Em cada canto da casa, uma representação de quem é Hélio Egydio Nogueira. Destaque para a figura de Santo Antônio e para as homenagens da Câmara Municipal de Guaratinguetá, sua cidade natal, e da presidência da República / Imagem: Alex Reipert/DCI-Unifesp
Texto: Juliana Narimatsu
"Resumiria que Cristo me deu pais que souberam me formar, uma esposa que me ama, filhos e netos queridos”, disse emocionado Hélio Egydio Nogueira durante nossa entrevista. Ele nos recebeu, em uma manhã ensolarada do último dia de outubro de 2018, no conforto de sua casa, especificamente no escritório, um baú de relíquias sentimentais, com imagens de santos católicos, fotos de parentes – coloridas e em preto e branco – e placas de homenagem a seus feitos profissionais.
Estávamos cercados por lembranças e, depois de alguns goles de café, risadas e choros, a pergunta feita a ele, no caso, remeteu-nos a um olhar sobre sua trajetória. No entanto, a despeito das atribuições que cabem ao Hospital São Paulo (HSP), à Escola Paulista de Medicina (EPM) e à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele arrematou sua fala sem hesitar: “São também meu pai e minha mãe.”
Eugênia e Egydio
Eugênia Nogueira Bretas, mãe dedicada e rigorosa, era responsável pelas tarefas do lar. Egydio Nogueira da Silva, pai sábio e exigente, foi comerciante, dono de um grande armazém no bairro. A família morava ao pé do morro Alto das Almas, localizado no município de Guaratinguetá, em São Paulo. Seus quatro filhos – Hélio Egydio, Egydio Filho, Paulo César e Regina Lúcia – nasceram, nessa ordem, na própria casa e no mesmo quarto, com a mesma parteira. O primogênito e protagonista desta história veio ao mundo em dois de março de 1939.
Na época, Alto das Almas – ou melhor, “Arto” das Almas, conforme a variante linguística do interior paulista – era uma região bem simples, vizinha de propriedades de fazendeiros, cafeicultores e criadores de gado. Para chegar até o topo da colina, andava-se por uma estrada de terra e de pedregulho, com pés muitas vezes descalços, ou de bicicleta.
Lá em cima, havia uma paisagem contrastante: a Santa Casa, a cadeia e a escola ficavam próximas. Do lado oposto ao morro, estava a Igreja de Nossa Senhora das Graças. Apesar dos pesares, os moradores conheciam-se entre si, e a casa dos Nogueiras era praticamente frequentada por todos.
Seu Egydio, apelidado de Bração – por possuir quase dois metros de altura, cerca de 120 quilos e braços “mais parecidos com uma abóbora” –, e dona Eugênia devotavam grande rigor à educação dos filhos. Aos domingos, o pai mandava os meninos varrerem o armazém. Certa vez, eles levaram uma bola de meia. Notaram, então, que o espaço estava aparentemente limpo e decidiram jogar uma “partidinha”. O que poderia acontecer?
Quando chegaram a casa, suados e cansados, o pai logo estranhou e perguntou se tinham feito o serviço. Não convencido pela afirmação dos três, voltou ao local para inspecionar e ter certeza. “Sabe o que ele tinha feito? Havia colocado bombons Sonho de Valsa nos cantos do armazém. ‘Varreram e não pegaram?’ – perguntou ele. ‘Eu conheço vocês! Já teriam devorado’ ”. Em outras ocasiões, o pai substituía os doces por moedas, e se Hélio ou um dos irmãos as encontrasse deveria devolver ou dizer onde estavam para mostrar o quão honesto eram em relação ao dinheiro.
Dona Eugênia ainda arranjava tempo para costurar cobertores com os retalhos comprados da fábrica da região, distribuindo-os semanas antes de começar o inverno. Seu Egydio não fazia cerimônia em tornar disponível seu antigo telefone preto, de discar, instalado no quintal da casa, para uso de qualquer morador em caso de emergência.
Ah, o cafezinho de todo dia! A mãe de Hélio pedia à madrinha Amélia – senhora que a ajudava nos afazeres domésticos – que não deixasse de abastecer a garrafa. “Muita gente descia o Alto das Almas, passava em casa, tomava um copinho e saía pelo portão dos fundos. ” Tal solidariedade fez com que o casal tivesse mais de 60 afilhados, todos de famílias do bairro. “Guaratinguetá realmente marcou a minha infância, minha educação e minha vida.”
