Cientistas brasileiros precisam de mais ousadia

Membro titular da Academia Brasileira de Ciências e pró-reitor de Planejamento da Unifesp, Esper Abrão Cavalheiro defende a criação de um centro de estudos avançados na instituição

Da Redação
Com a colaboração de Flávia Kassinoff

Entreteses04 p011 Esper Abrao Cavalheiro

Neurocientista, professor titular do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo e atual pró-reitor de Planejamento da instituição, Esper Abrão Cavalheiro já presidiu o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e foi secretário do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Cavalheiro critica o “excesso de formalismo” que os programas de pós-graduação impõem aos pesquisadores brasileiros, como decorrência das demandas por resultados imediatos oriundas das agências de fomento. O resultado, afirma, é a transformação do jovem pesquisador em “soldadinho de chumbo”, com o engessamento da criatividade. E propõe ideias inovadoras para que a Unifesp avance no debate sobre os rumos da ciência e na produção de pesquisa. Entre elas, está o projeto de criação de um centro de estudos avançados.

Entreteses - Quando e como surgiu a proposta de criação de um centro de estudos avançados na Unifesp?

Esper Cavalheiro - A ideia de um centro de estudos avançados não é nova na Unifesp. Nas instituições de ensino superior com mais tradição acadêmica, a presença de espaços abertos às discussões de temas de fronteira, ainda em processo de maturação ou experimentação, tem sido fundamental na abertura das universidades para o novo, o não previsto, e para os novos desafios enfrentados pela sociedade.

Um espaço onde a discussão de questões atuais, próprias ao país e à sociedade, possa ser feita sem a rigidez do espaço acadêmico, entre pessoas da própria instituição ou com a participação de convidados, com o objetivo de esclarecer, trazer uma luz sobre temas que são palpitantes no mundo de hoje.

Na Unifesp, a ideia passou a ser discutida entre os titulares que participam do Consu. A partir daí, no processo de diálogo com os demais integrantes da Reitoria, começamos a dar forma a uma proposta que permita à Unifesp criar um espaço intelectual por excelência, com relevância para o debate científico mais atual.

E. Como irá funcionar esse centro? As discussões serão feitas de forma interdisciplinar?

E.C. Eu prefiro não colocar a palavra “disciplinaridade” no projeto, pois ao mencioná-la tenho a impressão de que estará sempre presente. O centro ou instituto não deverá ser interdisciplinar nem transdisciplinar, mas promover a convergência do conhecimento. O conhecimento deverá convergir na busca de soluções originais para “velhos” problemas humanos. Deverá refletir a busca de um caminho que facilite a compreensão dessas questões, cuja solução dificilmente seria encontrada pelo ângulo exclusivo de uma ou duas disciplinas. Assim, e dentro desse contexto, nós não esperamos que haja um corpo formal para o centro ou instituto. Precisaremos, sim, de pessoas que façam a parte administrativa, mas espera-se que toda a instituição possa participar da organização do trabalho propriamente dito, inclusive com sugestões de tema. Aceitam-se também propostas de convidados. Não há limitações. Esse ambiente é o que nós consideramos ideal. Queremos ter um espaço onde a transgressão intelectual seja possível.

Entreteses04 p012 Conselho Deliberativo CNPq

Posse do Prof. Esper na presidência do CNPq (gestão 2001-2003). Da esquerda para a direita, Evando Mirra (presidente que deixou o cargo) e o então ministro de C&T, Ronaldo Sardenberg

Entreteses04 p012 Posse do Prof Esper na presidencia do CNPq

Prof. Esper presidindo sessão do Conselho Deliberativo do CNPq

E. Quais são as perspectivas para a ciência nesta década? Quais são os maiores desafios?

E.C. É voz corrente que o Brasil deu um salto de qualidade na ciência aqui produzida e que a Unifesp acompanhou esse crescimento, fazendo parte dele. Toda vez que você abre o jornal ou lê um artigo especializado vê que o Brasil continua galgando postos no grupo de países produtores de ciência. Nós podemos ser considerados proficientes em ciência, mas precisamos atingir a excelência. Somos proficientes, ou seja, sabemos fazer, mas ainda estamos distantes daqueles que ditam a “ordem do dia” e que apresentam processos disruptivos – para usar palavras do mundo da inovação.

E. E o que falta?

E.C. Acredito que falta ousadia. Nosso país é muito formal na execução da ciência. A pós-graduação, que nos ajudou a formar tanta gente competente, apresenta limites à nossa ousadia. Pelas próprias regras, pela necessidade de financiamento, pela necessidade de regular e normatizar o trabalho acadêmico, ela impõe um limite de atuação que nos impede de mostrar ousadia. E a ousadia é o que faz o belo da ciência. Normalmente ela se manifesta em uma faixa etária precoce, mas nós engessamos muito os jovens. As regras são rígidas, os próprios programas de pós-graduação inibem o sistema. O jovem que hoje entra na pesquisa parece mais um “soldadinho de chumbo” que vai executar uma tarefa e repetir a fórmula de seu orientador.

A ousadia nos obriga a dar mais tempo, a esperar erros com maior frequência, mas o sistema atual não trabalha bem com os erros e desacertos. Ele está tão fechado que impede novas experiências. Você hoje se desespera caso seu aluno, durante o mestrado e o doutorado, não consiga resultados publicáveis. Nós não apostamos no desconhecido. Eu ouso dizer que grande parte da ciência nacional, atualmente, busca o que já conhece, só atualiza o método. Devemos procurar outro caminho para que o inédito possa surgir, tem que haver espaços reflexivos e não só laboratórios de pesquisa. Mas vejo que temos muito receio em trilhar essa estrada. Temos muitos compromissos com quem nos financia e com o dinheiro que nos é dado. Mas refletir, buscar alternativas, tentar o inédito não é fazer mau uso do dinheiro público, muito longe disso. As tecnologias de informação e comunicação surgiram em “cabeças” e ambientes muito distantes dos tradicionais. E isso é raro no Brasil.

E. Em quais áreas o Brasil é inovador na pesquisa?

E.C. Uma das áreas em que o Brasil tem contribuído mais significativamente é a biotecnologia – tanto que existe hoje o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol, o qual é um ambiente muito propício para o desenvolvimento da pesquisa. A utilização dessa fonte de energia, no caso dos automóveis, constituiu um ineditismo nacional. A agricultura tropical foi considerada a mais avançada do mundo. Somos líderes em levar essa informação a outros países tropicais que não têm agricultura tão desenvolvida e rica quanto a nossa. O trabalho que a Embrapa fez neste país foi fantástico. Mas devemos lembrar, também, das mais antigas instituições de Agricultura e Agronomia como a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (USP) e o Instituto Agronômico de Campinas. Foram ambientes únicos, que deram espaço de formatação para a Embrapa que temos hoje, espalhada pelo Brasil todo e que detém esse grande potencial da agricultura tropical.

Também não há dúvida de que a pesquisa de prospecção de petróleo em águas profundas efetuada pela Petrobras é a mais avançada do mundo. A Petrobras deu conta de formar grupos de pesquisadores, junto com a Coppe - Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, pertencente à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que provavelmente foi uma das razões pelas quais chegamos ao pré-sal.

Outro exemplo foi o desenvolvimento do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), com a Embraer, que hoje é uma empresa privada, mas que possibilitou um espaço muito grande de pesquisa.

Podemos falar também da área de informática: temos alguns polos muito desenvolvidos no Brasil. Um deles está em Recife, oriundo de um grupo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que abriu espaço para o trabalho de muitos jovens e para o surgimento de produtos inovadores. Outro polo importante de informática é aquele de Santa Catarina, com origem na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Os estudos e pesquisas realizados pelo grupo do professor José Galizia Tundisi, no setor de recursos hídricos, são muito importantes e reconhecidos em todo o mundo. Tivéssemos escutado suas recomendações, provavelmente não estaríamos vivendo a atual crise de água, com ou sem os problemas meteorológicos. Outras áreas de destaque são aquelas dedicadas ao estudo das doenças tropicais, com institutos e grupos de pesquisa reconhecidos em todo o Brasil, incluindo o Instituto de Medicina Tropical da Amazônia, hoje transformado na Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado. O Instituto Butantan, então liderado pelo professor Isaias Raw, e sua capacitação para a produção de vacinas são uma experiência à parte. Aqui, a determinação e qualidades intelectuais de uma pessoa, aliadas à capacidade de luta, sem o receio de enfrentar as formalidades burocráticas do país – para o desagrado de muitos –, tornaram o país autossuficiente nessa área. Hoje, existe também o cenário dos  institutos nacionais de ciência e tecnologia (INCTs), iniciativa do governo que surgiu há sete ou oito anos, com o objetivo de criar redes nacionais de pesquisa. Esse conjunto de INCTs agrega os mais produtivos do país, que têm sido chamados de “joias da coroa nacional em ciência e tecnologia”.

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E. Em termos mundiais, quais seriam os maiores desafios para a ciência?

E.C. Em minha opinião, o primeiro trata da reemergência das doenças tropicais. Acredito que a emergência ou reemergência de patologias que dizimam muitas pessoas em curto espaço de tempo merece atenção redobrada. O segundo trata do envelhecimento populacional. As pesquisas, hoje, dedicam-se predominantemente à compreensão das alterações patológicas que surgem nessa faixa etária, mas não sabemos ainda o que fazer para que elas não surjam. Isto é, o que fazer ao longo da vida, o que mudar, para ter uma velhice saudável? É um grande desafio.

