E o rico cada vez fica mais rico...
A transmissão de bens é um mecanismo de reprodução das desigualdades de renda e riqueza entre gerações de brasileiros, mostra dissertação apresentada no Campus Osasco
Texto: Daniel Patini
A distribuição de heranças no Brasil é altamente desigual e ainda mais acentuada que a concentração de renda. Essa conclusão está na dissertação de mestrado de Samir Luna de Almeida, apresentada ao programa de pós-graduação em Economia e Desenvolvimento do Departamento de Economia da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco. Orientado pela docente Luciana Rosa de Souza, o trabalho mensurou, pela primeira vez, a distribuição das heranças no país, usando as informações da Receita Federal, contidas nas declarações de imposto de renda das pessoas físicas e conhecidas como grandes números.
No ano-calendário de 2016, período utilizado como base pelo pesquisador, dos 206.081.432 brasileiros, 28.003.647 declararam imposto de renda; desse total de contribuintes, 335.036 declararam ter recebido herança ou doação. Isto é, naquele ano, os herdeiros corresponderam a apenas 0,2% da população brasileira e a 1,2% dos declarantes. Os valores herdados representaram 3,3% das rendas totais e a 11% dos rendimentos isentos.
"No Brasil, embora a tributação sobre heranças seja estadual e não haja taxação em nível federal, os declarantes do imposto de renda também precisam informar à Receita Federal ganhos patrimoniais recebidos na forma de doação ou herança, que são considerados isentos de impostos. Em termos de valor, essas transferências constituem a segunda maior categoria de renda que compõe os rendimentos isentos", esclarece Almeida.
E os valores extraídos dessas declarações são bastante significativos: os 10% contemplados com as maiores transferências em 2016 receberam, em média, uma herança ou doação de R$ 1.739.831,26 e, no mínimo, de R$ 543.613,09. Os 5% que concentraram as maiores quantias receberam, em média, R$ 2.995.438,93 e R$ 1.049.752,41, no mínimo. O percentual de 1% – que se enquadra nas mesmas condições – recebeu, em média, R$ 10.203.411,39 e R$ 4.198.667,49, no mínimo. Por fim, no topo, a parcela de 0,1% recebeu, em média, R$ 39.928.748,45 e, no mínimo, R$ 17.022.727,95.
Outra conclusão importante mostrou uma desigual distribuição relativa e um alto grau de concentração das transferências: os 10% que se apropriaram dos maiores valores receberam 68,8% do total de doações e heranças; os 5% situados no topo ficaram com 59%; o percentual de 1%, com 39,6%; e a parcela de 0,1%, com 15,9%. Esses números reforçam o que já se previa teoricamente: a desigualdade na distribuição de heranças é mais acentuada que a de renda.
"Apesar de o estudo não tratar da mensuração da desigualdade de renda, obteve-se um resultado esperado, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista empírico, a partir do que se conhece sobre outros países ao redor do mundo: o patrimônio tende a ser mais concentrado do que a renda. Mas foi a primeira vez em que isso foi medido no Brasil", reforça o autor.
Riqueza gerando mais riqueza
Como lembra Almeida, as heranças e doações representam riquezas distribuídas ao longo de gerações, que podem ser adicionadas às riquezas acumuladas por uma pessoa ou podem ser reinvestidas, resultando em uma fortuna ainda maior. E a possibilidade de reinvestir as heranças, gerando novos rendimentos, foi outro aspecto abordado pelo estudo.
Para calcular esse ganho, o pesquisador simulou por quanto as heranças recebidas poderiam multiplicar-se, supondo que fossem reaplicadas com rendimento no valor da taxa Selic de dezembro de 2016 (13,75% ao ano), descontada a inflação acumulada desse mesmo ano, que ficou em 6,58%, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) do IBGE. Dessa forma, chegou-se a um rendimento anual de 7,17%.
Nessa simulação, foram estimados rendimentos ao longo de 25 anos. Ou seja, alguém recebe uma herança aos 50 anos, com expectativa de vida de 75 anos; durante esse tempo, o valor herdado terá rendimento à taxa de 7,17% ao ano. Como resultado tem-se que a herança recebida em 2016 será 5,65 vezes maior em 2041.