Retrato do casal, ao lado das fotos individuais de dona Eugênia e seu Egydio, pais de Hélio / Imagem: Alex Reipert/DCI-Unifesp
Respeito ao outro começa em casa
O ritual de dona Eugênia, de segunda a sábado, era cozinhar oito quilos de feijão e oito quilos de arroz. Os funcionários do armazém, junto com o marido, apareciam na hora do almoço. No quintal, uma mesa extensa era posta para recebê-los. Um dia, Hélio notou algo: Toninho, que trabalhava com seu pai, não utilizava garfo e faca, apenas a colher. Até para cortar o bife! O pequeno Nogueira, com oito ou nove anos, comentou que deveriam desinfetar os talheres do rapaz com álcool.
“Não sei por que falei aquela bobagem. Evidente que ele escutou, pois parou de comer e foi embora, chorando, pelos fundos.” No momento em que descobriu o que se passara, dona Eugênia chamou o filho e mandou-o ficar nu. “Minha mãe tinha um pedaço de esguicho vermelho, de borracha, que chamava de ‘instrumento’. Foi uma surra da cabeça aos pés. Depois, encheu uma banheira com água fria e sal, pegou-me pela orelha e eu tive de entrar naquela salmoura. Aquilo penetrou fundo na minha alma! Por fim, ela disse: ‘Nunca trate um semelhante como você fez com o Toninho. Ele merece respeito.’ Isso me marcou violentamente e foi fundamental para o resto da vida. Aprendi a tratar o outro como eu também gostaria de ser tratado, qualquer que fosse sua função, gari ou presidente.”
A formação no magistério e a escolha definitiva da profissão
Se a EPM era considerada por Hélio a mãe escolhida para trazer luz à sua vocação, o HSP foi o pai que lhe apresentou a realidade da profissão. Nele o desejo de fazer Medicina despertou cedo, justamente por acompanhar os trabalhos do cirurgião Piragibe Nogueira. “Meu tio era um exemplo para mim. Ficava muito impressionado com o respeito que tinham por ele.” Decidido, compartilhou o sonho com o pai. Seu Egydio, no entanto, não estava certo sobre o futuro do primogênito e, influenciado pela irmã e conselheira Olinda – que dava aulas em uma escola pública e tinha a vida bem estabelecida –, convenceu o filho a seguir a mesma carreira.
Hélio fez parte da primeira turma do Instituto de Educação Conselheiro Rodrigues Alves, formando-se professor primário. “ ‘Agora faça o que quiser’, disse meu pai. ‘Você tem um diploma, uma profissão e não vai morrer de fome se acontecer qualquer coisa’ ”.
Para ser aprovado no exame da EPM era necessário preparar-se e fazer um “cursinho”. Um pouco a contragosto dos pais, Hélio decidiu arrumar as malas, pegar o trem rumo à capital paulista e focar a atenção nos estudos. Mudou-se para uma pensão e dividiu o dormitório com Zeza, um amigo de Guaratinguetá que também estava prestando vestibular. “Tocava piano divinamente e até ganhava um dinheirinho com isso. Quando faltavam três meses para as provas, fiquei preocupado. Eu estava malhando nos estudos, mergulhado nos livros, e ele, tranquilo. Disse-me, então, que – um mês antes das provas – abriria mão da música e se dedicaria aos estudos. No final, fomos aprovados juntos: ele, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, e eu, na EPM.” Hélio graduou-se como médico em 1966. “Aprendi e muito na Escola, como era de esperar, mas uma pessoa que não esqueço é Jairo Ramos. Vivenciei com ele e outros docentes a Medicina Arte, capaz de olhar o ser humano integralmente, respeitando corpo e alma.”
Nas visitas ao HSP, ao lado dos professores, Hélio ficava atento a todos os procedimentos. Um deles foi o uso do estetoscópio. Antes de realizar o exame, Jairo Ramos aquecia a auréola metálica no lençol da maca para não causar choque térmico no paciente devido ao contato com o material frio. “Ele foi uma figura lendária, com vasto conhecimento, transmitido de forma clara e simples a seus estudantes.” Seguindo ainda os passos do tio, optou por fazer residência em Cirurgia no HSP e, no terceiro ano, quis especializar-se em Urologia. “Lembro-me de tanta coisa daquela época!” Os episódios de descontração proporcionados pelo docente de Cirurgia Cardíaca José Carlos de Andrade, o Passarinho, foram inesquecíveis! “Ele era brincalhão. Quando o plantão estava tranquilo, segurava uma caixa, furava a lateral inferior e colocava o dedo por baixo, mostrando apenas um pedaço. Depois, cobria-o com algodão e mercúrio e chamava os alunos: ‘Vejam o que aconteceu com meu dedo!’ E eles levavam um susto!”
