Inovação e proteção intelectual enfrentam "gargalos"
No Brasil, falta de recursos, de pessoal e de programas de formação dificulta o processo de registro de invenções
Jair Ribeiro Chagas
É professor aposentado da Unifesp e atua nas áreas de Biotecnologia, Gestão da Inovação, Proteção Intelectual e Transferência Tecnológica. Foi fundador e sócio das empresas MedDiscovery, Dermadis, Exa-m and Sepia P&D
Você quer patentear sua invenção? Por quê? Para quê? Como? Onde? E quanto custa? Patente é uma das formas de um procedimento mais genérico que chamamos de Proteção Intelectual. A patente é mais conhecida porque é mais midiática; é comum ouvirmos referências ao inventor estadunidense Thomas Edison, que teria inventado a lâmpada e outros mais de mil inventos patenteados que acabaram gerando a General Eletric. Entretanto existem muitas outras formas de proteção intelectual. Os direitos autorais (direitos de autor e direitos conexos ao de autor, como os direitos sobre execução, produção e distribuição de obras) também são protegidos por lei (Lei 12.853 de 14 de agosto de 2013). O registro de programas de computador (softwares) também protege os criadores (Lei de Programa de Computador nº 9.609 de 19 de feveriro de 1998). Enfim, existem pelo menos onze formas legalmente reconhecidas de proteção intelectual. Mais à frente voltaremos a essa classificação e aonde encontrá-la sistematizada e detalhada.
O Brasil exibe uma história exemplar de participação nas ações mundiais de estabelecimento das regras de proteção intelectual (veja o box Proteção intelectual começa no século XV). Por essa razão, deve ser motivo de profunda reflexão a situação atual do regime de patentes no país. Sucessivas administrações do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), responsável maior pelos processos de proteção intelectual no país, reconhecem há décadas que o sistema necessita de imensas melhorias. Basta ir ao site do Inpi (http://www.inpi.gov.br/noticias/com-apoio-do-ministerio-inpi-busca-mais-pessoal-e-mais-recursos) e ler a notícia de 29 de agosto de 2016:
“Há cinco anos o Inpi trabalha com metas, buscando eficiência. Mas o backlog (processos em espera) pesa. Temos quadros suficientes para a demanda corrente. Mas, para lidar com essa doença crônica que é o backlog, estamos elaborando soluções juntamente com o governo. Em sua apresentação, Luiz Otávio Pimentel, presidente do Instituto Nacional da Propriedade Intelectual do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (Inpi), mostrou um backlog de patentes de 220 mil pedidos, o que significa mil pedidos por examinador – um número 19 vezes maior que a média de pedidos por examinador no maior escritório de PI do mundo, o estadunidense United States Patent and Trademark Office (USPTO).”
A consequência mais cruel e conhecida é a demora absurda de 10 a 11 anos para análise de um pedido de patente (média de três anos nos Estados Unidos), ou, no caso de registro de marcas, uma média de três anos (que não deve passar de 18 meses por acordos internacionais). As razões são bem conhecidas – falta de recursos, falta de pessoal, falta de programas de formação, etc. Enfim, tudo indica que, apesar de todo o discurso de apoio à inovação, é total a falta de vontade política para resolver o problema. E, certamente, não é um privilégio atual, vem de muitas e muitas administrações.
Razões para patentear um invento
Por que proteger um invento? A resposta que está no espírito da lei é: para evitar que outros façam uso da criação sem a autorização do criador. A outra intenção é que o conhecimento torne-se público e disponível para utilização, mediante o devido ressarcimento ao inventor, e novos avanços possam ser feitos a partir desse conhecimento.
Mas outra resposta pode ser, com toda legitimidade: ”porque é fruto da criatividade e trabalho de alguém e é justo ganhar um bom dinheiro com ela”. Ótimo, seja uma pessoa física ou jurídica privada. Ao trabalhar e produzir na criação em um órgão público não se trata de direito autoral, então a lei diz que o invento pertence ao órgão público.
O inventor, ou os inventores em conjunto, terá direito a até 1/3 dos eventuais benefícios monetários resultantes do licenciamento ou transferência dos direitos de utilizar a invenção.
Luta contra o atraso
O Inpi tem realizado um enorme esforço para compensar esse atraso. Informatizou os processos e pagamentos, tornou o acesso à informação transparente, estabeleceu programas diferenciados para análise, por exemplo, para patentes verdes, para produtos para a saúde, para pequenas e médias empresas, para patentes nos EUA.
No entanto, todos esses programas têm alcance limitado, têm quase caráter experimental e, por regra, não podem ocupar mais que 20% do tempo de trabalho dos examinadores. O número de examinadores é francamente insuficiente para resolver o problema maior, que ganhou o anglicismo backlog, muito mais palatável, para substituir a expressão “atraso absurdo”.
