Brasil é o 5º país que mais mata mulheres

Apesar de alguns avanços inegáveis, principalmente no campo jurídico, o machismo, combinado com racismo, ainda constitui um sério desafio ao processo de construção de uma sociedade democrática

Carine Mota

Foto de uma mão fechada como se fosse dar um soco e ao fundo, uma mulher agachada se protegendo com medo

Até há quarenta anos, a justiça brasileira ainda previa a absolvição do marido assassino confesso da esposa adúltera. O crime era compreendido como ato em defesa da honra. Porém, os tempos mudaram. A adoção, principalmente, das leis Maria da Penha (7 de agosto de 2006) e Feminicídio (9 de março de 2015) promoveu um salto de qualidade no estatuto jurídico da mulher, embora ainda reste muito a ser feito.

No Brasil, a defesa dos direitos das mulheres sempre se confundiu com a luta contra todas as formas de opressão e autoritarismo. O feminismo surgiu no país no início do século XIX marcado por três ondas. A primeira foi centrada no direito ao voto e ao trabalho. A segunda, por volta dos anos 1960 e 1970, tinha como pauta a liberdade sexual, no quadro da luta contra ditadura. A terceira, na década de 1990, teve como pauta temas mais específicos, sem abandonar as questões mais gerais: a descriminalização e direito ao aborto assistido pelo Estado, violência doméstica, sexismo na escola e no trabalho, desigualdade salarial, direito à participação política.

Apesar de avanços importantes, as pautas, de forma geral, ainda seguem as mesmas, porque a estrutura permanece inalterada. Não houve mudanças significativas, sobretudo no campo dos direitos, e mais ainda no que se refere à condição das mulheres negras. “O feminismo é um movimento pela igualdade social, política e profissional independente do gênero”, aponta Angela Brandão Mendes, coordenadora do grupo Blogueiras Negras.

Uma mulher assassinada a cada 90 minutos

O feminicídio, definido como a perseguição e morte intencional de pessoas do sexo feminino, passou a ser classificado como crime hediondo pela lei sancionada em 2015. A cada hora e meia uma mulher é assassinada por um homem no país. O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo. A maior taxa de feminicídio ocorre no Espírito Santo, com 11,24 por 100 mil mulheres, seguido da Bahia com 9,08 por 100 mil. “Há uma naturalização da violência contra as mulheres. Falta aos profissionais estudar e estar atentos ao que o movimento feminista diz”, afirma a pesquisadora da Unifesp, Djamila Ribeiro.

Para a professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) Fernanda Bestetti de Vasconcellos, a luta contra o feminicídio é uma das bandeiras centrais do feminismo que, muitas vezes, é mal compreendido pela população. “O feminismo, não deveria ser visto como um movimento que se apõe aos homens. E, além disso, não é homogêneo, pois integra várias vertentes”, esclarece.

“Dentro do próprio movimento, algumas lutas principais vão tomando outras direções. Acredito que a corrente mais central do feminismo vai trabalhar com a ideia da busca de igualdade de direito e oportunidades para homens e mulheres”. O feminismo, diz Fernanda, está vinculado a uma agenda de esquerda, mas ele busca a igualdade de todas as mulheres independente das questões ideológicas. “O feminismo tem crescido muito no Brasil, principalmente nos ambientes acadêmicos e escolares. Meninas começam a se unir em forma de fórum virtual, em encontros presenciais para discutir o problema de violência que elas sofrem, preconceito ou outros fatores”.

Construções sociais

Cada vez mais, coloca-se para o conjunto da sociedade a questão da inadequação das identidades construídas com base no aspecto biológico. Desde quando nascemos já existe a distinção do feminino e masculino, a atribuição e designação sexual; com isso a separação de cores, roupas, brinquedos, entre outras coisas. A questão é que não há uma construção biológica nisso e sim social. A sociedade criou esse estereótipo e, desse modo, é impossível não ter um sexo no sistema (hetero)sexual. Para a filósofa Judith Butler, as imagens corporais que não se encaixam em nenhum dos dois gêneros ficam fora do humano. Segundo a antropóloga Gayle Rubin, é a dicotomia entre o sistema sexo/gênero que transforma uma matéria-prima em um produto, como no caso de comparar o sexo feminino ao gênero mulher domesticada. Para Djamila, as discussões sobre a violência de gênero no Brasil têm avançado. “Acredito que as mídias sociais colaboraram muito para isso, mas ainda, em termos institucionais, há muito a ser feito”. O militante Thiago Aguiar apoia essa luta. Para ele, o machismo tem estruturas muito arraigadas e é preciso ter políticas públicas de amparo para mulheres que sofrem violência.

