O lado obscuro da beleza

Mais de 90% das certidões de óbito de pessoas que faleceram após passarem por lipoaspiração não trazem informações precisas. O preenchimento incorreto dificulta estabelecer a real causa da morte

Ana Cristina Cocolo

Imagem do abdomen de uma mulher medindo a circunferência com uma fita métrica

(Imagem: Andrea Pelogi)

Em 93% das certidões de óbito de pessoas que morreram após se submeterem a cirurgia de lipoaspiração há falhas no preenchimento, afirma o dermatologista e pesquisador Érico Pampado Di Santis. Em cerca de 64% dos documentos examinados as informações são imprecisas, ou seja, foram colocadas fora dos padrões preconizados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Ministério da Saúde (MS), e em 29% as causas estabelecidas estão como indeterminadas ou a esclarecer. Apenas 7% das certidões estavam preenchidas corretamente. 

“A falta de informações dificulta não só estabelecer a causa da morte, como pode também mascarar eventuais erros médicos e impedir a adoção de medidas que poderiam poupar vidas”, explica o pesquisador. 

Os dados fazem parte da tese de doutorado de Di Santis, defendida no Programa de Pós-Graduação em Saúde Baseada em Evidências, na Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo. O trabalho reacendeu, entre os especialistas, um antigo debate para a criação de um projeto de lei que torne obrigatória a notificação de casos de complicações e mortes por lipoaspiração em todo o território nacional. 

O Brasil é o segundo país que mais realiza procedimentos estéticos cirúrgicos – perdendo somente para os Estados Unidos – e o pesquisador analisou apenas o universo de 102 casos que foram noticiados na imprensa brasileira, entre janeiro de 1987 e setembro de 2015. A pesquisa foi documental, descritiva e quantitativa e utilizou como fontes a mídia impressa – que forneceu o nome e a cidade de ocorrência da morte – e as certidões de óbito levantadas em cartórios de registro civil pelo país.

O apontamento referente à necessidade de notificação compulsória nos casos de mortes ou complicações não fatais em cirurgias estéticas foi consenso entre representantes do Conselho Federal de Medicina (CFM), sociedades brasileiras de Dermatologia (SBD) e de Cirurgia Plástica (SBCP) e do Centro Cochrane do Brasil, em audiência pública realizada no Congresso Nacional, em dezembro de 2017. Também opinaram a favor da mudança representantes e convidados das comissões de Seguridade Social e Família (CSSF) e de Defesa dos Direitos da Mulher (CMulher). 

Di Santis esclarece que essa discussão se arrasta há anos. “Apesar do empenho do próprio CFM na conscientização para o correto preenchimento da declaração de óbito e do questionamento, há quase dez anos, pela atual deputada federal Luiza Erundina, junto ao Ministério da Saúde, questionando não só o número de óbitos relacionados à lipoaspiração, como suas causas e outras questões, nada mudou”, diz. “Não sei explicar o porquê essa obrigatoriedade não foi levada em conta até o momento. A notificação, hoje, é um projeto de lei da deputada federal Pollyana Gama (PL 9.602/2018), está protocolado e, agora, depende de ser pautado pelo presidente da Câmara dos Deputados”.

Buraco que não fecha

pesquisador

Érico Pampado Di Santis, autor da pesquisa (Imagem: Arquivo pessoal)

O preenchimento incorreto ou incompleto das certidões de óbito no estudo do médico contou com a colaboração de Marcos Roberto Martins, professor de Patologia Médica da Universidade de Taubaté e especialista em exames necroscópicos, com mais de vinte anos de experiência. Martins encontrou várias lacunas no preenchimento. Entre elas: não citar o ato operatório e não obedecer ao raciocínio fisiopatológico – desde o evento inicial que desencadeou as causas que culminaram na morte, até o relato de várias hipóteses diagnósticas distintas –, na tentativa de justificar a morte da vítima.

Nos atestados de óbito analisados, os médicos que assinaram os documentos classificaram apenas 44,2% das mortes como causas indeterminadas – contra 64% do pesquisador –, 17,4% por tromboembolismo pulmonar (bloqueio de uma ou mais artérias dos pulmões causada por coágulo de sangue) e 14% por perfuração. 

Segundo o dermatologista, não há dados oficiais sobre mortes por cirurgias estéticas no país. “No Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, essas mortes são registradas como ‘causas externas’ que, em sua lista, incluem desde acidentes e agressões até complicações de assistência médica e cirúrgica”, afirma. “Nossa fonte foi a imprensa e é muito nítido que há subnotificação, já que outros casos ocorreram e não foram noticiados pela mídia, não sendo, dessa forma, possíveis de serem contabilizados nessa pesquisa”.

Protecionismo? 

Outro agravante apontado no estudo é que 13,64% dos médicos ligados às mortes estudadas estão envolvidos em mais de um caso e um deles em cinco. Das 86 certidões de óbito resgatadas nos cartórios, em 33% delas não havia a especialidade do médico que atestou a morte e 11,62% o óbito foi atestado pelo mesmo médico que realizou a cirurgia. 

Para Di Santis, tanto o Ministério Público quanto os conselhos de classe são extremamente atuantes perante as denúncias, com exemplos reais de condenações e prisões de médicos envolvidos, além da cassação da licença do exercício profissional. “Toda morte de causa externa, ou seja, não natural, deve ser avaliada pelo perito médico. O problema novamente é quando não há ciência do caso. Com o atestado preenchido, a família aceita aquilo que foi declarado e não questiona. O caso não chega ao conhecimento das autoridades policiais, o corpo é enterrado e o caso se encerra“, afirma. “A notificação permitirá que se analise a complicação que levou ao óbito e se tente chegar à sua causa”.

