Adolescentes com HIV não sabem negociar o uso do preservativo

Medo de serem rejeitados por suspeita de portarem doença é um dos principais motivos relatados

Da Redação
Com a colaboração de Vanessa Victoria

imagem com roupas intimas e camisinhas

Imagem: Sergio Dazzi

Um estudo apresentado como dissertação de mestrado ao programa de pós-graduação em Pediatria da Escola Paulista de Medicina - (EPM/Unifesp) Campus São Paulo mostrou que a maioria dos adolescentes infectados com HIV e carga viral detectável (que aumenta o risco de transmissão) mantém relações sexuais desprotegidas (65% para o sexo oral, 63% para o sexo vaginal e 68,4% para o sexo anal). O enfermeiro e autor da pesquisa, Alexandre Lelis Braga, que é colaborador do Centro de Atendimento da Disciplina de Infectologia Pediátrica (Ceadipe/Unifesp), avaliou a sexualidade e o planejamento reprodutivo de 93 adolescentes infectados pelo vírus da aids por transmissão vertical (de mãe para filho no útero ou no parto). Além da confirmação sobre o pouco uso da “camisinha” por parte desses jovens, o estudo também alerta para o conhecimento limitado de medidas profiláticas que visam à não infecção do parceiro e do concepto.

Para o pesquisador, não há oposição ao uso do preservativo masculino entre os jovens pesquisados, mas sim pouco poder de negociação com os parceiros. “O adolescente que vive com HIV/Aids não tem, muitas vezes, habilidade suficiente para negociar o uso desse complemento com o parceiro sexual. Insistir, para eles, pode acabar levantando suspeitas sobre sua infecção”, explica Braga. “Essa falta de habilidade leva os jovens a evitar o relacionamento amoroso ou a adiar a vida sexual.”

Além disso, as moças tendem a manter relacionamentos mais estáveis, revelando seu diagnóstico ao parceiro, o que não ocorre com os rapazes entrevistados. “Vimos que eles tendem a iniciar mais precocemente a vida sexual, a ter mais parceiras e a adiar mais a revelação do seu diagnóstico a terceiros”, afirma. Entre os adolescentes que constituíram o foco da pesquisa, 76,7% nunca revelaram seu diagnóstico pelo medo da rejeição.

O estudo, que utilizou uma metodologia quali-quantitativa, reuniu participantes com idade entre 13 e 19 anos completos e concentrou-se em três centros especializados em aids pediátrica: Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP (CRT-DST/AidsSP), Ceadipe/Unifesp e Programa Municipal de IST/HIV/Aids/Hepatites Virais de São Bernardo do Campo. Além das entrevistas semidirigidas, foram aplicados questionários Adolescentes com HIV não sabem negociar o uso do preservativo Medo de serem rejeitados por suspeita de portarem doença é um dos principais motivos relatados Da Redação Com a colaboração de Vanessa Victória Infecção Sexualmente Transmissível Unifesp EntreTeses julho 2018 47 que incluíram variáveis sociodemográficas e questões sobre comportamento sexual. A amostra estudada foi, em sua maioria, femi - nina (59%), composta por indivíduos de cor parda (49,5%) e pertencentes às classes C e D (73%). A média de idade correspondente à primeira relação sexual foi de 13,8 para os rapazes e de 15,1 anos para as moças.

Banalização da doença e risco aumentado

Um dado alarmante extraído do estudo indicou a banalização da doença de acordo com a percepção dos jovens. “Devido ao fato de o tratamento hoje ser eficaz, muitos acre - ditam que ter HIV/Aids resume-se apenas a tomar um comprimido por dia, sem conhe - cer as consequências que o vírus e o próprio medicamento trazem ao organismo.”

A pesquisa também constatou que a pro - porção do uso de drogas entre os que já ti - veram relação sexual é significantemente maior do que entre os que não adotaram o mesmo comportamento. Esse dado é preo - cupante, uma vez que o uso abusivo de subs - tâncias pode alterar o nível de consciência, levando à prática de sexo desprotegido.

Por outro lado, o comportamento sexual de risco dos entrevistados pode ser relacio - nado à falta de treinamento para o uso cor - reto do preservativo, já que – conforme o apurado – 52,7% deles não receberam capa - citação adequada, principalmente no caso do preservativo feminino.

