Centro de Estudos Periféricos (CEP) Apresenta: Ciclo de Palestra - Dilemas da Periferia
Grupo de pesquisa do Campus Zona Leste propõe medidas para contenção da covid-19 nas periferias
Documento pretende auxiliar o poder público na proteção das populações mais vulneráveis, contra a pandemia do coronavírus
A universidade deve olhar para a periferia
Antonio Saturnino
Dez anos atrás, João Carlos Alves Duarte decidiu prestar concurso para compor o quadro de servidores da Unifesp. Em 2007, no momento de sua posse, ele optou por atuar em Diadema e recebeu a seguinte missão: erguer um novo campus. Quando pisou no prédio do bairro Eldorado, havia apenas algumas cadeiras e mesas. Não tinha computador, linha telefônica ou internet. Em pouco menos de um mês, carregando as coisas de um lado para o outro e correndo atrás de fornecedores, já estava tudo organizado para a matrícula dos alunos. “Acho que os estudantes sequer perceberam que tudo foi feito às pressas, pois conseguimos criar a infraestrutura necessária para recebê-los”, lembra João Carlos.
Nascido na Bahia, no município de Iguaí, João Carlos mudou para São Paulo em 1979, quando estava próximo de completar 15 anos. Ele chegou a cogitar morar em Salvador, incentivado por seus padrinhos, mas decidiu se instalar na capital paulista por ter um número maior de parentes vivendo em uma mesma casa, próximo à represa de Guarapiranga. Ao todo eram mais de 20 pessoas, entre os avós, tios e irmãos.
Ele saiu de sua cidade natal acompanhando seus pais, Sadraque e Maria, que também pretendiam tentar a vida em São Paulo. Porém, apenas João se adaptou ao cotidiano da metrópole e, no ano seguinte, seus pais mudaram para Itabuna, na Bahia. Seu pai faleceu em 1998 e, desde então, sua mãe, hoje com 76 anos, mora com a irmã caçula dele.
Logo nos primeiros dias de sua estada na capital paulista, ele, que vinha com boas notas no colégio onde estudava, se deparou com a nova realidade de precisar conciliar o trabalho e os estudos. Como resultado, foi reprovado.
Suas notas não foram satisfatórias nas disciplinas de exatas e hoje, por ironia, além de atuar na administração do Campus Diadema, leciona Matemática na rede estadual, na periferia da cidade. Ele o faz por acreditar nos jovens e, principalmente, por saber que a educação é a única forma de ajudá-los a almejar um futuro promissor. “Tento mostrar como é importante levar a sério os estudos. Procuro fazer um trabalho diferenciado para que se preparem melhor para as provas de vestibular e do Enem. O meu sonho é ver meus estudantes dentro da Unifesp”.
Para ele, as condições do ensino público na periferia, tanto para o aluno como para o professor, são muito precárias. São escolas ditas preparadas tecnologicamente, mas os educadores não conseguem utilizar os computadores, por exemplo, pois existem poucas unidades, e nem todos funcionam. A evasão escolar ainda é muito grande, principalmente no período noturno, pois, muitas vezes, a entrada no mercado de trabalho é priorizada.
O professor está desenvolvendo um projeto que consiste em ministrar aulas de reforço gratuitas, preparatórias para o Enem, para alunos do terceiro ano do ensino médio, já que as perspectivas para os jovens são bem poucas. “Há um equívoco quando dizem que eles são desinteressados, quando na verdade nós precisamos chegar até eles. A impressão que eu tenho é que as políticas públicas não os atingem na totalidade. As tecnologias são acessíveis e precisam ser melhor utilizadas. Eles precisam ver que a educação é a mola propulsora para o futuro deles e que nós estamos ali para abrir caminhos”, afirma.