O médico sugere ainda que seja instituído protocolo baseado em evidências, assim como é realizado na Força Aérea Brasileira. “No Brasil, o Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Sipaer) e o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) foram fundamentais para colocar a aviação como um dos meios de transportes mais seguros que temos”, afirma. “A prevenção é fundamental. E para prevenir é necessário conhecer o conjunto de eventos que coincidiram para culminar no acidente”.

Casadas são maioria

Entre as vítimas, 98% eram mulheres, a maioria casadas e com idades entre 21 e 50 anos. Apesar de mais da metade dos procedimentos terem sido feitos dentro de hospitais (54%), cerca de 45% das mortes ocorreram no mesmo dia da cirurgia e 83% na primeira semana. Em quase 62% do total de mortes (102), a lipoaspiração foi realizada de maneira isolada e não associada a outros procedimentos cirúrgicos. 

As mortes ocorreram, principalmente, em hospitais (72%). A justificativa para isso, ainda segundo o autor do estudo, é o encaminhamento dos pacientes a essas instituições quando há complicações em local fora do recinto hospitalar (clínicas) e também pela procura do paciente, após alta das clínicas de estética. Cerca de 54% das cirurgias que terminaram em óbito ocorreram em hospitais e 46% em clínicas. “Existem correntes que afirmam que a lipoaspiração deve ser realizada em hospitais pela estrutura que eles apresentam, como existência de UTI e banco de sangue, além da disponibilidade de outros profissionais no local”, explica. “Outras, falam dos riscos de infecção hospitalar. Não há evidências científicas que mostrem qual o local ideal é mais seguro para realização de lipoaspiração”. 

O médico reforça que a indicação do profissional e as avaliações pré-operatórias, que incluem não apenas exames, mas conhecer os hábitos e os históricos pessoal e familiar, são fundamentais para diminuir o risco de complicações. 

Brasil é vice em número de procedimentos

Para se ter uma ideia do montante desse tipo de procedimento ao redor do mundo, um levantamento da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica (Isaps) aponta que, em 2015, foram realizadas 9,6 milhões de cirurgias estéticas. A lipoaspiração entra como a segunda no ranking desse tipo de intervenção, correspondendo a 14,5% do total (1,4 milhão), desbancada apenas para a colocação de próteses de mama (quase 1,5 milhão ou 15,4% do total). 

Também conhecida como lipoescultura, a lipoaspiração pode ser indicada para a retirada do acúmulo de gordura em várias regiões do corpo e ser realizada isoladamente ou conciliada a outros procedimentos cirúrgicos, como a abdominoplastia e a redução de mamas. Há risco de complicações como em qualquer outra cirurgia e a pessoa interessada em passar pelo procedimento deve gozar de boa saúde e não estar com seu peso corporal acima de 30% do considerado ideal para a estatura. 

De acordo com Di Santis, estudos consagrados apontam que a taxa de mortalidade para lipoaspiração é de 19 mortes para cada 100.000 cirurgias realizadas. 

No Brasil, o artigo 9º da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 1.711, de 10 de dezembro de 2003, estabelece que os volumes aspirados de gordura não devem ultrapassar 7% do peso corporal quando se usar a técnica infiltrativa – preferida pelos cirurgiões, na qual é precedida pela injeção de solução composta por soro, substâncias vasoconstritoras e anestésicos que ajudam a contrair veias e artérias, diminuindo o sangramento – ou 5% quando se usar a técnica não infiltrativa (sem injeção de soluções). No entanto, independentemente da técnica escolhida pelo profissional, a norma também institui que o procedimento não deve ultrapassar 40% da área corporal.

Raio X do estudo

98% eram mulheres

43% eram casadas e 38% solteiras

Maioria das mortes ocorreram na faixa etária dos 21 aos 50 anos

45% das mortes ocorreram no mesmo dia do procedimento; 83% na primeira semana 

24,4% das mortes ocorreram no Estado de São Paulo, seguido por Goiás e Rio de Janeiro com 11%

54% das cirurgias que terminaram em óbito ocorreram em hospitais e 46% em clínicas

12% dos médicos estão envolvidos em mais de uma cirurgia que culminou na morte do paciente

61,8% das mortes ocorreram devido a somente lipoaspiração e 38,2% foram associadas a mais de um procedimento

77% dos médicos responsáveis pelas cirurgias que resultaram em óbito tiveram a especialidade identificada: 73% eram cirurgiões plásticos, 23% não tinham registro de especialidade (Registro de Qualificação de Especialista – RQE) no Conselho Federal de Medicina (CFM) e 2,3% eram ortopedistas e 1,7% cirurgiões gerais

11,62% dos óbitos foram atestados pelo mesmo médico que realizou o procedimento estético, contrariando a norma legal


Fonte: Mortes relacionadas à lipoaspiração no Brasil entre 1987 e 2015 - Érico Pampado Di Santis

Tese relacionada:
DI SANTIS, Érico Pampado. Mortes relacionadas à lipoaspiração no Brasil entre 1987 e 2015. 2017. 215 f. Tese (Doutorado em Ciências) – Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2017.