Embora um crescente movimento mundial procure estimular, até com certo sucesso, a Inovação Aberta (Open Innovation), cujas sinergias ou antagonismos ao corrente sistema de proteção geram muita discussão, o sistema internacional de patentes ainda é o grande determinante das vias de proteção à inovação e sua valoração monetária.
Quais são, então, as formas de proteção intelectual mais aceitas e reconhecidas? O quadro abaixo, retirado do site do Inpi (http://www.inpi.gov.br/sobre/arquivos/guia_docente_iel-senai-e-inpi.pdf/view) resume com muita clareza as formas de proteção intelectual reconhecidas pela lei brasileira. O texto contido nesse endereço também é exemplar pela clareza e concisão.
Quase sempre as formas de proteção intelectual estendem esse direito, uma vez obtido no Brasil, a outros países signatários de acordos que conferem reciprocidade no tratamento das matérias. Isto é, havendo o acordo com reciprocidade, se o Brasil reconhece como protegido aqui um determinado pedido, o outro país também o reconhecerá e reciprocamente. No caso das patentes, os processos não são simples e existem diferenças importantes sobre o que pode ou não ser patenteado, principalmente entre os EUA, Brasil e Europa.
Programas internacionais
Dois grandes acordos internacionais permitem ampliar a proteção a outros países. A Convenção de Paris (CUP - http://www.wipo.int/treaties/en/ip/paris/summary_paris.html) que se aplica à propriedade industrial no sentido mais amplo, incluindo patentes, marcas, desenhos industriais, modelos de utilidade, nomes comerciais, as indicações geográficas e a repressão da concorrência desleal.
O outro acordo, mais conhecido, é o PCT (Patent Cooperation Treaty) ou Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes. O PCT auxilia os requerentes na proteção internacional das suas invenções, ajuda os escritórios de patentes, como o Inpi, nas suas decisões de concessão de patentes e facilita o acesso do público a uma grande quantidade de informações técnicas relacionadas com essas invenções.
Ao apresentar um pedido de patente internacional ao abrigo do PCT, os requerentes podem simultaneamente solicitar a proteção de uma invenção em um grande número de países, 151 no total, (http://www.wipo.int/pct/en/). A World Intellectual Property Organization (Wipo), em Genebra, Suíça, é o organismo internacional responsável pelo PCT.
Alguns passos precedem o pedido no Inpi, no Brasil. Alguém precisará olhar a literatura em geral (patentes já publicadas ou qualquer outra forma pública de divulgação do conhecimento) e demonstrar que sua invenção não tem precedente. Ou seja, o pré-requisito de originalidade ou novidade. Também precisará convencer o examinador de patentes que houve criatividade, ou seja, não seria uma inovação evidente e facilmente imaginada por outra pessoa (critério sem dúvida bem subjetivo).
Precisa ainda demonstrar que sua criação pode ser produzida. Isso significa que pode ser industrializada de alguma forma e, finalmente, providenciar um relatório com suficiência descritiva, ou seja, um relatório com detalhes suficientes para que qualquer especialista na área da invenção possa reproduzi-la. Isso tudo custa, quer você seja privado ou público.
NIT é fundamental para a universidade pública
Os núcleos de inovação tecnológica (NIT) devem funcionar, nas universidades públicas, como centros de avaliação e valoração das invenções, de negociação das invenções com os setores externos à universidade, como centros de prospecção para detectar as necessidades de inovação da sociedade e das empresas, de divulgação das normas e práticas da inovação, de estímulo ao empreendedorismo e à criação de startups, de capacitação e formação de corpo técnico para tratar dos assuntos de inovação. Enfim, os NITs devem ser a estrutura fundamental de apoio a todas as atividades necessárias à proteção das invenções, sua transformação em inovação e transferência para a sociedade em benefício de todos.
Fora de qualquer dúvida, a inovação é, sem qualquer hesitação, o motor que criou as grandes nações na era moderna (Caravelas? Máquina a vapor? Tear mecânico? Gerador elétrico? Rádio? Computador? Raio X? Avião?). Nem tudo relacionado na frase anterior é patente, mas certamente foram invenções que geraram inovações. A inovação simplesmente não irá acontecer sem educação, tecnologia, pesquisa, mentes livres e perquiridoras.
Só assim ocorre a invenção que se tornará inovação. Proteger a inovação, baseando-se em critérios realistas, para que ela resulte em produtos e alimente a cadeia geradora de empregos e riqueza, é, pelo menos em nosso atual estágio, a melhor maneira de fazê-la retornar como benefício à sociedade. Falta só fazermos tudo respeitando os equilíbrios da natureza, com sustentabilidade. Eventualmente, quem sabe, você pode até ficar rico...