Para ele, a universidade precisa estar cada vez mais inserida na cidade, principalmente na periferia, e cita como exemplo uma série de projetos, como o cursinho popular, que promove aulas na unidade Manoel da Nóbrega, e a iniciativa que leva estudantes da Unifesp para dar aulas de reforço em escolas de bairros carentes de Diadema. Ambas as propostas têm ajudado os alunos a melhorar o desempenho em provas oficiais.
Divorciado, ele tem dois filhos do casamento, o Vinícius e o Caio. Ele namora, há oito anos, com Rosana, que foi a sua paixão na adolescência. Ele a reencontrou quando teve a ideia de reunir os amigos da escola. Ambos estavam saindo de um matrimônio de cerca de 22 anos e se reaproximaram. Atualmente, moram no mesmo prédio, porém em apartamentos diferentes. Ele brinca que, como ambos foram casados e não deu certo, agora preferem apenas namorar.
Ao falar sobre os filhos, embora sejam muito diferentes um do outro, ele se orgulha por tê-los criado sem preconceitos e com ideais de uma sociedade harmônica, mais igualitária e de aceitação das diferenças religiosas, de gênero, de sexualidade ou políticas. Um deles, o Caio, trabalha com sistemas de informação. “Aos 20 anos, ele me comunicou que estava indo morar na Austrália. Ficou lá cinco meses, onde teve uma experiência de vida ótima. Lá ele conheceu e conversou com pessoas das mais diversas nacionalidades”.
Já Vinícius, que chegou a integrar a turma de servidores de 2010 da Unifesp e cursa Química Industrial no Campus Diadema, mostra aptidão para a música e o engajamento político. Durante as manifestações de junho de 2013, Vinícius foi uma das vítimas de um governo arbitrário e truculento. Em um dos protestos, ele estava com um grupo que tentava sair de uma área onde manifestantes enfrentavam a tropa. Enquanto tentavam fugir da confusão, foram acuados pela Polícia Militar, que começou a jogar bombas de gás lacrimogênio. Asfixiados, pediram abrigo e foram socorridos pelos funcionários de um hotel, que, em seguida, seria invadido pela polícia.
“As autoridades alegaram que o hotel estava sendo depredado. Eu fui lá, logo após o episódio, e não havia nada fora do lugar, nada havia sido quebrado. Nenhum piso, espelho, assento ou balcão”, diz João Carlos. Ele diz possuir uma sequência com cerca de 25 fotos, em que seu filho aparece agachado atrás do sofá, com as mãos estendidas. Vinícius levou vários golpes de cassetete, até que um desses atingiu sua cabeça e o fez cair. Ele ficou com o corpo cheio de hematomas, perdeu seis dentes e um deles, que era de titânio, entortou, tamanha a violência do golpe. “Queriam que ele não chegasse vivo no hospital. Ele foi levado ao pronto-socorro no carro da viatura e, no caminho, fizeram barbaridades. Fizeram um caminho maior que o necessário e com tamanha truculência, que ele foi batendo a cabeça o tempo todo”.
João Carlos lembra que ao chegar em São Paulo o Brasil vivia sob ditadura, o que não o impediu de assumir uma militância política. Comparando os tempos do regime militar aos atuais, afirma: “Na época da ditadura, a gente tinha pouca informação, mas conseguia enxergar e questionar. Hoje nós temos muita informação, mas não fazemos nada com ela. Se um político comete um erro, ele precisa pagar, independentemente da posição que ocupa ou a que partido é afiliado. Meu receio é ver as coisas acontecendo e a mídia passando a impressão que tudo está centrado em um único partido, sendo que nosso país tem uma história de 500 anos de corrupção”.
Ele continua: “Estão tentando descaracterizar tudo que foi feito no âmbito social nos últimos anos. Essa intenção de apagar as coisas que ocorreram não é o melhor caminho, pelo menos para nossa democracia. Eu espero que essas investigações que estão acontecendo realmente se ramifiquem o máximo possível e peguem todas as pessoas envolvidas”.