Valores médios de heranças ou doações recebidas em 2016
Mais transparência
Utilizada no estudo, a publicação dos grandes números para o ano-calendário de 2016 foi a que reuniu, até o momento, as informações mais amplas sobre as rendas com maior desagregação, sobre as categorias de gênero e faixa etária dos contribuintes e sobre os valores declarados de doações e heranças, conforme diversos modos de ordenação e organização. "Com esse tipo de dado foi possível avançar bastante na mensuração da transmissão de heranças no Brasil", afirma o pesquisador.
Tributação federal
E de que forma a tributação de heranças em nível federal contribuiria para a menor concentração de renda? Almeida explica que há um relativo consenso entre estudiosos das desigualdades de que, de modo geral, taxa-se pouco o patrimônio no Brasil e muito o consumo e a produção. "A tributação sobre heranças em nível federal poderia ajudar a tornar o sistema tributário brasileiro menos injusto e até, talvez, contribuir para tornar possível a diminuição de impostos indiretos."
O autor acredita que esse debate é bastante bem-vindo, mas é preciso elaborar propostas concretas, inclusive para torná-las politicamente possíveis de executar. "Um melhor entendimento sobre o assunto poderia, portanto, subsidiar a implementação ou alteração de políticas tributárias ou políticas públicas que afetam o acúmulo e a distribuição de patrimônio", complementa.
Embora o estudo tenha trazido importantes contribuições para a melhor compreensão acerca da transmissão de heranças e doações, Almeida ressalta que ainda resta muito por fazer quando o assunto recai sobre heranças. Afinal, ele questiona, quão subestimados estão os dados da Receita Federal se forem comparados com os dados dos inventários e cartórios? Quais são os componentes das heranças: imóveis urbanos, terras? Qual o impacto dos impostos estaduais sobre as heranças?
"Apesar de essas perguntas ainda necessitarem de respostas, o presente trabalho avança no entendimento sobre a desigualdade na distribuição das heranças, bem como nas questões empíricas implicadas no uso dos grandes números da Receita Federal", conclui.
Samir Luna de Almeida e a orientadora do trabalho, Luciana Rosa de Souza
Falta de dados dificulta elaboração de políticas contra a desigualdade
Uma dificuldade muito comum nos estudos tributários, também detectada por Samir Luna de Almeida, foi a indisponibilidade de microdados. "Como não houve acesso a estes, efetuamos uma série de operações matemáticas – como interpolações – com as tabelas disponibilizadas para poder extrair delas alguma informação mais elaborada. Ainda assim, foi necessária muita parcimônia na hora de tirar conclusões."
Outros empecilhos estavam relacionados aos dados divulgados pela Receita Federal, os quais se revelaram "engessados", embora melhores quando comparados aos de alguns anos atrás, de acordo com o pesquisador.
A desigualdade – para ele – é um tema urgente, que se apresenta como um fenômeno multifacetado. Torna-se, pois, necessário estudá-lo e discuti-lo em seus aspectos moral, teórico e empírico. "Para tanto, precisamos reforçar o acesso aos dados, especialmente os tributários, e ampliar os recursos destinados ao estudo do assunto", alerta.
Almeida considera, ainda, que as heranças equiparam-se a outros bens patrimoniais declarados no imposto de renda, no tocante à definição de preço, que costuma ocorrer apenas em momentos de compra e venda. Os valores são, em geral, atualizados conforme o valor nominal, e não de mercado; e no ato da transferência por doação ou herança, o incentivo à declaração pelo preço nominal é mantido.
"Neste trabalho, ao tratar de doações e heranças com base no imposto de renda, foi possível fazer uma abordagem nacional; porém, a restrição temporal ainda é grande. E, além disso, os dados da Receita Federal tendem à subestimação dos valores reais, diferentemente do que consta em documentos de cartório ou em testamentos", assegura.
Dissertação relacionada:
ALMEIDA, Samir Luna de. Distribuição de heranças no Brasil: o que dizem os dados da Receita Federal. 2018. 46 f. Dissertação (Mestrado em Economia e Desenvolvimento) - Escola Paulista de Política, Economia e Negócios, Universidade Federal de São Paulo, Osasco.