Valquíria Carnaúba
Originalmente, um balão é definido como uma aeronave, mais leve que o ar, que flutua impulsionada pelo vento. Podendo ou não ter passageiros, divide-se em três tipos principais: balões de ar quente, balões a gás, balões de Rozier (híbridos, utiliza gases aquecidos e não aquecidos). É tido como o mais antigo veículo aéreo da história da humanidade - o primeiro voo controlado de um balão de ar quente ocorreu em Paris no ano de 1783.
Mais recentemente, a soltura de modelos movidos a tocha tornou-se uma tradição no Brasil em razão dos festejos juninos. Entretanto, a transformação de um veículo aéreo em uma atividade cultural separou, em 1998, os balonistas dos baloeiros perante a lei. A partir de uma abordagem antropológica, Erika Paula dos Santos, pesquisadora cuja dissertação de mestrado foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) – Campus Guarulhos, analisou as práticas e as relações vivenciadas por grupos que se autodenominam turmas de baloeiros atuantes na região metropolitana de São Paulo.
Segundo o Sindicato Nacional de Empresas Aeroviárias (SNEA), as turmas de baloeiros soltam no Brasil, em média, 100 mil balões por ano. Existem cerca de mil turmas na Grande São Paulo e outras mil no Rio de Janeiro, cada uma com aproximadamente 25 integrantes. As duas cidades são responsáveis por 60% do total de balões soltos no país. Os números, que expressam a consolidação de uma prática considerada arte e tradição da cultura popular, caminham lado a lado com crescimento do combate oficial à prática e sua ilegalidade.
De acordo com a pesquisadora, a realidade é que as autoridades, apoiadas no argumento dos danos materiais e ambientais que a atividade provoca, deparam-se com uma atividade que adquiriu o prestígio de lazer sério. “Sua intensificação e a dinâmica de organização e formação das turmas surgiu no início da década de 1980, com o que eles chamam de gigantismo, que é a confecção de balões mais elaborados e de grande dimensão”, discorre.
“Eu sou da época em que se soltava balão na pracinha e a polícia fazia a segurança. Por que hoje ela quer me prender?”
Expressão artística e social
Em 1982, o sociólogo estadunidense Robert Stebbins criou o conceito de lazer sério, baseado na observação de alguns comportamentos típicos entre os praticantes de atividades lúdicas, como perseverança, esforço, identificação, benefícios sociais e emocionais e carreira (lazer a partir do trabalho). Fica claro como esses eixos norteiam os baloeiros quando a arte é colocada como pilar central da atividade. Conforme relata Santos, os praticantes valorizam enormemente a técnica e acreditam poder alcançar a perfeição artística por meio dela. É em nome da estética que trabalham por meses e mobilizam grandes grupos.
“Em meio ao esforço, questionam a todo momento como pequenos pedaços de papéis de seda cortados em quadrados dão forma ao balão e criam imagens tão detalhadas que até parecem pinturas, ou como pequenos copinhos de papel com pedaços de velas dentro formam painéis de luz que ganham os céus”, complementa a pesquisadora.
Se é verdade que o fim da arte superior é libertar, a feitura dos balões atingiu seu objetivo, ao menos com o primo de Cristiano, um dos baloeiros entrevistados pela antropóloga. “João citou que o mesmo acontecera a outro dos membros de sua turma, que começou a abusar do uso de drogas a ponto de atrapalhar a sua vida pessoal e o desempenho da turma. A turma se reuniu e o chamou para uma conversa aconselhando-o a parar, pois, caso contrário, o expulsariam. O rapaz, então, se dedicou ao balão e se afastou do uso de drogas. Foi nesse contexto que ele se tornou um dos principais responsáveis pela produção de um dos balões mais representativos da história. Após descrever esse acontecimento João repetiu a frase de Cristiano: balão salva”, conta a pesquisadora.
Meio ambiente e segurança em xeque
Apesar do resgate do balão ser uma etapa importante nos rituais dos baloeiros, a ação ainda causa controvérsias entre os próprios praticantes e é uma das principais responsáveis pelo cerco legal que se forma em torno da atividade. “Para alguns deles, o processo ritualístico desse mundo termina na soltura, para outros esse processo só é finalizado após o resgate, e ainda há casos em que o resgate é o início do processo. No caso dos que arriscam a captura, um dos argumentos utilizados é a recuperação de material, importante devido ao alto custo de produção. Um balão de 20 metros, por exemplo, pode custar até R$ 16 mil. Se for bem confeccionado e não sofrer muitos prejuízos durante a queda ou resgate, ele pode ser lançado novamente várias vezes”, elucida.
Chama a atenção a preocupação de muitos outros com o resgate do balão como forma de evitar o risco de tragédias e incêndios que possam acontecer eventualmente. Segundo esses “caçadores”, quem o captura sabe como apagá-lo e dominá-lo, caso caia em um lugar que coloque vidas em risco. Entretanto, pelo resgate não ser consenso entre os praticantes, a soltura de balões é cada vez mais comum em sítios e chácaras, ou seja, locais afastados dos grandes centros urbanos, minimizando as chances de acidentes envolvendo pessoas.
Ainda que os riscos urbanos sejam minimizados, não excluem aqueles inerentes ao meio ambiente e ao tráfego aéreo. Quase sempre iluminados por buchas acionadas por botijões de gás, os balões podem cair em áreas de vegetação, causando danos sérios. Um dos casos mais recentes envolve um incêndio no Parque Estadual Juquery, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, causado por um balão, que consumiu em torno de 10% da área de cerrado conservada na região metropolitana. Quando o perigo está no céu, pode significar a morte de muitos.
