Juliana Cristina
Nancy Bellei é graduada em Medicina, especialista em virologia e doutora em infectologia pela Universidade de São Paulo (USP). A docente afiliada e pesquisadora da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo, atua ainda como consultora ad-hoc do Ministério da Saúde - SVS para pandemia de coronavírus e como consultora científica da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/ OMS).
Bellei acompanhou o avanço da covid-19 no Brasil e, desse modo, pode ser considerada tanto como grande espectadora da pandemia quanto uma das maiores protagonistas diante do cenário pandêmico. A pesquisadora, inclusive, idealizou e participou de diversas pesquisas relacionadas ao Sars-CoV-2 realizadas até então, a exemplo do estudo da vacina da Universidade de Oxford (Reino Unido) para o qual ela e seu grupo de pesquisa estão avaliando a carga viral e mutações nos indivíduos vacinados. O grupo foi o primeiro a publicar sobre a diminuição da circulação de alguns vírus respiratórios durante as medidas de afastamento social (resultado de aplicação prática em saúde pública) e demonstrou resultados no laboratório que auxiliam no diagnóstico dos pacientes não apenas quanto à avaliação de gravidade com carga viral, como mostrou ser possível realizar e melhorar o diagnóstico de covid-19 detectando-o em outros materiais, como nas fezes.
Em conversa com a Entreteses, Bellei falou sobre como está sendo vivenciar o espectro da pandemia desde o começo, sua perspectiva a respeito da questão da pesquisa no Brasil e investimentos vinculados a esse fim, além de realizar uma breve análise acerca da administração e divulgação das questões relacionadas ao novo coronavírus no país.
“Apesar das dificuldades, o hospital se manteve com as portas abertas e bem gerenciado para avaliar pacientes com covid-19”, Nancy Bellei
(Fotografia: Alex Reipert)
Entreteses • Você está inserida no cenário decorrente da covid-19 desde o início. Como foi vivenciar a expansão da pandemia? E como foi seu trabalho durante esse período?
Nancy Bellei • Até outubro, atuamos com os(as) pós-graduandos(as) em nosso laboratório de pesquisa e, eventualmente, com reforços de pessoas do Laboratório Central. Era preciso responder de forma rápida, ou seja, realizar testes em menos de 24 horas para que o Hospital São Paulo (HSP/HU Unifesp) conseguisse adaptar da melhor forma possível a intensa demanda do serviço público. Por isso, o Laboratório de Virologia foi transformado em um “laboratório de rotina”. E, para que o hospital agilizasse as internações, tivemos que dispor de uma grande dedicação do grupo todo. Sem contar que uma estrutura de universidade não é de fato apropriada para esse tipo de diagnóstico. Diante do contexto da pandemia, algumas pessoas, como médicos(as) residentes, se aproximaram bastante do nosso grupo e se interessaram em contribuir tanto na rotina quanto na pesquisa. Conseguimos com que nossos(as) alunos(as) defendessem suas teses (sobre outras agências virais) nos prazos, publicamos um número significativo de artigos a respeito do coronavírus e também sobre outros vírus. Nosso grupo vivenciou a internação de pacientes e profissionais de saúde, algo de que o trabalho no laboratório às vezes nos afasta um pouco. O resultado é que apesar de alguns problemas técnicos que tivemos, o trabalho revelou-se muito estimulante, afinal essa é a minha linha de pesquisa. Durante a epidemia de H1N1 [vírus da gripe suína, considerada a primeira do século XXI (2009)], passei por uma experiência semelhante, pois também se tratava de um vírus novo. É uma área à qual me dedico há mais de 20 anos e o trabalho, ainda que por vezes seja desgastante, é muito gratificante.
E. Neste momento, estamos prontos(as) para administrar a vacinação da população brasileira ou ainda existem muitos obstáculos?