Para Djamila, é necessário reconhecer que as mulheres não podem ser tratadas como uma categoria homogênea. Políticas universais são insuficientes porque atingem somente mulheres de um determinado grupo. Se a mulher negra, por exemplo, sofre com o racismo e machismo, que a coloca em uma maior situação de vulnerabilidade social, é necessário se pensar políticas a partir dessa realidade. “Sou feminista negra interseccional e, como disse a escritora e poeta Maya Angelou, seria estúpido não estar do meu próprio lado”, afirma Angela. Para ela o feminismo trata de questões diversas que não se limitam à equiparação de salários ou a reiterar o direito de vestir a roupa que quiser, trata também da autoestima, bem-estar, irmandade entre mulheres contra a competição que é imposta para beneficiar homens.

A escola tem um papel fundamental de educação para igualdade de gêneros. “É fundamental para evitar, é mais barato e é menos problemático você ensinar desde cedo as pessoas a respeitarem o gênero, não ter machismo, do que depois de velho ter que reconstruir”, afirma o jornalista Leonardo Sakamoto. Para ele, é importante contribuir para as demandas que as mulheres realizam e refletir sobre o papel do homem, que é lateral, e mostrar que o homem também é vítima do seu próprio machismo. “A educação é a opressora que escolhe, separa determinados papéis para determinadas pessoas, conjunto de coisas”, expõe Aguiar.

Direito ao aborto

A expressão “aborto” caracteriza a morte do embrião ou feto, tanto por causa  espontânea quanto  provocada. O aborto espontâneo, que ocorre em aproximadamente 25% das gestações, acontece, em geral, durante as primeiras 20 semanas de gravidez, e é motivado, em mais de 50% dos casos, por alterações genéticas no embrião. Aborto provocado consiste na interrupção intencional da gestação. Há aproximadamente 50 milhões de casos de abortos provocados em todo o mundo.

A prática do aborto é legalizada, no Brasil, em três situações: quando não há meio de salvar a vida da mãe, em caso de estupro e de anencefalia (má formação rara do tubo neural, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana). “O que discutimos no Brasil é a ampliação ao direito do aborto em outras situações”, pontua Sakamoto. Segundo pesquisa feita pelo IBGE, mais de 8,7 milhões de brasileiras com idade entre 18 e 49 anos já fizeram ao menos um aborto na vida. Desses, 1,1 milhão foram provocados. O artigo 124 do Código Penal prevê prisão de um a três anos para quem aborta propositalmente. O IBGE estima que haja um grande número de casos não notificados na pesquisa.

No Nordeste, por exemplo, o percentual de mulheres sem instrução que fizeram aborto provocado (37% do total) é sete vezes maior que o de mulheres com ensino superior completo (5%). Entre as mulheres negras, o índice de aborto provocado (3,5% das mulheres) é o dobro daquele verificado entre as brancas (1,7% das mulheres). Muitas mulheres e meninas que morrem em procedimentos clandestinos ou tomando medicamento sem acompanhamento deve-se ao fato do aborto não ser legalizado no país.

“Acho que nos últimos anos existe toda uma abertura para esse tema que passa a impressão de que isso esteja reduzindo, mas eu acho que a verdade é que segue sendo um problema muito candente na sociedade”, relata Aguiar. Djamila afirma que é a favor da descriminalização do aborto. “Quando o Estado criminaliza o aborto está decidindo quais mulheres vão morrer e quais não vão, quais terão acesso ao método com dignidade e quais não terão. É um assunto de saúde pública”, pontua. Com os casos de zika vírus, que são um escândalo no país, há a demonstração da falência do saneamento, da falta de investimento, do atraso, apesar de ser um país muito rico. Isso escancara os casos de microcefalia que mostram esse dilema de que as mulheres deveriam ter direito e acesso ao aborto sem ter que fazer um movimento de luta por isso.

Maria da Penha ajuda, mas não resolve

Maria da Penha ajuda, mas não resolve A Lei Maria da Penha foi uma conquista muito grande do movimento feminista, por implicar o reconhecimento da violência contra a mulher como um problema nacional, mas ainda é insuficiente, afirma a professora da Universidade Federal de Pelotas Fernanda Bestetti de Vasconcellos. “A letra da lei é fantástica, prevê várias ações de prevenção, proteção, na área da saúde, educação e segurança pública para essas mulheres. Mas o problema que vive constantemente no Brasil é que somos muito bons em elaborar leis, mas não as colocamos em prática”, desabafa.