Quanto custa uma patente?
Podemos estimar uns R$ 8 mil a R$10 mil nesta etapa. Quando passar para o PCT ou similar, teremos traduções, contrato de escritório de patentes nos outros países, taxas, etc. Pode-se começar estimando, bem por baixo, com U$ 10 mil ou seja, R$ 30 mil a R$ 40 mil.
Não, absolutamente não se trata de um texto para desestimular a proteção intelectual. Trata-se de olhar, principalmente o patenteamento, com olhos realistas e pensando no óbvio, investimento x retorno. Se há uma boa estimativa, baseada em dados, que sua invenção terá interessados em utilizá-la, mercado e duração da proteção intelectual suficiente para garantir o retorno do investimento com ganho, faz todo sentido proteger. Nesse caso, haverá interessados em financiar a produção, marketing, distribuição, venda, tudo aquilo que, normalmente, o inventor não sabe fazer para transformar a invenção em inovação.
Esse raciocínio deve se aplicar também e sobretudo aos entes públicos pois, quando é o órgão público que arca com as despesas, tem-se a impressão que não há custo e tudo pode ser submetido a um pedido de patente. Caso essa solicitação de depósito de patente seja feita sem considerar as avaliações acima, os mais puristas dirão que é malversação de dinheiro público.
Portanto é muito necessário que as instituições públicas disponham de conselhos aptos a decidir e recomendar o que deve ou não deve ser patenteado. Também é essencial que os núcleos de inovação tecnológica (NIT), cuja criação nas instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs) é obrigatória pela Lei da Inovação, tenham uma estrutura que lhes permita serem mais do que um escritório de despachos para processos no Inpi.
Proteção intelectual começa no século XV
A história da propriedade intelectual certamente irá nos remeter a práticas antigas, na Grécia e em outros locais de produção intelectual. Os textos disponíveis e consultados são, em geral, omissos quanto ao assunto em antigas civilizações, como as surgidas há milhares de anos nas atuais Índia ou China, onde, principalmente nesta última, muita produção intelectual e muitas invenções, patenteáveis no conceito moderno, ocorreram e disseminaram-se pelo mundo ocidental.
No que se refere ao conceito específico de patente, dentro da Propriedade Intelectual em geral, teria sido em Florença, em 1421, e na Ilha de Murano, em Veneza, em 1474, onde se registraram as primeiras concessões. No primeiro caso uma proteção de três anos para um dispositivo de transportar mármore, no segundo a proteção sobre o método de obtenção dos ainda hoje famosos vidros e espelhos de Murano.
É tentador imaginar que o sistema de financiamento da descoberta ou da geração do conhecimento e da sua transformação em produto gerador de lucro tenham muita influência na maneira de protegê-los. Quando um monarca, imperador, rei, sumo sacerdote ou outro tipo de liderança monocrática é a principal fonte de financiamento e, por lei divina ou direito reconhecido, é dono de tudo, a proteção não precisa de legislações complexas. Quando, porém, o investimento, como trabalho ou capital, vem de uma classe produtora crescente (ex. artesãos da Idade Média e suas ligas, que impunham regras para o uso e remuneração de suas habilidades artesanais), as regras começam a ser demandadas e tornam-se mais complexas.
Assim foi, sob James I da Inglaterra, em plena expansão política e econômica, que editou-se o Estatuto dos Monopólios, 1623, regramento para regularizar a emissão de patentes (antes disso o próprio James I exigia retornos monetários pessoais pela concessão de monopólios). A ideia logo foi adotada em muitos outros locais, mais elaborada nos recém-nascidos Estados Unidos, em 1790, e adotada pela Revolução Francesa (de 1789), em 1791.
Surpreendentemente o Brasil foi o quarto país do mundo a adotar uma legislação de proteção intelectual, por D. João VI, em 1809. Sob D. Pedro II, em 1882, uma lei mais elaborada regula a concessão de patentes e leva o Brasil a participar da primeira convenção internacional sobre patentes, a Convenção da União de Paris (CUP), em 1883. À mais recente revisão desta convenção, em 1967, o Brasil aderiu em 1972. Ao mais relevante acordo de cooperação em termos de patentes, o PCT (Patent Cooperation Treaty), o Brasil aderiu em 1970.
Mais tarde, em 1994, a Organização Mundial do Comércio (OMC) substituiu o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, de 1947) na chamada Rodada Uruguai de negociações. Um dos acordos firmados nessa rodada foi o Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (Trips). A adaptação da legislação brasileira ao Trips resultou na Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279 de 14 de maio de 1996).