Sérgio Dazzi, piloto e instrutor de planador no aeroclube de Tatuí, interior do Estado de São Paulo, explica que um piloto de avião comercial, no exercício de sua função, se orienta por radares e dificilmente olha para o espaço aéreo. Em áreas terminais, a uma altitude de aproximadamente 15 mil pés (algo em torno de 4,5 mil metros), balões e aviões podem se encontrar de forma desastrosa.
“Já nos casos dos planadores e dos veí - culos de balonismo, compostos por cestas para a viagem de passageiros e a estrutura do maçarico, respeitam a um espaço aéreo delimitado (chamado box) de no máximo 300 metros de altitude, bem abaixo da altitude comum de naves civis. Inclusive, seus pilotos portam sempre rádios, por meio dos quais se comunicam em frequência livre (123,45 MHz), utilizada para contato com eventuais aeronaves próximas dos locais de voo”, explica Dazzi.
Enquanto o impasse se estendia, for - mou-se em 2012 a Associação Brasileira de Baloeiros Ecológicos (ABB), na zona leste da cidade de São Paulo, composta por baloei - ros interessados em dar continuidade ao seu hobby passando longe das restrições le - gais. Tais veículos não utilizam fogo em sua soltura, devem ser biodegradáveis e não po - dem conter nenhum tipo de material que danifique a natureza ou gere curtos-circui - tos. Ainda assim, podem provocar aciden - tes aéreos. Por isso, Santos é categórica em afirmar que a questão está longe de uma resolução.
Para ela, o atual conflito traz uma rique - za à pesquisa antropológica à medida que permite visualizar como se constroem essas práticas e as relações simbólicas. “Buscamos compreender como a atividade de construir, soltar e resgatar balões é articuladora de re - lações simbólicas e de práticas culturais nes - ses grupos, e como estabelece relações de conflito com a legislação vigente”, finaliza.
BALONISTAS E BALOEIROS
Os balonistas são praticantes de um esporte mundialmente reconhecido e regulamentado, que consiste no uso tripulado de uma aeronave sustentada por um balão de ar quente. No Brasil, o veículo deve ser matriculado junto à Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), e o seu piloto deve portar licença, como no caso de aviões e helicóptero, que tem a brevê.
Os baloeiros constituem um grupo de indivíduos dedicados a fabricar, soltar e capturar balões, em geral feitos de forma rudimentar a partir de diversos materiais: folha de papel, gaiola de armação, cola, cordas e lonas. Trata-se de uma prática cultural tradicional e popular, mas repleta de riscos para os seres humanos e para o meio-ambiente, principalmente por seu potencial incendiário
UM SÍMBOLO DAS FESTAS JUNINAS
Aqui no Brasil, em tempos remotos, os balões lembravam, esteticamente, muito os de festas juninas, soltos para avisar a parentes e vizinhos que as festas estavam começando. Quanto à finalidade, cumpriam um papel semelhante às pipas no universo de adultos e crianças.
“Com o gigantismo, os artefatos estruturalmente simples, que mediam cerca de 80 cm2 , evoluíram para verdadeiros monumentos, variando de 10 a 120 metros. E, por serem mais complexos, envolvem muito mais pessoas em sua produção”, observa Erika Paula dos Santos. De acordo com seu estudo, os balões são produzidos, em quase todos os casos, por meio da organização de alguns indivíduos, denominados turma. “A atividade se estende ao grupo familiar, amigos e vizinhos, formando ciclos de relações baseadas em valores e significados específicos desse mundo, como compromisso, amizade e paixão. O processo, por vezes, leva meses ou até anos, dependendo do seu tamanho, do número e da disponibilidade dos integrantes do grupo”, relata Santos.
MEMÓRIA E TRADIÇÃO
Além da arte, a memória e a tradição são dois outros elementos fundamentais para entender como o balão adquiriu a importância atual como parte da cultura popular. De um lado, a memória, aqui entendida como as relações que o indivíduo mantém com seu contexto social, revela baloeiros que associam a prática a lembranças de infância e adolescência. De outro, a tradição como justificativa e argumento contra sua recente proibição.
“A memória dos mortos e dos mais velhos é importante e respeitada nesse mundo. Há uma grande consideração pelas narrativas e, nos encontros entre os baloeiros, é uma honra conversar com um praticante mais antigo”, observa Erika Paula dos Santos.
E continua: “Em torno da questão da memória individual, constrói-se a memória coletiva: os locais de encontro se transformam em espaços de sociabilidade e interação, onde se presencia a "contação" de histórias como algo para dar sentido à vida desses indivíduos, a exemplo dos relatos resgatados em exibições de vídeos de balões nos telões dos bares ou nas festas da turma da padaria”.
Trata-se de uma construção cultural em que se entrelaçam tradição e quebra de paradigmas. “A presença de mulher na bancada não é algo muito corriqueiro. Tatiana, uma das poucas mulheres que conheci do meio, relata já ter sofrido distinção devido ao gênero, mas geralmente é bem aceita na turma. Para ela, a questão de gênero pouco influencia em sua atuação na bancada; as mulheres são, inclusive, elogiadas por serem consideradas cautelosas e mais caprichosas”, discorre Santos.
Dissertação relacionada:
SANTOS, Erika Paula. Festa no céu, conflito na terra: um estudo das práticas de turmas de "baloeiros" na cidade de São Paulo. 2016. 102 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2016
Artigo relacionado:
SANTOS, Erika Paula. O que a terra proíbe o céu agradece: um estudo da prática dos baloeiros. Pensata, v. 5, n. 1, p. 89, mar. 2016. Disponível em: <http://www2.unifesp.br/revistas/pensata/>. Acesso em: 20 jun. 2018.