Valquíria Carnaúba
O avanço da Medicina se dá não somente pelas grandes descobertas, mas também pelas pequenas revoluções que podem mudar a vida de inúmeras pessoas. Imagine um paciente que precisasse reparar uma fratura craniana e isso fosse possível com um procedimento minimamente invasivo, por meio da aplicação de cimentos ósseos com uma seringa.
Caroline de Oliveira Renó, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Ciência de Materiais do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT/Unifesp) – Campus São José dos Campos, se antecipou à demanda por biomateriais que possam ser implantados em cirurgias minimamente invasivas, estimulem o crescimento de um novo tecido e sejam reabsorvíveis. Ela apostou na otimização das propriedades do cimento de fosfato tricálcico (CFC), utilizando biocerâmica bioativa e reabsorvível in vivo, por meio de três técnicas distintas: codopagem com estrôncio (Sr) e silício (Si), atomização por spraydrying e incorporação do polímero carboximetilcelulose, comumente utilizado pela indústria de cosméticos.
Um grande número de pacientes necessita de enxertos pelos mais diversos motivos, entre eles retirada de tumores, fraturas traumáticas e cirurgias ortopédicas. Nesse contexto, as biocerâmicas à base de fosfato de cálcio passam a ser amplamente requisitadas na substituição e regeneração do tecido ósseo por apresentarem características como composição química semelhante à fase mineral de ossos e dentes, boa biocompatibilidade, bioatividade, ausência de toxicidade local ou sistêmica e capacidade de ligar-se ao tecido hospedeiro ou ser absorvida pelo tecido vivo. Nessa classe de biocerâmicas está inserido o Fosfato Tricálcico (TCP), material obtido a partir da reação entre o carbonato de cálcio e o hidrogenofosfato de cálcio, dando origem a quatro possíveis estruturas cristalinas do sal de cálcio e fosfato, entre as quais a alfa (alfa-TCP).
As biocerâmicas alfa-TCP vêm despertando bastante interesse devido à sua reabsorção e capacidade de conversão em hidroxiapatita deficiente em cálcio (CDHA), material com estrutura muito similar à fase mineral óssea - correspondente a 60% - 70% do peso seco do osso e composta basicamente por fosfatos de cálcio. Entretanto, quando utilizados como cimento ósseo, comumente não atendem às maiores expectativas de cirurgiões e pacientes. Um dos motivos é que a pasta formada em contato com o solvente mais adequado para seu preparo, um tampão salino à base de fosfato, não surte uma “liga” adequada, provocando a segregação de fases e consequente empedramento antes mesmo da aplicação.
Além disso, mesmo apresentando compatibilidade superior aos materiais metálicos, os TCPs são cerâmicas, materiais com ausência de deformação plástica e, por isso, baixa resistência à fratura quando submetidos a esforços de tração. Para comparar, a matriz óssea é infinitamente superior por ser composta por uma parte inorgânica (65% representa a rigidez e resistência do osso), mas também por uma orgânica (35% representa a flexibilidade do osso).
“O desenvolvimento de materiais resistentes, injetáveis, que curem in vivo e ainda sejam degradados pelo organismo, enquanto um novo tecido cresce, é uma abordagem estratégica para alavancar o uso de CFCs”, explica Renó. Orientada por Mariana Motisuke, docente do ICT/Unifesp, a pesquisadora desenvolveu materiais que atendessem a essas características a partir de quatro diferentes fosfatos de cálcio: alfa-TCP puro, alfa-TCP acrescido de íons de estrôncio e silício, alfa-TCP atomizado e alfa-TCP atomizado com acréscimo de íons de estrôncio e silício. Tais experimentos levaram à aquisição de pastas com maior coesão e fluidez, bem como de cimentos mais resistentes, abrindo precedente para a injetabilidade de cimentos ósseos e o vislumbre de cirurgias crânio-faciais cada vez menos invasivas.
