Tecnologia promete revolucionar diversas áreas, da Medicina à Criminologia
Pesquisadores da Unifesp abrem caminhos cada vez mais amplos para o uso da técnica na produção de próteses e órteses, na regeneração de órgãos e no desvendamento de crimes
Ana Cristina Cocolo
Em um país onde 1,3% da população tem algum tipo de deficiência física e quase a metade deste total (46,8%) tem grau intenso ou muito intenso de limitações, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PSN) feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2013, uma iniciativa do Grupo de Pesquisa Biomecânica e Forense do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT/Unifesp) promete revolucionar, no futuro, o mercado de órteses e próteses.
Por não haver cobertura desses componentes por parte do Sistema Único de Saúde (SUS), um dos trabalhos desses pesquisadores está favorecendo principalmente crianças com amputações, traumas ou com deficiências físicas de nascença, já que as próteses para o público infantil são escassas, extremamente caras e precisam ser trocadas de acordo com a medida do desenvolvimento corporal.
Desde 2014, Maria Elizete Kunkel, física e professora da disciplina de Biomecânica do curso de Engenharia Biomédica do instituto, dedica-se à tecnologia de impressão 3D de próteses de mão e vem não apenas aprimorando-as como ampliando seu uso para confecção de outros tipos de próteses e órteses.
O trabalho com próteses de mão desse grupo de pesquisa tem dado tão certo que virou um programa de extensão da Unifesp. Chamado Mao3D, o programa baseou-se em modelos estadunidenses da ONG E-Nable, que fabrica, distribui próteses de mão 3D e reabilita pacientes por todo o mundo, por meio de voluntariado.
Além de bem mais leves que as convencionais, as próteses de mão 3D são reproduzidas e personalizadas de acordo com o corpo e tipo de amputação (parcial de mão ou de braço) e fixadas ao braço com velcro. O mecanismo também é simples e barato, pois não contém componentes eletrônicos – uma peça feita em uma impressora 3D de boa qualidade utiliza cerca de 300 gramas de filamento plástico e custa, em média, R$ 300. A abertura da mão artificial depende apenas do movimento do punho ou do cotovelo. “O processo é parecido com a ação dos tendões da mão”, afirma a pesquisadora. “Quando a criança dobra o punho ou o cotovelo, os dedos são flexionados pelos fios”.
Para evitar que os objetos escorreguem, os pesquisadores acoplaram ponteiras de silicone às próteses.
Super poderes
Para diminuir a rejeição da mão artificial entre as crianças, os pesquisadores passaram a fabricar as próteses em cores diferentes e fazer modelos que remetam aos super-heróis, como Hulk, Batmam, Homem-Aranha, Super-Homem, Mulher Maravilha, Capitão América, entre outros. “Dessa forma, o objeto, além de suprir uma deficiência, estimula a criatividade e o lúdico das crianças”, afirma a professora. “Psicologicamente, também ameniza sua condição pelo lúdico, quando passam a imaginar que as próteses os colocam como os super-heróis, com poderes especiais”.
A produção das próteses – realizada no laboratório de Biomecânica e Forense do ICT/Unifesp – começa com a criança sendo fotografada e a imagem projetada para que o programa do computador reconstrua seu corpo, possibilitando a criação do artefato proporcional e ajustado ao seu tamanho. A modelagem das peças é feita e fatiada por um software específico, cada parte, construída camada por camada pela impressora 3D, em material termoplástico biodegradável. Todo o processo leva, em média, 20 horas para ser finalizado, antes de ir para a fase de montagem.
Maria Elizete explica que a prótese só é funcional se o usuário passar por um bom programa de reabilitação e em crianças a partir da idade escolar. “Antes desse período as crianças não entendem a deficiência em si, apenas se veem como diferentes”.
A primeira parceria aconteceu com o Centro de Reabilitação Lucy Montoro, em São José dos Campos. Além de prescrever o uso da prótese, o centro faz a triagem e prepara a criança com exercícios de fisioterapia para fortalecer e preparar a articulação do membro que vai utilizar-se da prótese. “Como é um projeto complexo, que necessita de um acompanhamento minucioso que envolve desde a aceitação da prótese pela criança e o comprometimento da família até o treinamento do terapeuta ocupacional para lidar com a prótese, poucas crianças estão inseridas no projeto”, afirma. “No entanto, outras parcerias estão sendo viabilizadas para atender menores de outras regiões do Estado”.
