O constante e persistente crescimento do mercado mundial de drogas ilícitas, que atinge a cifra astronômica de quase 900 bilhões de dólares ao ano, desafia a compreensão de pesquisadores, governantes, formuladores de políticas sociais, autoridades responsáveis pelos órgãos de vigilância e repressão e da sociedade como um todo. Trata-se de um panorama agravado pela indústria e comércio de medicamentos e substâncias como o álcool e o tabaco que, embora legalizadas, são fonte de grandes prejuízos para a saúde e para a vida social. No dossiê que agora apresentamos, o leitor poderá acompanhar o que pensam e produzem pesquisadores de cinco setores da Unifesp ligados ao tema.
Valquíria Carnaúba com colaboração de Ana Cristina Cocolo
Marcelo*, hoje com 39 anos, fuma maconha há seis. Do “baseado”, passou para o ecstasy, GHB (conhecido como “ecstasy líquido”), poppers e cocaína. Faz suas compras por meio de dealers, pois prefere pagar mais caro (cada 30ml de GHB custa entre R$ 150 a R$ 200) a correr riscos inerentes a contatos com comunidades e vendedores mais expostos à abordagem policial. Já Flávio* consome cocaína, ecstasy e, eventualmente, maconha, às quais tem acesso por meio dos amigos. Flávio garante não ser dependente: utiliza as drogas aos finais de semana e delas se vale para potencializar o prazer durante as relações sexuais.
A realidade de ambos é o retrato de um fenômeno global, o consumo de drogas, longe de ser recente ou mesmo restrito a classe social, gênero ou etnia. Durante a primeira década do milênio, o narcotráfico faturou, em média, 900 bilhões de dólares ao ano, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc). A cifra é equivalente a 35% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro ou a 1,5% de toda a riqueza produzida no globo. Trata-se de um mercado extremamente dinâmico, sempre alimentado por “novidades” (como as metanfetaminas e as sintéticas, em geral) ou por ondas renovadas de consumo de drogas antigas (como a heroína e os opiáceos, atualmente responsáveis por 40 mil mortes anuais nos Estados Unidos).
O cenário é ainda mais grave quando se considera que o narcotráfico impulsiona e alimenta 40% das demais frentes de negócios mantidas pelo crime organizado, segundo a Unodc, com base em dados do final da década passada. As atividades, que incluem tráfico de armas, de pessoas e lavagem de dinheiro, entre outros, giraram 2,1 trilhões de dólares, ou seja, 3,6% do PIB global. Mas não é só. O narcotráfico ainda estabelece uma relação “cooperativa” com o mercado de drogas permitidas e socialmente aceitas, como o álcool e o tabaco, para gerar um quadro catastrófico para a saúde pública.
O Global Drugs Survey (GDS) desponta como uma ferramenta importante para compreensão do problema. Coordenado no Brasil por Clarice Sandi Madruga, psicóloga e professora afiliada da disciplina de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo, a coleta on-line feita pela pesquisa contou, em 2015, com a participação de 107.624 pessoas. O relatório final revela dados surpreendentes, que envolvem consumo de álcool, versões alteradas de ecstasy, baixo preço da cocaína e, principalmente, o uso da maconha sintética no Brasil.
Mercado promissor no Brasil
O estudo detectou pela primeira vez o uso de maconha sintética no Brasil. A droga nada tem a ver com a versão natural. “O spice (nome comercial) é uma versão da molécula do THC sintetizada em laboratório. Por se ligar a receptores cerebrais de forma diferente que a molécula original, aumenta em até 60 vezes as chances do indivíduo desenvolver dependência química e em 30 as de ter uma emergência médica após o uso”, afirma Clarice. Das 434 entradas de emergência em hospitais detectadas pelo estudo, 50,9% ocorreram pelo seu uso. É vendido em forma de óleo para cigarros eletrônicos ou como fertilizante da planta Cannabis.