A lei não veio acompanhada com o investimento adequado no que se refere a contratações de novos profissionais capacitados para trabalhar com as vítimas. “Não adianta colocar um profissional para trabalhar com esse grupo sem sensibilizá-lo. Vamos lidar tanto com uma falta de investimento quanto com uma falta de força de vontade, uma dificuldade de mudar uma cultura policial hierárquica bem judicial”, diz Fernanda. Além da cultura, a questão econômica também é muito importante e complicada.

“A violência de gênero parte da necessidade patriarcal de manter homens no comando e mulheres submissas”, diz Angela Brandão Mendes, coordenadora do grupo Blogueiras Negras. Mas a violência gratuita contra a mulher para a comprovação da masculinidade continua e é crescente. O primeiro passo para erradicá-la é a desconstrução da naturalização do machismo. “É por essa imposição machista de afirmação da dita masculinidade que o homem se sente supremo, dono do corpo de qualquer mulher, ainda mais se for negra; é essa falta cultural de limite e respeito que nos impede de eliminar ou começar a diminuição significativa da violência”, finaliza.

Feminicídio faz 13 vítimas por dia

Dados divulgados pelo Mapa da Violência 2015 - Homicídio de Mulheres no Brasil, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), indicam que entre 2003 e 2013 o número de vítimas do sexo feminino passou de 3.937 para 4.762, incremento de 21% na década. As 4.762 mortes em 2013 representam 13 homicídios femininos diários. Levando em consideração o crescimento da população feminina, que nesse período passou de 89,8 para 99,8 milhões (11,1%), vemos que a taxa nacional de feminicídio, que em 2003 era de 4,4 por 100 mil mulheres, passou para 4,8 em 2013, crescimento de 8,8% na década.

O racismo é mais um motivador do feminicídio: o assassinato de mulheres negras cresceu 54,2% em 10 anos (de 2003 a 2013), enquanto que o número de mulheres brancas assassinadas caiu 9,8% no mesmo período. Desses crimes, 55,3% aconteceram no ambiente doméstico, sendo 33,2% cometidos pelos parceiros ou ex-parceiros das vítimas. Diversos Estados evidenciaram um pesado crescimento na década, como Roraima (343,9%) e Paraíba (mais de 300%). Entre 2006, ano da promulgação da Lei Maria da Penha, e 2013, apenas cinco Estados registraram quedas nas taxas: Rondônia, Espírito Santo, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Vitória, Maceió, João Pessoa e Fortaleza encabeçam as capitais com taxas mais elevadas no ano de 2013, acima de 10 homicídios por 100 mil mulheres. São Paulo e Rio de Janeiro são as capitais com as menores taxas.

As políticas públicas praticadas no Brasil são rasas, afirma Angela Brandão Mendes, coordenadora do grupo Blogueiras Negras. “Poucas são as políticas que realmente funcionam na prática. Por exemplo, a Lei 7.716/1989, que configura o crime de racismo, quase nunca é considerada pelos juízes, delegados e promotores judiciais brancos. Ou, então, a Lei 10.639/03, que tem a intenção de tornar obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio, obrigatoriedade essa que é solenemente ignorada”.

Os movimentos sociais têm um importante papel na questão da violência de gênero do Brasil, diz Angela. Eles não têm todo um eleitorado com que se preocupar, o que é um dos grandes motivos do não avanço por meio da boa vontade de políticos e partidos. Para a professora Cynthia Sarti, do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) – Campus Guarulhos, os movimentos nas ruas, mídia e internet são fundamentais para dar forma a essas políticas. “O fundamental é criar espaços para que as pessoas violentadas possam ser acolhidas e escutadas”.

Símbulo do sexo feminino com rosas dentro dele

Sendo assim, podem os movimentos sociais botar o dedo em toda e qualquer ferida tendo como intenção causar incômodo a quem deve ser incomodado. Em relação ao movimento feminista negro interseccional, a questão é ainda mais complicada. “Racismo, lesbofobia, transfobia e bifobia não podem mais ser tolerados da parte de quem se diz aliado”. Sem a visibilidade de manifestações públicas, o feminismo, como qualquer proposta de transformação social, não teria como se expandir. “Ano passado houve uma marcha lindíssima, a Marcha Nacional das Mulheres Negras. Elas também estão em uma posição de empoderamento, reação e questionamento. É o poder de reação”, conclui a professora do Departamento de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Maíra Kubik Mano.

Capa do número 13 jornal entrementes mostrando um livro antigo de ata  Sumário do número 13