes leves mencionaram ter um bom convívio com seus pais, enquanto que 44% dos jovens enquadrados como dependentes substanciais apresentaram problemas significativos em diversas áreas de sua vida, alegando um trato regular com os responsáveis.

Uma geração impulsiva

O Brasil está entre os países com maior número de usuários da rede, por isso é razoável admitir que as gerações mais recentes são bastante íntimas das tecnologias, inclusive a ponto de acreditarem que o convívio seja dispensável. “A comunicação virtual tem inúmeras vantagens, como a disponibilidade de tempo para escrever e editar o que se pretende transmitir e enviar no tempo que convier, ou seja, o controle do tempo pertence ao indivíduo”, defende Denise.

Mas o que tem chamado a atenção de pesquisadores é o potencial que os relacionamentos virtuais possuem para encobrir ou mesmo intensificar outros distúrbios psicológicos. “O fato observado neste e em outros estudos, sobre adolescentes utilizarem o smartphone grande parte do seu tempo e durante suas atividades cotidianas, também pode ser indicativo de dificuldades no controle de impulsos, acarretando consequências negativas para suas vidas”.

Uma das investigações mais relevantes sobre o assunto, coordenada por Kimberly Young em 1996, registrou a participação de 600 usuários com sinais clínicos de dependência. O relatório foi apresentado à Associação Psicológica Americana e, desde então, inúmeras outras pesquisas foram desenvolvidas nesse sentido.

Mais tarde, Kimberly percebeu que a impulsividade em relação à internet é parte de um guarda-chuva maior do qual derivam as diferentes manifestações de controle dos impulsos. Sinais de alerta, como acessar a rede para fugir de problemas, pensar na internet quando está off-line, sofrer pela abstinência e descuidar do trabalho, dos estudos ou até mesmo dos relacionamentos pessoais, por causa da rede, podem configurar tal quadro. 

Por esses motivos, Denise assegura que a inclusão do referido transtorno ao DSM-6 é uma das grandes expectativas do momento. “Precisamos olhar para esses casos com a atenção que merecem. Descobrir se a dependência deriva de determinadas ansiedades ou é apenas um desdobramento de hábitos será o grande desafio dos profissionais de saúde mental”, finaliza.

Gráfico - Vantagens atribuídas ao uso de mídias tecnológicas e aplicativos de mensagens:  61% acreditam que sentem-se menos tímidos e mais seguros ao conversar por meio de aplicativos.  23% sentem-se “no controle da situação” quando mantém conversa por meio de mensagens. 43% atribuem como vantagem poder conversar com qualquer pessoa em qualquer lugar  e hora. 23% sentem-se menos sozinhos. Percepção de desconforto diante da impossibilidade de uso de midias sociais:  60% mencionaram achar que a vida seria muito chata e sem graça sem internet. 68% mencionaram ficar irritados quando não podem usar as mídias e/ou acessar internet. 65% mencionaram resistir ao sono ou dormir pouco para continuar conectados. 82% se preocupam com o que pode estar acontecendo nas redes sociais enquanto está ausente.

Referência:
CRUZ, Fernanda Alves Davidoff. O impacto do uso de mídias digitais na qualidade de vida de adolescentes. 2014. 99 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) - Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2014.