Sonho de constituir família

De acordo com o resultado apontado na pesquisa, o estigma que cerca o HIV preju - dicou as relações sociais e afetivas entre os adolescentes, enquanto o receio de infectar com HIV o parceiro ou o filho gerou dúvida em 44,1% deles. Dos que negaram ter dúvi - da em relação a ser soropositivo e ter filhos, quando perguntados sobre as medidas pro - filáticas disponíveis, 55,8% revelaram ter co - nhecimento inadequado acerca do avanço no cuidado da gestante soropositiva.

ia foi também expresso pela maioria (82,8%) dos jovens, que, assim como seus pares so - ronegativos, sonhavam com a paternidade ou a maternidade. Entre todos os participan - tes, os que buscavam aconselhamento com Sergio Dazzi 48 Unifesp EntreTesesjulho 2018 profissionais da saúde eram os que mais queriam ter filhos, assim como possuíam maior conhecimento em relação a métodos contraceptivos.

Em seu trabalho, Braga reafirma a importância de garantir que os adolescentes portadores do vírus HIV tenham acesso aos chamados direitos reprodutivos, os quais incluem uma livre decisão de ter filhos ou não. “Devemos informar esses jovens dos riscos, mas reconhecer que a decisão sobre o assunto é individual. Muitas vezes, um relacionamento amoroso só é legítimo quando há filhos. A gravidez planejada é sempre a melhor escolha”, ressalta.

Tais direitos estão previstos no artigo 226, parágrafo 7º, da Constituição Federal, no qual fica estabelecido que o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Não compete, pois, ao profissional de saúde impor um tipo de prevenção se o objetivo é acolher o paciente, respeitando os direitos constitucionais, de acordo com Braga. “Infelizmente os profissionais ainda continuam trabalhando na lógica de evitar a gravidez na adolescência a qualquer custo, sem levar em consideração a vontade dos jovens”.

O pesquisador alerta para o fato de que não é concebível exigir o uso do preservativo como única medida contraceptiva, embora deva existir a preocupação de atender a demandas específicas mediante o gerenciamento de riscos e a prevenção combinada (estratégia que utiliza simultaneamente diferentes abordagens de prevenção – biomédica, comportamental e estrutural). “Não podemos determinar qual será o método de prevenção a ser seguido pela pessoa. Haverá quem não use o preservativo por diversas razões, cabendo aos profissionais de saúde discutir com o indivíduo uma forma de profilaxia que se encaixe em seu perfil”, explica.

Para garantir os direitos reprodutivos é necessário implantar políticas públicas que diminuam o estigma ligado ao HIV/ Aids. “O tema deve ser tratado nos meios por onde os adolescentes circulam – por exemplo, nas áreas da saúde e da educação. Essa tarefa não pode ser apenas das secretarias de saúde. É preciso quebrar o tabu nas escolas, família e sociedade”, defende Braga.

O pesquisador explica também que, uma vez feita a manutenção da carga viral suprimida, menores são as chances de ocorrer transmissão vertical e horizontal do HIV (de mãe para filho e por via sexual, respectivamente). Atualmente o Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP (CRT-DST/AidsSP) discute a carga viral indetectável, que se iguala à intransmissível.

imagem de um homem tirando do bolso um pacote de camisinhas

Além de manterem relações desprotegidas, os adolescentes com HIV indetectável também possuem conhecimento limitado de medidas profiláticas que evitam a contaminação do parceiro e do concepto (imagem: Sergio Dazzi)

Distribuição de droga anti-HIV

foto do enfermeiro Alexandre Lelis Braga

O enfermeiro Alexandre Lelis Braga avaliou a sexualidade e o planejamento reprodutivo de adolescentes infectados pelo HIV (imagem: Alex Reipert)

Segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), houve um rejuvenescimento no perfil dos indivíduos infectados. Antes, os índices eram principalmente compostos por idosos e homossexuais; agora, o vírus do HIV, embora inclua muitos homens gays, alcança uma parcela expressiva de jovens na faixa de 15 a 25 anos.

Para conter a expansão do HIV sobre a população de jovens, o governo brasileiro começou a distribuir, em dezembro de 2017, a droga Truvada, que previne a infecção causada pelo vírus. O Brasil é o primeiro país latino-americano a adotar esse medicamento, fornecido como parte do programa de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) de Risco à Infecção pelo HIV, do Ministério da Saúde.

Neste momento inicial, a PrEP é oferecida aos grupos considerados mais vulneráveis, tais como profissionais do sexo, gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), pessoas trans, usuários de drogas e parceiros sexualmente ativos de soropositivos. O tratamento preventivo, que consiste em tomar um comprimido por dia, é fornecido por 35 centros de saúde de 11 Estados.

Para Alexandre Braga, a profilaxia proposta pelo PrEP tem alta eficácia. “A proteção é de 99% para relações anais, mantidas após o uso do medicamento por sete dias consecutivos; e de 94% para relações vaginais, mantidas após seu uso por 21 dias consecutivos.”