De acordo com ela, o grupo trabalha para ampliar o acesso às próteses. Para isso, está agregando voluntários e parceiros nessa empreitada. Recentemente, dois voluntários foram inseridos ao grupo: a terapeuta ocupacional Patricia Abe, para a reabilitação, e o podólogo Israel Toledo, que faz o acabamento interno da prótese para garantir mais conforto à peça, adaptando revestimentos similares aos utilizados em próteses e sapatos indicados às pessoas com pé diabético. Além disso, várias empresas e pessoas físicas têm colaborado com doação dos filamentos plásticos, de impressoras 3D e no envio de itens importados, como o velcro duplo e as ponteiras de dedos de silicone, utilizados na confecção de cada prótese.
Paciente em reabilitação para adaptação ao uso das próteses
Parcerias e projetos futuros
Vários estudos que envolvem a impressão e processamento de imagem em 3D estão em andamento e contam com parcerias com diferentes instituições de ensino, como a Universidade Federal do ABC (UFABC), a Universidade do Vale do Paraíba (Univap), o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), a Faculdade de Tecnologia (Fatec) e outros campi da Unifesp, como o Campus São Paulo, composto pela Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) e pela Escola Paulista de Enfermagem (EPE/Unifesp), e o Campus Baixada Santista, que abriga o Instituto de Saúde e Sociedade (ISS/Unifesp) e o Instituto do Mar (Imar/Unifesp). Há também colaboração de empresas instaladas dentro do Parque Tecnológico de São José dos Campos, onde o ICT/Unifesp está inserido, e futuramente haverá com hospitais da região que já mostraram interesse em participar dos testes com órteses e próteses.
De acordo com a pesquisadora, um modelo de prótese de mão automática, mioelétrica, para indivíduos com amputações maiores, nas quais as articulações do cotovelo não estão presentes, também está sendo desenvolvido. O sistema mioelétrico funciona por meio de um complexo processo biomecânico, onde a prótese pode ser acionada a partir de sensores colados na musculatura do usuário. “A cada contração muscular se produz uma tensão elétrica que é enviada a um microprocessador responsável pelo controle dos movimentos da mão”, explica. Esse projeto que foi desenvolvido em um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Engenharia Biomédica da Unifesp será continuado na forma de um mestrado no ICT/Unifesp, sob a orientação de Maria Elizete.
Entre outras propostas, ainda em fase inicial, estão a confecção de próteses de orelha em silicone, órteses articuladas para pés, talas personalizadas de imobilização e peças removíveis que podem substituir o gesso no tratamento de displasia de quadril – problema caracterizado pela instabilidade ou frouxidão da articulação do quadril ao nascimento e que necessita do uso temporário de um tipo de suspensório ou gesso para manter as pernas abertas em um ângulo de 90 graus. “Todos, a um custo muito baixo, com vários benefícios agregados. Alguns, no entanto, são inéditos, com alto potencial para gerar futuras patentes”.
Maria Elizete afirma que a órtese de quadril que está sendo desenvolvida, além de ajudar a pele a transpirar, pois é porosa, pode evitar que a criança necessite de anestesia geral toda vez que precisar colocar ou tirar o gesso, minimizando os riscos, e, por ser bem mais leve, também facilitando a higiene do paciente.
São muitas as iniciativas do Grupo de Pesquisa Biomecânica e Forense do ICT/Unifesp voltadas para a área da saúde. Tantas que um novo grupo multidisciplinar, chamado Med3D, foi criado, agregando vários docentes da EPM/Unifesp com interesse no desenvolvimento de dispositivos que poderiam ser utilizados em aulas de Anatomia – como órgãos artificiais (ossos, coração, pulmão, etc) para substituir peças cadavéricas –, órteses de silicone utilizadas para o procedimento de traqueostomia, entre outras.
Maria Elizete Kunkel entre as próteses confeccionadas com tecnologia 3D e desenvolvidas por professores e estudantes do Grupo de Pesquisa Biomecânica e Forense do ICT/Unifesp
Próteses de orelhas em silicone, fabricadas a partir de moldes com tecnologia 3D
Órgãos e tecidos
Desde 2008, o casal Silvio e Mônica Duailibi, docentes da EPM/Unifesp, trabalham com a tecnologia 3D. Uma de suas linhas de pesquisa é a produção de dentes, por meio de impressões tridimensionais. Essas novas estruturas são moldadas em biomateriais, com base na estrutura original captada por imagem computacional. As macroestruturas impressas recebem, então, células-tronco para reproduzirem-se até formar o novo dente.
