Ana Cristina Cocolo
Imagem: Andrea Pelogi
As mudanças no padrão alimentar da população, com maior consumo de alimentos ultraprocessados – incluindo os sucos artificiais, que em alguns casos possuem até 70% mais açúcar que um refrigerante de guaraná –, de Fast-Foods e de lanches açucarados, estão entre os principais vilões que ajudam a engrossar os números de doenças crônicas e da obesidade, inclusive entre crianças.
O cenário fica ainda mais perigoso quando a tecnologia entra de forma negativa no comportamento das pessoas, conforme apontam duas pesquisas apresentadas como tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Pediatria da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo.
De acordo com os trabalhos, que avaliaram as práticas parentais de alimentação entre pré-escolares e escolares brasileiros e resultaram em um artigo publicado na revista Public Health Nutrition, o uso de celulares e tablets durante as refeições aumenta em 1,61 vezes o risco de crianças entre 2 e 9 anos de idade consumirem excessivamente alimentos ultraprocessados.
Para as nutricionistas Sarah Warkentin e Laís Amaral Mais, autoras das teses, esse comportamento pode ser parcialmente atribuído à exposição a anúncios televisivos de alimentos ricos em gorduras, açúcares e sal, e pobres em fibras e micronutrientes. “Os dados também põem em evidência o pouco incentivo às práticas de mais atividades físicas e lúdicas que tirem as crianças da frente das telas”, afirma Warkentin.
Para Mais, o problema vai além. “O uso excessivo de dispositivos de tela durante as refeições pode ser um indicador da falta de interação dos pais com a criança durante refeições – que poderia refletir uma falta mais geral de estrutura do agregado familiar – e que demonstrou ser um fator risco para má qualidade da dieta“, afirma. “Os pais são importantes exemplos para as práticas alimentares, já que as crianças dependem deles para o acesso e a preparação dos alimentos”.
As pesquisas também mostraram que crianças cujas mães têm menor nível de escolaridade e que têm excesso de peso tiveram um risco duas vezes maior e 1,43 vezes maior, respectivamente, de consumirexcessivamente alimentos ultraprocessados. Já para os pais que relataram baixa percepção de responsabilidade quanto à alimentação de seus filhos, esse risco foi 2,41 vezes maior.
Poucos vegetais
De acordo com o relato dos pais, cerca de 67% das 929 crianças avaliadas ingeriam uma alta quantidade de alimentos ultraprocessados. Trinta e dois por cento bebiam leite achocolatado e 20% suco artificial todos os dias. Quase um quarto do total eram consumidoras frequentes de carnes processadas e, mais de um terço, de salgadinhos. Em contrapartida, com relação aos vegetais, menos da metade da amostra os consumia diariamente.
Já a ingestão de frutas e leite e laticínios, de três ou mais dias, foi alta: 60% e 75%, respectivamente. “Muitos pais associam o achocolatado e os sucos artificiais a uma dieta saudável por derivarem de leite e frutas, o que é um engano, pois possuem uma elevada concentração de açúcares”, alerta Warkentin.
“É preciso concentrar ainda mais esforços na intervenção para grupos de alto risco, como famílias com excesso de peso e mães com menos escolaridade”, diz Mais. “É necessário também a promoção de uma educação nutricional aos pais que os incentivem a assumir a responsabilidade de promover uma alimentação mais saudável para seus filhos”.
Cerca de 67% das crianças avaliadas ingeriam alta quantidade de alimentos ultraprocessados, como hambúrgueres e batata frita (imagem: Andrea Pelogi)
Laís Amaral Mais e Sarah Warkentin (imagem: Alex Reipert)
Metodologia
Participaram da pesquisa, por meio de dois questionários, 929 pais de pré-escolares e escolares (idades de 2 a 9 anos) de 14 escolas privadas das cidades de Campinas e São Paulo. A maioria dos respondentes eram as mães (92%). Foram excluídos estudantes com doenças relacionadas à nutrição e irmãos mais velhos para evitar duplicidades nos dados. O estudo é o primeiro a avaliar associações entre padrões alimentares entre crianças pré-escolares e escolares no Brasil e as práticas de alimentação dos pais, avaliadas por um questionário abrangente que foi traduzido e validado para essa população específica.
