Ana Cristina Cocolo
A deficiência da proteína alfa-1 antitripsina (DAAT) é um fator agravante aos fumantes e pode aumentaro impacto das sequelas do tabaco na função pulmonar e no aparecimento precoce de enfisema (Imagem: Alex Heipert)
Apesar de rara, a deficiência da proteína alfa-1 antitripsina (DAAT) é a doença genética mais frequente não detectada atualmente no teste do pezinho – exame realizado obrigatoriamente em recém-nascidos para o diagnóstico precoce de até seis doenças congênitas ou genéticas, como a fibrose cística e hipotireoidismo congênito. O alerta é do pneumologista e professor da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo, José Roberto Jardim.
A DAAT é um distúrbio genético grave, resultado de diferentes mutações no gene serpina1, no qual a redução da proteína alfa-1 antitripsina no organismo pode desencadear sérios problemas clínicos. Pessoas com DAAT possuem genes anormais (os mais comuns são Z e S), herdados um do pai e outro da mãe, diminuindo a produção da proteína alfa-1 antitripsina (AAT).
A AAT é produzida pelo fígado e liberada na corrente sanguínea. Sua função é neutralizar várias enzimas presentes na resposta inflamatória do organismo, como a elastase neutrofílica, que ataca a estrutura dos pulmões e pode causar sérios danos ao órgão, como o enfisema que ocorre na doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). A DPOC habitualmente inclui a associação de bronquite crônica (reversível) e o enfisema pulmonar (irreversível).
De acordo com Jardim, que coordenou um estudo inédito no país para descobrir a prevalência do distúrbio, a DAAT é um fator agravante aos fumantes e pode aumentar o impacto das sequelas do tabaco na função pulmonar e no aparecimento precoce de enfisema, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) não contagiosa, porém debilitante, que atinge cerca de 3 a 4 milhões de pacientes. A fumaça do cigarro provoca o aumento de neutrófilos nos pulmões e, concomitantemente, a maior produção de elastase neutrofílica. “O subdiagnóstico da DAAT tem sido uma importante limitação, não somente para entendermos melhor a doença, como também para trabalharmos na educação genética dos familiares e indicarmos um tratamento mais adequado a cada caso”, afirma Jardim.
A investigação envolveu pesquisadores de outras instituições e foi tema do doutorado do pneumologista Rodrigo Russo, defendido em 2016 na Unifesp, e do mestrado de Laura Zillmer, que montou o método no Brasil, junto com o biomédico Gildo Santos.
Brasil sem estatística
Dois trabalhos publicados nas revistas científicas Lancet (Alpha1-antitrypsin deficiency, em 2005) e Chest (Worldwide racial and ethnic distribution of alpha1-antitrypsin deficiency: summary of an analysis of published genetic epidemiologic surveys, em 2002) estimam que a incidência de DAAT é de 1 para cada 2 mil a 5 mil nascidos vivos. No Brasil, no entanto, ainda não dispúnhamos desses números, apesar de sua importância, principalmente, por sermos uma população que possui uma mistura muito grande de raças e, possivelmente, maior risco de apresentar mutações genéticas.
A pesquisa brasileira, finalizada com 926 pessoas com DPOC, apontou que a prevalência de DAAT no país entre os pacientes com DPOC é de 2,8%, sendo 0,8% na forma mais grave, a DAAT na forma ZZ. Isto quer dizer que a cada 100 pacientes com DPOC atendidos, um tem uma deficiência grave (mutação ZZ).
Para o pesquisador, esse dado, apesar de não diferir da maioria dos países, é preocupante. “Hoje, entre 10% e 15% da população com mais de 40 anos sofrem de DPOC”, afirma. “Se estendermos a prevalência da DAAT mais grave, que é de 0,8%, somente para os brasileiros acima de 40 anos e que correspondem a 37% da população do país, temos mais de 30 mil pessoas que podem morrer precocemente por insuficiência pulmonar crônica, justamente por não saberem que precisam ficar longe do tabaco, seja como fumante ativo ou passivo, e de ambientes com gases tóxicos, que podem comprometer a função pulmonar”.
De acordo com ele, a Organização Mundial de Saúde preconiza, desde 1999, que é importante que todos os pacientes com DPOC deveriam ter, pelo menos, uma medida em vida de alfa-1 antitripsina. A investigação da doença ainda na infância seria determinante, pois permitiria que houvesse a educação preventiva sobre o hábito de fumar e suas consequências devastadoras para aqueles que possuem o gene deficiente. Além disso, seria possível a educação genética. No entanto, o exame para detecção do distúrbio não é disponibilizado em larga escala no país e nem mesmo é gratuito ou obrigatório, como o teste do pezinho. “Essa é uma realidade que precisa ser mudada no Brasil, pois o único tratamento para essas pessoas é a reposição da proteína alfa-1, que custa, em média, 50 mil dólares/ano”, explica. “É muito mais barato prevenir do que remediar”.
Miscigenação não alterou dados
Para chegar a esses resultados, os pesquisadores avaliaram, entre julho de 2011 e agosto de 2012, 1.073 pessoas com DPOC em acompanhamento médico em seis centros de assistência no país: dois no Nordeste (CE e PE), dois no Sudeste (SP e MG), um no Sul (RS) e um no Centro-Oeste (GO), realizando o mesmo método do teste do pezinho, desenvolvido em São Paulo para detecção da DAAT.
Desses, 926 preencheram os critérios de inclusão no estudo que foram, entre eles, ter 40 anos ou mais e ter mantido quadro clínico estável por, pelo menos, quatro semanas. Entre os fatores de exclusão foram considerados pessoas com diagnóstico de qualquer outra doença pulmonar, infecções e processos inflamatórios e ter recebido o diagnóstico de DAAT anteriormente.
A coleta dos dados ocorreu em três fases distintas. A primeira consistiu na dosagem de AAT em amostras de sangue, para a identificação de um possível diagnóstico. Nesse caso, foram coletadas gotas de sangue a partir de uma punção com agulha no dedo do indivíduo e a amostra colocada em um papel filtro, como no teste do pezinho, (semelhante ao teste caseiro para verificar a glicemia em pessoas com diabetes) e enviado para análise. Na segunda fase, os participantes identificados com concentração de AAT menor que 2,64 mg/dl, que indica suspeita da doença, foram submetidos à dosagem sérica da proteína, na qual são colhidas as amostras de sangue por meio de punção venosa. Na terceira e última etapa, os indivíduos com concentração de AAT no sangue menor que 113 mg/dl – valor usado como ponto de corte para tentar identificar não somente as pessoas com deficiência grave, mas também as com deficiência moderada – foram submetidos à genotipagem para o diagnóstico definitivo. A genotipagem identifica pequenas frações do DNA, denominadas marcadores, e variam de indivíduo para indivíduo. Quando houve divergências entre os resultados da dosagem sérica e a genotipagem, os pesquisadores realizaram o sequenciamento genético dos participantes.
Genotipagem
Jardim explica que o gene normal é chamado de M e, pessoas sem a DAAT, possuem duas cópias desse gene (MM). A combinação do gene M e do gene S ou Z – resultando no gene MS ou MZ – causa moderada redução da proteína alpha-1 antitripsina (AAT). Apesar de não apresentarem a doença, essas pessoas são portadoras do gene deficiente e podem transmiti- -lo para seus filhos. “O gene M é protetor e o Z o gene mais problemático. Se o pai for MZ e a mãe MZ, o filho tem chance de 30% de nascer com uma das três combinações: MM, MZ ou ZZ”, diz. “A combinação de genes ZZ é que apresenta pior prognóstico, reduzindo a atividade da AAT no organismo para 10%, seguido pelo SS”.
Ainda segundo ele, a presença de duas cópias do gene S (SS) garante 60% do nível normal de AAT no organismo e a combinação SZ diminui a ação da proteína em 40%, aumentando consideravelmente o risco de enfisema.
Dos 926 participantes do estudo, 85 apresentaram concentração de AAT no sangue seco menor que 2,64mg/dl e, com isso, suspeita de deficiência. Desses, em 24, os níveis séricos foram menores que 113mg/dl, tendo indicação para a realização da genotipagem.
Nessa análise, dentre os com DAAT, em 12,5% o genótipo encontrado foi o MS; em cerca de 54% prevaleceu o gene MZ; em 4,2%, o SZ; em 4,2%, o SS; e, em 25% o ZZ.
A DPOC é uma doença de progressão lenta e inicia-se com tosse e catarro (Imagem: Alex Reipert)
Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC)
De acordo com a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) é uma obstrução respiratória causada por uma reação inflamatória a gases e partículas que entram nos pulmões. Essa inflamação bloqueia a passagem de ar e dificulta a respiração. O diagnóstico da DPOC inclui, portanto, sintomas respiratórios, fator epidemiológico e a alteração da função pulmonar. As alterações da função pulmonar sãodecorrentes da presença de bronquite crônica (reversível) e o enfisema pulmonar (irreversível). Estima-se que, no Brasil, cerca de 5 milhões de pessoas sofram do mal.
Mais comum após os 40 anos de idade, a DPOC pode, no entanto, se manifestar em qualquer idade. Apesar de a exposição à poluição e a substâncias tóxicas ser uma das causas da doença, o tabagismo ainda é considerado o maior vilão e responsável por 75% a 85% dos casos diagnosticados.
A DPOC é uma doença de progressão lenta, que se inicia com tosse e catarro, os quais permanecem por alguns anos, progredindo para falta de ar leve após algum esforço físico maior e que se torna mais intensa, com o passar do tempo, mesmo com atividades corriqueiras que demandam menos energia corporal do indivíduo, como as atividades da vida diária.
Artigos relacionados:
RUSSO, Rodrigo; ZILLMER, Laura Russo; NASCIMENTO, Oliver Augusto; MANZANO, Beatriz; IVANAGA, Ivan Teruaki; FRITSCHER, Leandro; LUNDGREN, Fernando; MIRAVITLLES, Marc; GONDIM, Heicilainy Del Carlos; SANTOS JUNIOR, Gildo; ALVES, Marcela Amorim; OLIVEIRA, Maria Vera; SOUZA, Altay Alves Lino de; SALES, Maria Penha Uchoa; JARDIM, José Roberto. Prevalência da deficiência de alfa-1 antitripsina e frequência alélica em pacientes com DPOC no Brasil. Jornal Brasileiro de Pneumologia, São Paulo, v. 42, n. 5, p. 311-316, set./out. 2016. Disponível em: <http://jornaldepneumologia.com.br/imagebank/pdf/completo_v42n5_PT.pdf>. Acesso em: 26 fev. 2018.
ZILLMER, Laura Russo; RUSSO, Rodrigo; MANZANO, Beatriz Martins; IVANAGA, Ivan; NASCIMENTO, Oliver Augusto; SOUZA, Altay Alves Lino de; SANTOS JÚNIOR, Gildo; RODRIGUEZ, Francisco; MIRAVITLLES, Marc; JARDIM, José Roberto. Desenvolvimento e validação de um método de imunonefelometria em amostras de sangue em papel-filtro para a dosagem da alfa-1 antitripsina em pacientes com DPOC. Jornal Brasileiro de Pneumologia, v. 39, n. 5, p. 547-554, set./out. 2013. Disponível em: <http://www.jornaldepneumologia.com.br/detalhe_artigo.asp?id=2205>. Acesso em: 26 fev. 2018.