De acordo com Duailibi, o uso dessa tecnologia está bem consolidada e avançou muito com a possibilidade de impressão com material biológico, além dos biomateriais. “Atualmente há impressoras nas quais pode-se utilizar oito tipos de materiais diferentes, entre eles células e esferoides de células, que já são microtecidos tecidos”, afirma. “A nossa dificuldade, no entanto, ainda se encontra na interação biológica do órgão ou tecido construído com o organismo e impedir que haja rejeição ou proliferação desordenada das células que pode levar à formação de tumores”.
Atualmente, o casal – que também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Biofabricação e membro das comissões de Estudo de Implantes e Substitutos Biológicos da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e de Produtos Médicos de Engenharia Tecidual (Temps) da Organização Internacional de Normalização (ISO) – trabalha com a perspectiva da impressão 3D totalmente biológica, ou seja, que constrói a macroestrutura do órgão por meio de tecidos, organizando a microgeometria celular (interação celular na formação de diversos órgãos e tecidos).
Criminologia
O Grupo de Pesquisa Biomecânica e Forense do ICT/Unifesp está iniciando um trabalho que usa a tecnologia 3D para ajudar a elucidar crimes e diminuir o número de processos que são arquivados por falta de provas.
O projeto de pesquisa, financiado pelo Fundo Newton, do British Council, envolve sete docentes da Unifesp e investiga os Crimes de Maio de 2006, sendo fruto de uma colaboração institucional entre o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/Unifesp) e o Centro Latino–Americano da Escola de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Oxford. Nele, uma das primeiras engenheiras biomédicas formadas na Unifesp, Thabata Ganga, usa softwares livres para reconstruir cenas de crimes a partir de imagens 3D, baseadas no laudo médico, no boletim de ocorrência e nos depoimentos das testemunhas para projetar em que condições o crime ocorreu.
De acordo com Maria Elizete, pesquisadora do projeto, a iniciativa faz parte das ações de Justiça Translacional e Forense para estabelecer protocolos junto ao Estado para a análise post mortem de vítimas de projéteis. “Com os dados é possível verificar se a vítima estava em posição de defesa ou ataque, avaliar a entrada e a saída do projétil no corpo, entre outras informações que podem ajudar a desvendar em que situação ocorreu o delito”.
Mais informações sobre o Programa Mao3D
Site do grupo:
www.biomecanicaeforense.com
Blog do Mao3D:
https://mao3d.wordpress.com/
Canal no YouTube:
www.youtube.com/biomecanicaeforenseunifesp
Facebook:
www.facebook.com/Mao3D
www.facebook.com/biomecanicaeforenseunifesp
Produção científica relacionada:
MUNHOZ, Rodrigo; MORAES, Cícero André da Costa; TANAKA, Harki; KUNKEL, Maria Elizete. A digital approach for design and fabrication by rapid prototyping of orthosis for developmental dysplasia of the hip. Research on Biomedical Engineering, v. 32, n. 1, p. 63-73, mar. 2016. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/reng/v32n1/2446-4740-reng-2446-474000316.pdf >. Acesso em: 02 maio 2017.
SOUZA, Felipe Granado de. Criação de uma base de dados de mãos e estaturas e obtenção de modelos de regressão em antropometria forense. 2016. 165f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Biomédica), Universidade Federal do ABC, Santo André, 2016.
GANGA, Thabata Alcântara Ferreira. Modelagem 3D, manufatura aditiva e análise computacional de uma prótese mioelétrica infantil de membro superior. 2016. 120f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Engenharia Biomédica) – Instituto de Ciência e Tecnologia, Universidade Federal de São Paulo, São José dos Campos, 2016.
KUNKEL, Maria Elizete; ARTIOLI, Bárbara Olivetti; GANGA, Thabata Alcântara Ferreira. FEM analysis of a myoelectrical upper limb prosthesis produced by additive manufacturing. In: ANNUAL INTERNATIONAL CONFERENCE OF THE IEEE ENGINEERING IN MEDICINE AND BIOLOGY SOCIETY, 38., 2016, Orlando. Proceendings… Orlando:EMBC, 2016.