Para a pesquisa foram adaptados dois questionários: o Comprehensive Feeding Practices Questionnaire (CFPQ), de autoria de Dara R. Musher-Eizenman, professora de Psicologia da Universidade Estadual Bowling Green, Ohio (EUA), e Shayla Holub, professora assistente em Ciências Psicológicas na Universidade do Texas, em Dallas (EUA), e de um Questionário de Frequência Alimentar (QFA), desenvolvido especialmente para esse trabalho, uma vez que não existia um instrumento na literatura que incluísse um grande número de alimentos ultraprocessados consumidos por essa faixa etária, bem como fosse breve e específico para estas idades.
Entre os ultraprocessados, foram incluídos nos questionários os Fast-Foods (hambúrgueres, batata frita, nuggets, pizza), os macarrões instantâneos, os refrigerantes, os sucos artificiais (em pó, de caixinha, concentrado), os salgadinhos de pacote, as guloseimas (bala, chiclete, pirulito, chocolate), os cereais matinais, os achocolatados (em pó, pronto para beber), os biscoitos e os bolos sem e com recheios, os sorvetes (de massa, picolé), as sobremesas lácteas (pudim, petit suisse) e os embutidos (salsicha, linguiça, presunto, peito de peru). Além deles, também foram avaliados os alimentos tradicionais – carnes (bovina, suína, frango, peixe) e ovos, cereais (arroz, farinha, batata, mandioca, macarrão, pão), leguminosas (feijão, lentilha, soja, grão de bico, ervilha), leite e derivados (queijo, iogurte), vegetais (crus e cozidos), frutas (in natura e suco natural) – e fatores sociodemográficos (idade materna e infantil, sexo, grau de escolaridade e renda familiar).
Já a avaliação sobre a responsabilidade percebida pelos pais na alimentação infantil foi realizada por meio do Child Feeding Questionnaire (CFQ), desenvolvido por Leann L. Birch, professora da Faculdade de Saúde e Desenvolvimento Humano da Universidade Estadual da Pensilvânia (EUA) e colaboradores em 2001.
Consumo alimentar da criança nos sete dias que antecederam à pesquisa, autorreferido por 929 pais, por meio de um Questionário de Frequência Alimentar (QFA), em uma amostra de crianças de 2 a 9 anos. Campinas e São Paulo, Brasil.
Frequência de consumo alimentar (%) |
|||||
Alimentos |
Não consumiu |
1-2 vezes |
3-4 vezes |
5-6 vezes |
Consumiu todos os dias |
Leite e derivados |
2,80% |
6,14% |
8,50% |
7,53% |
75,03% |
Cereais |
0,43% |
2,58% |
6,67% |
16,58% |
73,74% |
Carnes e ovos |
0,43% |
2,48% |
11,63% |
20,67% |
64,80% |
Frutas |
2,69% |
5,38% |
13,56% |
17,76% |
60,60% |
Leguminosas |
4,63% |
5,49% |
13,78% |
18,73% |
57,37% |
Hortaliças |
8,93% |
12,70% |
16,68% |
14,96% |
46,76% |
Achocolatado |
39,61% |
12,27% |
8,61% |
7,86% |
31,65% |
Sucos artificiais |
25,19% |
19,27% |
18,73% |
17,12% |
19,70% |
Biscoitos e bolos sem recheio |
27,23% |
34,77% |
24,97% |
7,32% |
5,71% |
Cereal matinal |
56,19% |
21,42% |
12,70% |
4,31% |
5,38% |
Sobremesas lácteas |
44,03% |
31,32% |
16,90% |
4,31% |
3,44% |
Guloseimas |
18,30% |
50,70% |
21,96% |
5,71% |
3,34% |
Embutidos |
34,77% |
42,30% |
16,79% |
3,66% |
2,48% |
Refrigerantes |
51,67% |
37,24% |
7,75% |
1,40% |
1,94% |
Biscoitos e bolos com recheio |
56,30% |
30,14% |
10,98% |
1,51% |
1,08% |
Salgadinho de pacote |
62,33% |
33,80% |
3,44% |
0,11% |
0,32% |
Fast-Food |
38,54% |
59,20% |
1,83% |
0,32% |
0,11% |
Macarrão instantâneo |
78,15% |
20,67% |
1,08% |
0,11% |
0,00% |
Sorvetes |
62,65% |
32,51% |
4,41% |
0,43% |
0,00% |
Fonte: Sociodemographic, anthropometric and behavioural risk factors for ultra-processed food consumption in a sample of 2-9-year-olds in Brazil. Public Health Nutrition 2018
Padrões alimentares identificados pelo Questionário de Frequência Alimentar (QFA) em uma amostra de crianças de 2 a 9 anos (n. 929). Campinas e São Paulo, Brasil.
Padrão Alimentar Tradicional | Carnes e ovos Cereais Leguminosas Leite e derivados Hortaliças Frutas |
Padrão Alimentar Ultraprocessado |
Fast-Food Sucos artificiais Salgadinho de pacote Guloseimas Biscoitos e bolos com recheio |
Fonte: Sociodemographic, anthropometric and behavioural risk factors for ultra-processed food consumption in a sample of 2-9-year-olds in Brazil. Public Health Nutrition 2018
Teses relacionadas:
MAIS, Laís Amaral. Estudo das práticas parentais de alimentação entre escolares brasileiros. 2017. 188f. Tese (Doutorado em Ciências) – Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2017.
WARKENTIN, Sarah. Estudo das práticas parentais de alimentação entre pré-escolares brasileiros. 2017. 188f. Tese (Doutorado em Ciências) – Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2017.
Artigos Relacionados:
MAIS, Laís Amaral; WARKENTIN, Sarah; VEGA, Juliana Bergamo; LATORRE, Maria do Rosário Dias de Oliveira; CARNELL, Susan; TADDEI, José Augusto de Aguiar Carrazedo. Sociodemographic, anthropometric and behavioural risk factors for ultra-processed food consumption in a sample of 2-9-year-olds in Brazil. Public Health Nutrition, v. 21, n. 1, p. 77-86, jan. 2018. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28988543>. Acesso em: 7 jun. 2018.
MAIS, Laís Amaral; WARKENTIN, Sarah; LATORRE, Maria do Rosário Dias de Oliveira; CARNELL, Susan; TADDEI, José Augusto de Aguiar Carrazedo. Validation of the comprehensive feeding practices questionnaire among Brazilian families of school-aged children. Frontiers in Nutrition, v. 2, nov. 2015. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4630658/pdf/fnut-02-00035.pdf>. Acesso em: 7 jun. 2018.
WARKENTIN, Sarah; MAIS, Laís Amaral; LATORRE, Maria do Rosário Dias de Oliveira; CARNELL, Susan; TADDEI, José Augusto de Aguiar Carrazedo. Validation of the comprehensive feeding practices questionnaire in parents of preschool children in Brazil. BMC Public Health, v. 16, jul. 2016. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4952239/>. Acesso em: 7 jun. 2018.
MAIS, Laís Amaral; WARKENTIN, Sarah; LATORRE, Maria do Rosário Dias de Oliveira; CARNELL, Susan; TADDEI, José Augusto de Aguiar Carrazedo. Parental feeding practices among Brazilian school-aged children: associations with parent and child characteristics. Frontiers in Nutrition, v. 4, mar. 2017. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28377921>. Acesso em: 7 jun. 2018.
WARKENTIN, Sarah; MAIS, Laís Amaral; LATORRE, Maria do Rosário Dias de Oliveira; CARNELL, Susan; TADDEI, José Augusto de Aguiar Carrazedo. Factors associated with parental underestimation of child's weight status. Jornal de Pediatria, v. 94, n. 2, p. 162-169, mar./abr. 2018. Disponível em: <https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S002175571630300X?via%3Dihub>. Acesso em: 7 jun. 2018.
FREITAS, Fabrícia R.; MORAES, Denise E.B.; WARKENTIN, Sarah; MAIS, Laís Amaral; IVERS, Júlia F.; TADDEI, José Augusto de Aguiar Carrazedo. Maternal restrictive feeding practices for child weight control and associated characteristics. Jornal de Pediatria, fev. 2018. [on-line] Disponível em: <https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0021755717305004?via%3Dihub>. Acesso em: 7 jun. 2018.