O vírus no mundo

De acordo com o relatório divulgado em 2016 pela Unaids, chamado Acabando com a Aids, 19,5 milhões dos 36,7 milhões de pessoas que vivem com HIV tiveram acesso ao tratamento, e mortes relacionadas à aids caíram pela metade, de 2005 até a divulgação do documento (de 1,9 milhão para 1 milhão). Ainda de acordo com o balanço e considerando a continuidade desses avanços, será possível atingir o objetivo global de 30 milhões de pessoas em tratamento até 2020. No entanto, os jovens ainda estão sob grande risco de infecção, em especial as mulheres na África subsaariana. Dos 610 mil jovens entre 15 e 24 anos que, na região, contraíram infecções por HIV, 59% eram mulheres.

O Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV) mostra que, no período de 1980 a junho de 2017, já foram notificados no Brasil mais de 882 mil casos da doença (contraída por todas as vias de transmissão), tendo ocorrido cerca de 316 mil óbitos até 2016.

De acordo com os indicadores e dados básicos da aids (http://indicadores.aids.gov.br/), levantados anualmente pelo Ministério da Saúde, de 1980 até junho de 2017, do total de casos reconhecidos 65,27% incluíam homens. No mesmo período foram registrados 14.749 casos de jovens menores de 13 anos cuja transmissão havia ocorrido de mãe para filho. No grupo mencionado, essa via de transmissão – denominada vertical – foi a mais comum, sendo 93% dos casos notificados ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan).

No Brasil, além do acesso gratuito à medicação necessária ao tratamento, garantida pela Lei Federal nº 9.313/96, os portadores de HIV têm direito – de acordo com a legislação em vigor – à isenção no imposto de renda, ao saque integral do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), à aposentadoria por invalidez e ao sigilo, no ambiente de trabalho, sobre sua condição sorológica, entre outros benefícios (https://unaids.org.br/conheca-seus-direitos/).

Desde 1989, quem vive com a doença no país dispõe de um documento informativo denominado Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da Aids, que enumera suas prerrogativas básicas como cidadão.

PERFIL DOS JOVENS PESQUISADOS

  • Idade entre 13 e 19 anos
  • 49,5% são pardos
  • 73% pertencem às classes C e D
  • A idade de 14,5 anos corresponde à média geral para a primeira relação sexual, sendo 13,8 anos para os rapazes e 15,1 anos para as moças
  • 65% mantêm relações sexuais desprotegidas para o sexo oral; 63% para o sexo vaginal; e 68,4% para o sexo anal
  • 76,7% nunca revelaram seu diagnóstico aos parceiros sexuais por medo de rejeição
  • 82,8% querem ter filhos e constituir família
  • 10% já possuem filhos
  • 100% conhecem o preservativo masculino; 41,9%, o dispositivo intrauterino (DIU); 94,6%, o preservativo feminino; 75,3%, o injetável; 89,2%, o contraceptivo de emergência; 36%, a laqueadura; e 36,6 %, a vasectomia
  • 52,7% não receberam capacitação adequada sobre o uso de preservativo, especialmente do feminino
  • Nos últimos doze meses, 44,7% tiveram um parceiro sexual; 24,5%, de dois a três parceiros; 14,9%, de quatro a seis parceiros; 12,8%, mais de sete parceiros; e 2,1% não souberam quantificar

Fonte: Sexualidade e Planejamento Reprodutivo dos Adolescentes Vivendo com HIV/Aids: um Desafio ao Cuidado em Saúde, dissertação de mestrado elaborada por Alexandre Lelis Braga

MUDANÇA DE NOMENCLATURA

Desde o final de 2016, o Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV) passou a utilizar a sigla IST (infecções sexualmente transmissíveis) em lugar de DST (doenças sexualmente transmissíveis). De acordo com o órgão, a nova denominação é uma das atualizações da estrutura regimental do Ministério da Saúde, ressaltando-se que a sigla IST já é utilizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em nota divulgada pelo DIAHV, Adele Benzaken, diretora do departamento e membro do Comitê Consultivo Estratégico e Técnico da OMS, explica que doença envolve sintomas e sinais visíveis no organismo. Já as infecções podem ter períodos assintomáticos, sendo detectadas apenas por meio de exames laboratoriais

Dissertação relacionada:

BRAGA, Alexandre Lelis. Sexualidade e planejamento reprodutivo dos adolescentes vivendo com HIV/Aids: um desafio ao cuidado em saúde. 2017. 99 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) - Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo.