Estudo indica possibilidade de criar novos órgãos com a utilização da estrutura dos já existentes
José Luiz Guerra
Uma pessoa está na fila de transplante há anos, à espera de um doador, mas o tão sonhado dia não chega, seja pela demanda, seja pela incompatibilidade do órgão. E se a questão fosse resolvida a partir de seu próprio órgão? A possibilidade é indicada pela dissertação de mestrado de Luciana Iwamoto, do programa de pós-graduação em Cirurgia Translacional da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo.
O estudo teve como objetivo encontrar a solução química mais adequada para a descelularização, ou seja, a retirada do material biológico de um órgão ou de parte dele, por meio de lavagens com enzimas e detergentes específicos, mantendo apenas a estrutura proteica como um scaffold, uma espécie de arcabouço. “Utilizamos dentes naturais no estudo porque, na matriz natural, existem a macro e a microgeometria adequadas para promover a função tecidual”, explica Monica Duailibi, coorientadora da pesquisa e professora afiliada da disciplina de Cirurgia Plástica e do programa de pós-graduação em Cirurgia Translacional.
O estudo utilizou 50 dentes pré-molares, que foram divididos em cinco grupos iguais e armazenados, ao longo de 12 semanas, em soluções químicas diferentes. O primeiro (G1), que era o grupo controle, permaneceu em solução de formaldeído a 10%; o segundo (G2), em tampão fosfato salino (PBS), com 28g de etilenodiaminotetracético tetrassódico (EDTA) e hipoclorito de sódio na concentração de 2,5% (SH); o terceiro (G3), em PBS, EDTA e peróxido de hidrogênio 40v (HP); o quarto (G4), em PBS, EDTA, SH e detergente enzimático (ED); o quinto (G5), em PBS, EDTA, HP e ED. “Nós submetemos o material a várias soluções para criar um protocolo e descobrir qual era a melhor delas para produzir a descelularização”, sintetiza Monica.
Após as 12 semanas, os dentes passaram por análises, que indicaram que a solução aplicada ao grupo G5 conseguiu retirar o material biológico e mineral sem comprometer a estrutura de proteínas, responsável pelo agrupamento das células. “O organismo criou uma base capaz de colar as células; então, o segredo está em encontrar uma composição química que retire o material biológico e o mineral, quando for o caso, e deixar essa cola natural intacta”, afirma Silvio Duailibi, docente da disciplina de Cirurgia Plástica da EPM/Unifesp e orientador do estudo. A estrutura obtida após a descelularização é o scaffold, que está pronto para receber novas células e se reorganizar naturalmente. Para isso, no entanto, é necessária a utilização de células-tronco.
Os dentes, que também são órgãos, constituem-se de células e proteínas. Sendo assim, um órgão, mesmo que afetado por alguma doença, pode ser descelularizado. “No caso de um tecido organizado – como, por exemplo, o coração –, você irá tratá-lo, retirar dele todas as células e deixá-lo só com a rede de proteínas (scaffold), sem perder o formato original, isto é, sua macroestrutura. Dentro dele ficará uma estrutura, pronta para semear novas células”, relata Silvio. Após a descelularização, a estrutura obtida será colonizada por células do paciente que receberá esse órgão, e elas serão responsáveis por reestruturá-lo. Na visão de Monica, entretanto, é fundamental que se estabeleçam protocolos específicos. “Para cada tecido e cada estrutura, haverá protocolos diferentes. Muito provavelmente o protocolo que foi estudado no caso dos dentes não deverá ser o mesmo a ser utilizado para cartilagens, o qual – por sua vez – não deverá ser o mesmo para órgãos sólidos, como rim, fígado e pâncreas, por exemplo.”
A técnica de descelularização já é utilizada em países como os Estados Unidos, Coreia do Sul, Japão e Inglaterra. Córneas, cartilagens e curativos biológicos para grandes queimaduras são produzidos a partir de membrana placentária e, por serem regulamentados, podem ser comprados para fins de transplante.
Com o estabelecimento dos protocolos específicos, abre-se a possibilidade de que a retirada das células possa ocorrer também com órgãos, inclusive do próprio paciente. “No futuro, todos os órgãos que forem desprezados poderão ser reaproveitados”, ressalta Monica.
Imagens de microscopia eletrônica de varredura (MEV). À esquerda, polpa dentária. À direita, dente descelularizado
Próximos passos
Após a descoberta da solução ideal para a descelularização do material biológico, o próximo desafio será identificar a forma de esterilização dessas estruturas, antes de reimplantá-las. Esse estudo já está em andamento, também sob a orientação de Silvio e Monica Duailibi. A técnica consiste em limpar a estrutura obtida, retirando-se os resíduos que, porventura, possam danificar o novo órgão que será formado por meio das células-tronco e de outros materiais.
“Essa estrutura pode estar contaminada e, quimicamente, as células entendem que não podem aderir àquela parte. É necessário ter certeza de que não restou nenhum elemento nocivo”, alerta Silvio. Em linhas gerais, um paciente que necessitasse de um transplante de fígado, por exemplo, poderia receber um novo órgão, fabricado a partir de outro, mesmo que danificado. Essa esterilização seria responsável por eliminar qualquer agente que pudesse causar danos ao novo material.
Os pesquidadores Monica e Silvio Duailibi
Experiências com a produção de biomateriais em 3D
Uma das linhas de pesquisa desenvolvidas por Silvio e Monica Duailibi é a produção de dentes por meio da impressão em 3D. As unidades são moldadas com base na estrutura original de um dente, recebem material biológico e podem ser implantadas no paciente, embora haja risco de rejeição. No caso de um dente ou outro órgão natural, esse risco é menor, uma vez que foram produzidos com o próprio material biológico do paciente.
Outra frente em que atua o casal Duailibi é a reconstrução de meniscos, estudo que está na fase experimental e que visa ao estabelecimento de protocolo para futuras pesquisas. Trata-se da primeira estrutura óssea a ser reconstruída e reimplantada. “A partir do momento em que se determina sua estrutura anatômica, por meio de imagens, precisamos verificar qual a melhor forma de transferência dessa estrutura para o laboratório e estabelecer os protocolos de descelularização a partir dos já estudados no caso dos dentes”, resume Monica.
Novos protocolos para engenharia tecidual
Silvio e Monica Duailibi são membros da International Organization for Standardization (ISO), da American Society for Testing and Materials (ASTM) e da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Atuam diretamente, em conjunto com pesquisadores de diversas partes do mundo, na elaboração de normas técnicas e protocolos para a engenharia tecidual (TEMPs, do inglês tissue engineered medical products).
Os pesquisadores explicam que há necessidade de serem definidas normas que forneçam parâmetros para as pesquisas, especialmente em relação ao armazenamento de células-tronco. “Não existe uma certificação de que esse material esteja completamente adequado para uso daqui a dez ou 15 anos, por exemplo. Os protocolos começam a ser estabelecidos, mas não estão totalmente prontos”, explica Monica. “As normas são uma orientação para que as pesquisas e as futuras terapias sejam produzidas com qualidade”, finaliza Silvio.