N.B. Nós ainda temos vários obstáculos para a vacinação. Um deles diz respeito à comunicação com a sociedade, pois há dissonância entre gestores(as) políticos(as) e as sociedades científicas. Acredito que a cada indivíduo cabe um papel e, quando determinado grupo extrapola seu dever com a sociedade, só temos prejuízo. Além disso, enfrentamos questões envolvendo logística difíceis de serem solucionadas. Não adianta serem comprados vários freezers, porque primeiro é preciso antecipar a solicitação e compra de determinadas vacinas com semanas ou meses anteriores à entrega. Por isso, a questão é entender toda essa rede, estabelecer compras previamente, entender faixas etárias e estabelecer estudos de custo-efetividade para, assim, determinar o melhor plano de vacinação possível. Temos uma série de obstáculos e estamos atrasados porque quanto mais rápido a população for vacinada, melhor. Temos diversas questões num país de tamanho continental, como questões políticas, a questão internacional do mercado, questões relacionadas à aplicação da vacina (uso de seringas, manutenção de cadeia de frio, distâncias...), então realmente são muitos desafios.
E. Existe uma corrida pela descoberta da melhor vacina e sabemos que países e empresas que detiverem a tecnologia melhor aceita sairão na frente em diversos aspectos. Por outro lado, recentemente foi publicada uma matéria citando a análise feita pela People's Vaccine Alliance que fala sobre como países mais pobres poderão ser afetados mediante ao estoque de vacina feito por países mais ricos. Em sua opinião, como fica o Brasil nessa história?
N.B. A maior parte dessas vacinas vem de outros países, e quem as produz e vende tem uma preocupação com o território onde elas serão introduzidas. Se há instabilidade política e econômica nesses locais, isso vai contra a política de farmacêuticas e indústrias internacionais, principalmente neste momento. Não podemos esquecer que elas têm acionistas e interesses econômicos próprios. Por isso, não existe interesse em enfrentar desafios desse tipo com situações instáveis em países como o nosso, por exemplo. São casos em que essas empresas buscam outros mercados que tenham interesse, ao invés de se ficar à espera desse mercado onde não há estabilidade e definição. Portanto, isso pode afetar o número de vacinas diferentes disponíveis que viremos a ter no país.
E. Sob seu ponto de vista, como o Brasil (poder público, SUS e hospitais) administrou o atendimento à população e a informação à sociedade sobre o problema?
N.B. Houve muito desacerto inicial, tanto no diagnóstico quanto no isolamento, atendimento e preparo para a pandemia. Faltou planejamento; sempre “apagando o fogo”, em vez de evitá-lo. Os laboratórios privados se anteciparam, possuíam reagentes e testes, enquanto o setor público justificava não conseguir comprar porque “estava faltando”. Com esse argumento, boa parte dos diagnósticos atrasou e boa parte da contenção inicial não foi feita. Penso que os hospitais de campanha seriam melhor aproveitados se usados para isolamento de parte da população e testagem do que somente para casos graves. As medidas iniciais se resumiram a sugerir que a população ficasse em casa de quarentena. Isso teve um papel importante sim, mas não é só o que se espera de uma gestão pública, mas principalmente organização e planejamento – como nos hospitais privados, laboratórios e até alguns hospitais públicos. No Hospital São Paulo, criamos um local para serem atendidos(as) os(as) pacientes com síndrome gripal, começamos a comprar reagentes para diagnósticos (na época com muita dificuldade), além de treinarmos pessoas. Acho que quanto a isso faltou muito para a gestão pública nacional em todos os sentidos.
E. Hoje as opiniões sobre a imprensa estão bastante polarizadas. Alguns grupos afirmam que veículos de comunicação são como “mensageiros da morte”, por exemplo. Qual a sua opinião sobre o tratamento da imprensa e reação da população brasileira em relação à pandemia?
N.B. Claro que existe um bom papel da imprensa, de veicular informações, otimismo, mas parte do que sustenta a mídia é polêmica. A imprensa tem um papel provocativo que, muitas vezes, acaba sendo só de polêmica ou de simular polêmica, o que pode chegar a um ponto nocivo. Estimular debate é interessante. Porém, estimular polêmica e polarização nessa questão de saúde é deletério. Assim que vejo a imprensa. Quanto à população, acho que se entre as próprias sociedades médicas não especialistas e os(as) próprios(as) especialistas já existe uma série de dúvidas e comportamentos não apropriados, imagina como a população pode entender e se colocar em relação à vacina nessa situação tão confusa, não é? É muito difícil. O ideal seria que as sociedades médicas, a imprensa e os(as) gestores(as) políticos(as) tivessem um olhar de planejamento integrado, mas não é o que vemos na prática.
E. Em relação às pesquisas no Brasil, você acredita que poderíamos estar em um nível melhor quanto aos investimentos? Como estaríamos melhor?
N.B. Durante muitos anos tivemos dificuldade para conseguir financiamento no país, porque os vírus respiratórios não estavam entre as prioridades dos financiamentos de pesquisa. No entanto, isso acabou se tornando prioridade máxima com a chegada da pandemia. Com isso, tivemos uma melhoria nas condições do laboratório, conseguimos adquirir equipamentos e recebemos financiamentos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que, embora fôssemos um grupo de liderança nacional, se tratando da pesquisa em vírus respiratórios, era algo difícil de conseguir. Ficou evidente que a questão dos vírus respiratórios é um desafio constante, levando em conta que não é possível determinar quando acontecerá um evento à semelhança da pandemia de coronavírus. Em janeiro, apesar de estarmos em condições estruturais e financeiras muito difíceis, nós conseguimos dar conta de estabelecer o diagnóstico. Depois, pouco a pouco, recebemos suporte da universidade, diretoria da escola e doações. Mas ficou visível que era preciso ter um grupo de pesquisa pronto para responder a essa demanda de proporção mundial.
E. Em sua concepção, qual o patamar da pesquisa e da ciência brasileira em relação aos demais países?
N.B. Tempos atrás, no ano de 2017, saiu uma avaliação no jornal Folha de S. Paulo mostrando que, proporcionalmente, o Chile possuía um avanço maior do que o nosso em termos científicos. Foi uma análise feita em relação ao número de trabalhos, onde eram publicados… Fiquei surpresa quando a vi, considerando o tamanho do Brasil e o número de universidades que temos, ambos muito maiores em relação ao país vizinho. Existem recursos disponíveis para pesquisa em nosso país, mas é preciso haver organização e maximização desses recursos. Nós temos universidades federais muito produtivas, mas também temos um grande contingente de recursos humanos, em universidades públicas, pouco produtivo. Tudo isso teria que ser repensado.
E. Como foi a movimentação de pacientes e a administração dos atendimentos no Hospital São Paulo (HSP/ HU Unifesp) ao longo dos últimos 10 meses?
N.B. Montamos um comitê e começamos a discutir na diretoria do hospital. Então, criou-se uma ala de atendimento a pacientes não hospitalizados(as) com síndrome respiratória sugestiva de covid-19, alas específicas para o atendimento de pacientes com o novo coronavírus, e ambulatórios de pós-covid para pacientes que tinham quadro pulmonar grave. Essa movimentação revelou que, apesar das dificuldades, o hospital se manteve com as portas abertas e bem gerenciado para avaliar pacientes com covid-19 que o procuraram, mesmo quando vinham de regiões de São Paulo. Muitos(as) deixaram de ir a uma Assistência Médica Ambulatorial (AMA) ou às Unidades Básicas de Saúde (UBS), para serem atendidos(as) no HSP/HU Unifesp. Realizamos muitos treinamentos para várias especialidades (pediatras, cirurgiões(ãs), oftalmologistas, ortopedistas, enfermagem, fisioterapia…), no intuito de habilitar profissionais para lidar com os(as) pacientes de covid. Fizemos também parcerias privadas para ações e aquisições diversas, como ventiladores, testes e materiais de proteção individual. A Unifesp, na pessoa da reitora, considerou ser importante participarmos tanto da rede estadual quanto da rede federal de diagnóstico, o que viabilizou a aquisição de insumos e manutenção dos diagnósticos até o momento para pacientes e a comunidade de colaboradores(as).