Da esquerda para a direita, a pesquisadora Caroline de Oliveira Renó e a docente Mariane Motisuke, do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT/Unifesp) / Imagem: Valquíria Carnaúba
Microscopia eletrônica de moléculas de fosfato de cálcio após passarem pela atomização por spraydrying, mais arredondadas, o que favorece a aquisição de biocerâmicas mais coesas
Cimento em sua essência
Coesão e cimento, para quem trabalha com construção civil, já são termos familiares e que causam grande preocupação por se atrelarem à qualidade de uma edificação. O cimento é formado por uma combinação de um pó fino, com propriedades aglomerantes, e água, que provoca a hidratação de seus compostos e seu consequente endurecimento. Entretanto, a qualidade final do concreto depende de sua coesão na fase de preparo. Conforme se modifica o grau de umidade, altera-se também sua consistência e se permite maior ou menor deformação do concreto perante os esforços. Na prática, engenheiros e pedreiros mais experientes sabem que um bom cimento é uma mistura que leva, além de água, areia, aditivos, agregados, e às vezes até detergente.
Com o cimento ósseo é quase a mesma coisa. A codopagem, por exemplo, consiste na substituição de íons de cálcio ou fosfato da estrutura do TCP [Ca3(PO4)2]. Lembrando das aulas de química inorgânica, fica mais fácil entender. O grupo fosfato (PO4) possui cinco elétrons na camada de valência e para chegar à estabilidade (teoria do octeto) precisa ganhar três elétrons. Já o cálcio possui dois elétrons na camada de valência, então pode doar dois elétrons para atingir o octeto completo. A substituição iônica ocorre trocando o parceiro metálico desse par de valsa (aquele que doa elétron, ou seja, o cálcio) por um outro elemento químico metálico (estrôncio) ou semimetálico (silício).
“Esse procedimento tem sido amplamente explorado na engenharia tecidual como um caminho seguro na obtenção de biocerâmicas que interagem melhor com o organismo humano, favorecendo a regeneração óssea”, explica Renó. Codopando o alfa-TCP, a pesquisadora da Unifesp obteve, além do retardamento de sua hidrólise (decomposição pelo solvente no momento da preparação do cimento), outros benefícios. A substituição com o silício acarretou na diminuição da temperatura de obtenção do alfa-TCP, reduzindo os custos com energia na preparação do material precursor. O estrôncio, por sua vez, favorece a atividade osteoblástica, estimulando a formação óssea.
Já a atomização (fragmentação) por spraydrying permite a aquisição de um pó mais homogêneo e de partículas em formato esférico, o que traz mais coesão e fluidez às pastas preparadas para uso cirúrgico. Nesse processo, o fosfato de cálcio é acrescido de uma solução aquosa à base de ácido cítrico, polietilenoglicol e amônia, pulverizada em pequenas gotículas de suspensão, por sua vez rapidamente secadas à medida que entram em contato com uma corrente de ar quente no interior de uma câmara de secagem.
Embora as partículas sejam submetidas a temperaturas elevadas, o curto tempo de secagem faz com que a temperatura no interior das gotículas permaneça baixa, permitindo a obtenção de moléculas de fosfato de cálcio uniformes e esféricas, conservando as características originais do composto, que misturam melhor com o tampão fosfato, devido à maior molhabilidade (habilidade de um líquido em manter contato com uma superfície sólida) das partículas atomizadas. A técnica é muito utilizada na indústria alimentícia: sabe aquele leite em pó que não dissolve de jeito nenhum, formando aqueles grumos, para a decepção do seu café da tarde? Certamente não passou por spraydrying...
Aliando ambos os processos à adição de 0,5% do polímero carboximetilcelulose (CMC) sobre a fase líquida, a pesquisadora obteve um aumento da viscosidade da pasta, bem como uma cerâmica mais resistente à compressão. A força do cimento ósseo é medida em Mega Pascal (MPa), unidade que aufere a capacidade de deformação de um material, ou seja, a energia que um corpo é capaz de absorver alterando sua forma sob a aplicação de uma carga externa, em comparação à resistência dos ossos esponjosos, zonas de crescimento do comprimento ósseo e, por isso, onde são feitas as aplicações de biocerâmicas.
“Devido à sua estrutura porosa, o osso esponjoso absorve grandes quantidades de energia antes de fraturar, possuindo uma resistência à compressão dentro da faixa abrangida entre 1 e 12 MPa. As cerâmicas utilizadas hoje têm uma resistência que varia entre 10 e 60 MPa e os cimentos ósseos que obtivemos em laboratório apresentaram uma resistência média de 30 MPa, um valor bastante satisfatório”, comenta Renó.
Tecido vivo
De acordo com Motisuke e Renó, um dos grandes diferenciais da biocerâmica sintetizada em laboratório é a interação produzida com o organismo humano, favorecendo o crescimento do tecido ósseo. O estrôncio tem um papel decisivo nesse processo. A partir do momento que o trauma começa a regredir durante a recuperação do paciente, a reação natural do organismo é incorporar o coágulo formado na região atingida por meio da fagocitose, processo de ingestão e destruição de partículas sólidas por células ameboides chamadas fagócitos, ao mesmo tempo que nasce o novo tecido ósseo. Se nesse processo o osso encontra um TCP pelo caminho, mobiliza um verdadeiro exército de leucócitos para destruir e ingerir esse material, uma situação que pode fugir do controle e configurar um processo infeccioso.
Os cimentos de fosfato codopados com estrôncio não só reduzem a reabsorção óssea, mas também estimulam a formação do novo tecido, já que os íons de estrôncio hoje são reconhecidos por terem uma forte atuação tanto na redução da diferenciação dos osteoclastos, células responsáveis por essa reabsorção, como na proliferação e ativação de osteoblastos, células envolvidas na formação do novo osso. “Verificamos que o cimento de alfa-TCP apresenta uma taxa de reabsorção bem lenta. Fizemos testes de 30 dias com ele e o enxerto perdeu de 15% a 20% de massa”.
Microscopia eletrônica de uma amostra de scaffolds de biocerâmica construída por impressora 3D. Sua estrutura assemelha-se ao osso esponjoso humano
Amostras de scaffolds produzidos a partir de cimentos de fosfato de cálcio, impressas pela técnica de robocasting
Aplicação promissora em scaffolds
A injetabilidade do novo material abriu precedente para outras aplicações, como a produção de peças em 3D por meio da técnica de robocasting, que lembra muito a impressão comum e consiste na extrusão de uma pasta por meio de um bico pequeno, enquanto o mesmo é movido através de uma plataforma. A tecnologia de fabricação de modelos tridimensionais de próteses de reconstrução óssea e órgãos humanos já é uma realidade na geração de estruturas pela produção de sucessivas camadas dos materiais utilizados, que podem variar desde plásticos até biocerâmicas.
“Os cimentos de fosfato, mais coesos, possibilitaram seu manuseio facilitado durante a impressão de scaffolds, suportes porosos de material biorreabsorvível colonizados por células vivas que crescem com design da parte humana a ser regenerada. Como a impressão é um processo mais lento, foi executado com água em vez de solução tampão, para que a pasta não endurecesse durante a fabricação das estruturas. Adicionamos também o polímero Pluronic® para maior viscosidade dos filamentos impressos", explica Renó. Ainda assim, os scaffolds obtidos são bons candidatos para serem aplicados como substitutos do osso esponjoso, pois mostraram uma resistência mecânica dentro do intervalo desejado, com macroporosidade interconectada, e possuindo como principal vantagem a característica de serem impressos para preencher quaisquer defeitos, comemoram as pesquisadoras.
Artigo relacionado:
RENÓ, Caroline de Oliveira; MOTISUKE, Mariana. Optimizing the water-oil emulsification process for developing CPC microspheres. Materials Research, v. 19, n. 6, p. 1388-1392, nov./dez. 2016. Disponível em: . Acesso em: 6 jun. 2018.