Ana Cristina Cocolo
Siphonops annulatus (popularmente conhecido como cobra-cega) tem função hepática que pode ajudar no avanço do tratamento da cirrose (Imagem: stephanieroot0/Pixabay)
O Siphonops annulatus é uma espécie de anfíbio – também conhecido por cobra-cega – cuja função hepática natural, nunca observada em outro animal, pode contribuir para o avanço no tratamento ou mesmo para a cura da cirrose, conforme mostra pesquisa desenvolvida na Unifesp, em parceria com pesquisadores do Instituto Butantan e da Universidade de Surrey, no Reino Unido.
O estudo, publicado em março no periódico Journal of Anatomy, utilizou a estereologia como método quantitativo e seus resultados apontaram que o fígado da cobra-cega possui células denominadas melanomacrófagos, capazes de remover e degradar o colágeno. Elas também são capazes de fagocitar e digerir os basófilos, células do sistema imunológico relacionadas aos processos inflamatórios e fibróticos.
A cirrose é uma doença crônica que mata, por ano, cerca de 30 mil pessoas no país, segundo a Sociedade Brasileira de Hepatologia. A enfermidade é o desfecho de lesões no fígado causadas pelo alcoolismo crônico, por hepatites e, em menor prevalência, pelo uso de medicamentos. Em qualquer um dos casos citados, ocorre uma resposta de autorreparação (fibrogênese) do órgão, por meio da produção exagerada de colágeno e da cicatrização (fibrose), fazendo com que o fígado deixe de exercer sua função e chegue à falência completa.
A estereologia permite a análise quantitativa de elementos por meio de imagens de tecidos de diversos órgãos, não apenas em duas dimensões (2D) – que compreendem o comprimento e a largura –, mas também em três dimensões (3D), levando em conta a profundidade. Por meio de um software é possível estimar, por exemplo, o número total de células contido em determinado volume do órgão.
De acordo com o autor principal do trabalho, Robson Campos Gutierre, professor colaborador do Departamento de Morfologia e Genética da Escola Paulista de Medicina - (EPM/Unifesp) Campus São Paulo, várias estratégias de tratamento para conter ou eliminar a fibrose hepática já foram testadas, sem sucesso, em ratos.
Assim como os seres humanos, os ratos possuem células de Kupffer (também chamadas macrófagos do fígado), que podem atuar na resposta pró ou anti-inflamatória do organismo a algumas doenças. Nos estudos com esses animais, verificou-se que as células de Kupffer são capazes de fagocitar e degradar o colágeno injetado na corrente sanguínea, embora não haja evidências dessa função in vivo sem a introdução da mesma proteína. “Uma vez que a cicatriz fibrótica seja instalada, não há como reverter a lesão”, afirma Gutierre. "A habilidade que essa espécie tem de controlar suas defesas naturais também poderia fornecer uma visão da tolerância imune, um mecanismo pelo qual o fígado pode controlar inflamações indesejadas.”
Segundo o pesquisador, a tolerância imunológica pode, no caso, ser estudada porque essa espécie produz células pró-inflamatórias no fígado – hematopoiético – durante toda a vida, sem desenvolver inflamações crônicas. Como não possuem medula óssea, as células sanguíneas são produzidas no fígado e baço.
Cirrose no mundo
Várias são as causas que podem levar à cirrose hepática. Entre as principais estão o uso abusivo de bebidas alcoólicas, as hepatites virais e a ingestão excessiva de medicamentos.
O Brasil padece da insuficiência de dados epidemiológicos, mas o artigo Mortalidade por Cirrose, Câncer Hepático e Transtornos Devidos ao Uso de Álcool: Carga Global de Doenças no Brasil, 1990 e 2015, publicado em maio de 2017, no volume nº 20 da Revista Brasileira de Epidemiologia (http://dx.doi.org/10.1590/1980-5497201700050006), aponta que, em 2015, foram a óbito 28.337 pessoas devido a uma das três condições avaliadas no estudo. Esse número foi 75% maior quando comparado aos níveis de 1990.
Já com relação às hepatites, foram notificados ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, 514.678 casos de hepatites virais no país, de 1999 a 2015. Desse total, 161.605 (31,4%) são referentes aos casos de hepatite A; 196.701 (38,2%), aos de hepatite B; 152.712 (29,7%), aos de hepatite C; e 3.660 (0,7%), aos de hepatite D.
Cobra-cega
Apesar de muitas vezes ser confundido com um anelídeo de corpo segmentado (como a minhoca ou minhocoçu), ou com uma serpente – pois chega a medir 45 centímetros de comprimento –, o Siphonops annulatus (popularmente conhecido como cobracega) é uma espécie de anfíbio e não um oligoqueta ou réptil.
Pertencentes à ordem de anfíbios denominada pelos cientistas Gymnophiona [do grego gymnos (nu) e ophioneus (semelhante a serpente)] ou Apoda [do grego a (sem) e podus (pé)], as cobras-cegas também recebem o nome de cecília [do latim caecus (cego)], já que todas as espécies têm olhos pequenos, envoltos em uma camada de pele. Seu habitat inclui florestas tropicais e subtropicais, distribuindo-se por quase toda a América do Sul. No Brasil, habitam também plantações, pastagens e jardins, alimentando-se de invertebrados, como cupins, formigas e minhocas, que vivem no solo.
De acordo com diversos pesquisadores, a espécie Siphonops annulatus não é propriamente cega, apesar de não ser capaz de distinguir imagens. Seus olhos têm a função fotorreceptora, pois percebem a ausência ou presença de luz no ambiente.
Gutierre explica que – entre as 207 espécies de cobras-cegas identificadas no mundo – 36 são oriundas do Brasil.
Artigo relacionado:
GUTIERRE, Robson Campos; JARED, Carlos; ANTONIAZZI, Marta Maria; COPPI, Antonio Augusto; EGAMI, Mizue Imoto. Melanomacrophage functions in the liver of the caecilian Siphonops annulatus. Journal of Anatomy, [s.l.], v. 232, n. 3, p. 497-508, mar. 2018. Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/joa.12757>. Acesso em: 26 fev. 2018.