E. Pensando em tudo o que você vivenciou, pesquisou e observou até o momento, qual é o seu horizonte de expectativa sobre o futuro?
N.B. Me preocupa muito a expectativa das pessoas com relação à vacina. Existem os horizontes individuais da população, e as pessoas estão completamente à deriva, sem saber como planejar seus próximos passos. Além do impacto econômico, existe um impacto psicossocial, ambos muito ruins. Isso me preocupa muito. O contexto econômico já vinha muito desfavorável. Por outro lado, minha expectativa é que, com a pressão vacinal no mundo todo, o pouco de manutenção de prevenção individual que as pessoas vão continuar fazendo e com o pouco de progressão da pandemia em pessoas suscetíveis, seja possível que em algum momento tenhamos uma certa “calmaria” - ainda que nem tudo isso seja possível no país. Talvez consigamos ter mais empregos, que as pessoas estabeleçam um plano pelo menos a médio prazo, e isso traga otimismo e uma espécie de crescimento individual e social para as pessoas, porque isso me preocupa muito.
(Fotografia: Alex Reipert)
"É importante ressaltar que precisamos de planejamentos para estudos epidemiológicos e de efetividade de vacina; um investimento para que essas pesquisas continuem. Em 2020 tivemos bastante investimento em todas as esferas - por ter sido o ano da primeira onda de pandemia. Mas, com a chegada da vacina, a dificuldade econômica e questões políticas, me preocupa que a necessidade desses estudos fique de lado. Essas pesquisas, assim como a revisão de tudo isso, serão imprescindíveis para planejarmos os próximos anos.”
Estudos sobre Sars-CoV-2 desenvolvidos pela docente
Entre os trabalhos realizados pela infectologista e seu grupo de pesquisa acerca do Sars-CoV-2, destaca-se a aplicação prática em saúde pública, a qual pode ser observada, por exemplo, nos estudos realizados com visitantes e pacientes assintomáticos(as) em hospital e no teste diagnóstico realizado nas fezes dos(as) pacientes, iniciativa que permite diagnóstico de pacientes que chegam tardiamente no hospital - com aumento de até 20% no diagnóstico. Além disso, estão sendo conduzidas outras pesquisas, ensaios sorológicos em doentes crônicos(as), e estudos de vigilância em profissionais de saúde. De acordo com Nancy Bellei, todas essas pesquisas, dependendo do foco em que se inserem (diagnóstico, epidemiológico ou virológico), são pesquisas de impacto imediato.
Listagem de trabalhos:
- Detected Sars-CoV-2 in Ascitic Fluid Followed by Cryptococcemia: a Case Report (Sars-CoV-2 detectado em Fluído Ascético seguido de Criptococcemia: um relatório de caso)
- Asymptomatic coronavirus disease 2019 (COVID-19) in hospitalized patients (Doença coronavírus assintomática 2019 (Covid-19) em pacientes hospitalizados/as)
- Covid-19 in health care workers in a university hospital during the quarantine in São Paulo city (Covid-19 em profissionais de saúde em hospital universitário durante quarentena em São Paulo)
- Is Higher Viral Load in Sars-CoV-2 Associated with Death? (A carga viral mais alta no Sars-CoV-2 está associada à morte?)
- Different patterns of Influenza A and B detected during early stages of COVID-19 in a university hospital in São Paulo, Brazil (Diferentes padrões de Influenza A e B detectados em estágios iniciais da covid-19 em um hospital universitário de São Paulo)
- No benefit of hydroxychloroquine on Sars-CoV-2 tiral load reduction in noncritical hospitalized patient with COVID-19 (Não há benefício da hidroxicloroquina na redução da carga tiral Sars-S-CoV-2 em paciente hospitalar não crítico/a com covid-19)
- Refractory Arterial Hypotension in a Patient with COVID-19: Could the Hypothalamic-Pituitary-Adrenal Axis Be Involved? Case Report and Mini Review (Hipotensão Arterial Refratária em paciente com covid-19: o Eixo Hipotalâmico-Pituitário-Adrenal poderia estar envolvido? Relatório de casos e mini revisão)