Em outra ocasião, também hilariante, o mesmo docente quis pregar uma peça nos residentes. Trajaram um deles com roupa de mulher, dizendo que no hospital havia aparecido o caso raro de uma moça com barba. “ ‘Quero ver! Isso aí é tumor masculinizante de ovário’, disse o chefe de equipe, Ibrahim, sextanista e estudante de Uberaba que fazia residência no hospital. Rapaz esforçado e muito inteligente. No entanto, no momento em que ele pediu para fazer o toque vaginal, a farsa foi descoberta!”
O trabalho na Unifesp foi por ele considerado a melhor fase de sua carreira. Registros desses momentos, alguns deles como reitor / Imagens: Arquivo Unifesp
Carreira na EPM e no HSP
Na EPM, Hélio foi professor auxiliar da disciplina de Urologia entre os anos de 1969 e 1982 e, na sequência, professor assistente. Defendeu a tese de doutorado em 1975. Após presidir, a pedido do diretor Magid Iunes, algumas comissões administrativas da Escola, integrou o corpo docente da disciplina de Anatomia Descritiva e Topográfica, tornando-se professor adjunto a partir de 1983.
Passaram-se dois anos e, em 1985, recebeu o convite que mudaria a orientação de sua carreira: ser superintendente do HSP. “Encarei como um baita desafio. Não fiz curso de administração hospitalar e fiquei sabendo que assumiria as novas funções praticamente no dia seguinte. ‘Vou seguir os desígnios de Deus’ – pensei – ‘e, se Ele quer, assim vai ser.’ E acho, sinceramente, que Deus me deu o caminho certo.”
Os integrantes de sua equipe nessa jornada foram os professores Manuel Lopes dos Santos, como diretor clínico, e Stephan Geocze, como diretor financeiro. Hélio chegava, religiosamente, por volta das seis da manhã ao hospital. Ia até a capela, fazia sua oração e, como em procissão, descia as escadas, andar por andar, para se inteirar dos últimos acontecimentos. Tal rotina se repetia inclusive aos domingos, sim, senhor! Era o passeio da família, acompanhado pela mulher e filhos.
Em uma dessas andanças, ele percebeu que a sala do neurocirurgião Fernando Braga estava aberta. Entrou, olhou e não viu ninguém – havia apenas uma máquina de escrever em uma das mesas. Segurou-a junto ao colo e foi direto à Superintendência. “Não demorou muito. Ele chegou nervoso, e eu – antevendo sua reação – apontei para a máquina: ‘Olhe ela lá! Você largou a porta aberta. Agora, se – em vez dela – um equipamento caríssimo fosse roubado?’ Sem responder, Fernando foi embora. Pois é, eu fazia muito disso.”
Nos anos seguintes, o professor acumularia experiências administrativas que lhe permitiriam chegar ao mais alto posto executivo da futura Unifesp.
Imagem: José Luiz Guerra
Nosso primeiro reitor
A experiência de Hélio Egydio como gestor, depois de oito anos no comando do HSP, pavimentou seu caminho para assumir o comando da futura universidade. Ele compôs a diretoria da EPM na gestão de Manuel Lopes dos Santos, sendo chefe de gabinete, e viu a transformação dessa tradicional escola médica em Unifesp. Na época da primeira candidatura à Reitoria da Unifesp, Hélio não teve dúvida: iria lançar seu nome.
“A decisão nasceu porque eu já acompanhava o dia a dia administrativo; então, achava-me um candidato natural. As eleições eram comunitárias, e estourei a boca do balão, quer dizer, ganhei com uma diferença grande do segundo colocado.” Hélio foi o primeiro reitor eleito, nomeado em 1995 e reconduzido em 1999, permanecendo no cargo por dois mandatos consecutivos.
“Eu tinha uma ligação maravilhosa com quem trabalhava comigo. Sempre entendi que esses colaboradores, cada um em sua especialidade, eram importantes para o crescimento da instituição, muitas vezes dedicando-se ao trabalho mais do que suas funções exigiam.” Como superintendente e reitor, Hélio fazia questão de entregar uma cesta de alimentos por mês a todos os funcionários e servidores, além de organizar a tão conhecida festa de confraternização. “Era do que eu mais gostava no fim do ano.”
A relação com os estudantes também era próxima. Foi patrono de algumas turmas de formandos e de residentes e adorava acompanhar de perto, na torcida, os jogos universitários, ao lado da esposa. “Acredito que essa seja a minha marca. Tive muito contato com as pessoas, um ensinamento que aprendi com meus pais. Conheci a comunidade como a palma da minha mão e, até hoje, sinto-me bem com a trajetória construída.”
Hélio e Nadir
Hélio Egydio Nogueira, trabalhador metódico, pai e avô. Nadir Aparecida de Matos Nogueira, companheira comprometida, mãe e avó. Os dois se conheceram em Guaratinguetá, cidade natal de ambos. A paquera iniciara-se quando Hélio ajudava na entrega dos produtos do armazém do pai, carregando e descarregando caminhões. Habitualmente reparava em Nadir à saída do turno da escola, que era próxima ao trabalho, e a troca de olhares foi certeira. “Minha primeira e única namorada. Tudo deu certo, graças a Deus.” Começaram o relacionamento quase a distância, depois que ele decidiu estudar na capital paulista. Na mesma época da residência médica, decidiram casar-se. Mudaram-se definitivamente para São Paulo, acompanhados do sogro de Hélio, que era viúvo, e foram morar em uma vila, nas redondezas da Escola Paulista de Medicina.
Com sua amada esposa, Nadir Aparecida de Matos Nogueira / Imagem: Arquivo pessoal
Hélio guarda em uma pasta aquilo que considera importante: cartas de colegas do trabalho, homenagens de alunos, reportagens de seus feitos e lembranças dos anos de gestão no Hospital São Paulo e na Unifesp / Imagem: Alex Reipert/DCI-Unifesp
Madrugador convicto
Hoje, independentemente da hora de dormir, Hélio não deixa de se levantar antes de o sol aparecer, por volta das cinco da manhã. Atualiza-se lendo os dois principais jornais, hábito que adquiriu do pai, enquanto o café preto é preparado. Não se esquece de levar à esposa, que está no quarto, uma xícara dessa bebida, fresca e quentinha. Mesmo depois de aposentado, está vinculado à instituição como diretor do Departamento de Saúde do Trabalhador, órgão da Pró-Reitoria de Gestão com Pessoas da Unifesp.
No tempo livre, ajuda Nadir nas atividades do Centro de Saúde da Vila Mariana, onde ela desenvolve um projeto com idosos. Aproveita também para ler algum livro e assistir a um bom futebol. Seu time é o São Paulo, de fato, mas, quando uma partida é televisionada, ele não se priva de acompanhá-la, independentemente de quem está jogando, pois gosta do esporte.
Hélio é católico apostólico romano. Frequentava, inclusive, a Paróquia São Francisco de Assis, próxima à EPM. Em sua casa, não faltam representações de santos e principalmente de Cristo. Reza o terço todas as noites, hábito esse herdado da mãe, que o educou religiosamente, levando-o a ser batizado, fazer comunhão e ir à igreja. “E você pode achar um absurdo, mas tenho minhas razões: raramente vou ao médico.” O motivo é ter presenciado a morte do pai e dos irmãos mais novos por conta de um mesmo tipo de câncer: o de próstata. “Se eles tiveram, eu deveria ter, mas Ele quer que eu viva.”
Agradece pela saúde dos três filhos – Hélio, Heliana e Ernesto – e dos quatro netos. “Deus me deu muito mais do que eu merecia, e sou grato. Mantenho algumas coisas [cartas e bilhetes de servidores, funcionários e pacientes, reportagens sobre suas ações, principalmente durante a gestão no HSP e na Unifesp, e registros de homenagens de estudantes] que considero importantes e as guardo em uma pasta. Isso me dá muita paz. Não acho que essas lembranças vão me levar para o céu ou para o inferno, mas o que tenho me dá a certeza de que, por Cristo, consegui algo na vida.”