Outro grande problema é o da mobilidade urbana. Nós estamos com dificuldade para compreender a nova dinâmica da população humana. Está previsto que as populações da Ásia e da África devam, ainda, crescer muito. Dois países da Ásia – a China e a Índia – já comportam um número de pessoas assustador, e parte delas começa a circular mais facilmente pelo mundo. No Brasil estamos sentindo dificuldade em lidar com a imigração proveniente de países mais pobres, como o Haiti. Essas pessoas vêm para cá em busca de uma vida melhor, quando muitos brasileiros não têm uma boa condição de vida; ao mesmo tempo, não podemos virar as costas para esses imigrantes. Vamos ter que dar conta dessa mobilidade e inseri-los no meio social com dignidade. Outro exemplo é como a instabilidade nos países árabes está expulsando imigrantes para a Europa. Como dar dignidade a essas vidas? Como a humanidade pretende resolver essa questão? Em quais aspectos a ciência pode e deve envolver-se? 

Outra questão que vem acoplada ao tema da mobilidade, mas que tem causas diversas, trata da violência, que não é apenas um problema nacional. No Brasil ela é mais escancarada, desavergonhada e doentia, mas não é um problema exclusivo nosso. Nós precisamos buscar solução na emergente “ciência dos conflitos”. Não é possível que no mundo atual tenhamos tão poucos bons estudos a respeito. Ao observar o surgimento do chamado Estado Islâmico, devemos perguntar: “O que deixou de ser feito? Onde erramos? Como, no século 21, podemos aceitar tanta maldade e barbárie?” As desgraças tribais na África não nos afligem mais, nós as aceitamos com a mesma passividade com que vemos a corrupção, os desmandos políticos e os pedintes nos faróis de trânsito deste país.

Quando eu trabalhava no Ministério da Ciência e Tecnologia, o então ministro Ronaldo Sardenberg (1999 – 2003) criou uma conferência internacional, bastante interessante, na qual invocava a ciência para a paz. É muito difícil que consigamos encontrar o mínimo de paz insistindo nos mesmos modelos socioeconômicos que encontramos hoje. Seria um desafio interessante convocar os cientistas das mais diversas latitudes para pensarem a paz como objetivo de seus trabalhos, independente das áreas em que atuam. Os seres humanos sempre são capazes de soluções criativas, e sua imaginação não para. A busca pela compreensão do universo é uma dessas áreas fascinantes, em que não paramos de nos surpreender com as novas descobertas. Essa busca do desconhecido, esse limite esfumaçado entre ciência e ficção povoa a imaginação da juventude. É nessa capacidade imaginativa que devemos investir.

E. É possível traçar um paralelo entre a ciência, a Filosofia e a arte, no sentido de todas expressarem a inquietação humana?

E.C. A Filosofia é um grande exemplo dessa inquietação, e no retorno aos primeiros filósofos para entender o presente descobrimos que as grandes questões são as mesmas. É óbvio que, na atualidade, temos mais conhecimento sobre a natureza e o mundo em que vivemos, mas a inquietude humana manifestada nas obras de Aristóteles, Platão e outros não é muito diferente daquela que sentimos. Mas, hoje, temos tanta coisa para fazer que não temos tempo para inquietudes “básicas” – como indagar: “Para que eu estou aqui?” E o mais triste é quando você  nem sabe que pode fazer essa pergunta. Aceita-se a vida como um dado adquirido. Nascemos e pronto. 

A arte é outra expressão da humanidade que questiona, que indaga, que se antecipa ou retrata aquilo que acontece. As múltiplas formas da expressão artística, das tradicionais às atuais, têm um imenso poder de fascinação justamente por nos inquietar. Às vezes, diante de alguma expressão artística, pergunto-me como o autor conseguiu expressar tão bem algo que eu queria dizer, mas que apenas sentia. Nesse sentido, as manifestações artísticas em suas mais variadas formas são, para mim, libertadoras da mente humana.

Como se vê, a ciência é um grande espaço onde se manifesta a inquietação humana, mas não é o único onde isso acontece. Necessitamos que esses espaços se encontrem, convirjam, olhem as questões humanas ao mesmo tempo e com a mesma curiosidade. E, ao lado dessas manifestações humanas, não podemos deixar de falar das religiões, que trazem outro olhar sobre a discussão. A religião é um espaço de representação humana importante que atrai por oferecer outra forma de resolução às nossas inquietações.

E. Já que o senhor citou a religião, é possível – para um cientista e pesquisador – conciliar a ciência e a crença religiosa?

E.C. Totalmente.

E. A ciência não ocupa o lugar da religião?

E.C. De modo nenhum. A religião está baseada na fé; a ciência, na busca da verdade. E querer transformar uma coisa na outra é tão pouco útil quanto fazer ciência conhecendo o resultado de antemão. A ciência não fornece certezas, suas verdades são transitórias. Com a fé não há espaço para esse tipo de discussão.

Assim, dizer que uma cede lugar à outra, não é possível. Da mesma forma que é bobagem fazer da ciência, religião. De forma nenhuma. Para mim são expressões humanas que, por meio de caminhos distintos, tentam explicar-nos o mundo, a vida, a razão das coisas. Qual o melhor caminho? Não há comparação possível, já que usamos métodos e procedimentos diversos.