Quanto ao álcool, os dados são alarmantes. “Comparado aos 21 países participantes do estudo, o Brasil fica abaixo apenas da Irlanda em indicadores como volume consumido e percepção de tolerância”. Cerca de 6,6% dos irlandeses do sexo masculino bebem mais de 10g de álcool para começar a sentir os efeitos da bebida, sendo que o limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), para consumo diário, é em média 30g. No caso do Brasil, esse número é apenas ligeiramente menor, em 6,3%.
O GDS 2015 também revelou que cada pílula de ecstasy (em média R$ 40,00), há muito desprovida de seu constituinte original, a metilenodioximetanfetamina (MDMA), agora possui altas concentrações de similares às anfetaminas, além de catinonas sintéticas, altamente neurotóxicas e com poder de dependência superior ao do crack. As internações por complicações médicas pelo uso foram de 0,9%, contra 0,3% detectados no GDS 2013.
O preço da cocaína brasileira é o mais baixo do mundo: em torno de R$ 50,00 o grama. O equivalente em crack também é barato – em torno de R$ 25,00, segundo órgãos brasileiros de entorpecentes. O “pó” também foi identificado como o mais potente, uma vez que o país apresentou os maiores índices de procura de serviços de emergência após o uso.
Em 2012, o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) apontou que cerca de 1,8 milhão de brasileiros consumiu a “pedra” pelo menos uma vez na vida, número que salta para 5 milhões quando tratamos da cocaína. “Desde então, a demanda aumentou. Com isso, o tráfico optou por trabalhar a cocaína (última etapa de purificação) para voltar ao estágio de pedra”, pontua Clarice.
“O único exemplo nacional de combate às drogas bem-sucedido é o do tabaco”, relembra. Com efeito, a comparação entre o Lenad 2006 e o 2012 mostra que a prevalência de fumantes diminuiu tanto entre adultos (de 20,8% em 2006 para 16,9%) quanto entre menores de 18 anos (de 6,2% para 3,4%). Entretanto, o GDS apontou que o cigarro eletrônico, mesmo sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), já é comercializado em território nacional e consumido por 5% dos usuários avaliados pelo levantamento. “O acessório tem potencial de introduzir o vício em consumidores que não começariam a fumar devido a cheiro ou restrições em ambientes fechados”, alerta Clarice.
O impasse se estende
As discussões sobre criminalização do porte, legalização e regulamentação das drogas devem se intensificar no Brasil, principalmente após a autorização da Anvisa para uso de maconha medicinal no país, concedida em março deste ano. Nossos personagens iniciais, por exemplo, têm opiniões distintas. Marcelo* defende apenas a legalização da maconha, pois já viu muitas pessoas “serem levadas pelo Samu” durante festas e outras que morreram de overdose, por exagerarem no consumo de entorpecentes. Porém, para Flávio*, o ideal é legalizar tudo. “A proibição não proporciona nenhum benefício fiscal ao Estado, que poderia investir em programas de prevenção com a tributação das drogas”.
O coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), Dartiu Xavier, reforça que a proibição não diminuiu o número de dependentes, mas dificulta seu acesso a tratamento e prevenção. “O uso de substâncias ilícitas estimula uma carga enorme de estigma e preconceito”.
Maurício Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), afirma que a proibição gera um mercado ilícito gigantesco e, no caso brasileiro, extremamente violento, causando milhares de mortes todos os meses.
De fato, projeções do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen/MJ) mostram que o número de presos por tráfico cresceu 339% entre 2006 (31.520 presos), ano de entrada em vigor da lei 11.343 (Tráfico de Drogas e Associação para o Tráfico), e 2013 (138.366 presos). No entanto, contribuem para esses números os presos por contrabando de cigarro e álcool, drogas legais em território nacional. Segundo o Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf), pelo menos 30% das vendas de tabaco no Brasil correspondiam, em 2014, a produtos ilegais vindos do Paraguai.
“Não estamos preparados para a legalização total e a economia das drogas é a grande responsável por isso. Sempre vai existir o traficante vendendo mais barato over the counter (ilegalmente). Superar esse fenômeno demanda a estruturação de uma verdadeira política de drogas, apoiada no tripé prevenção, tratamento e controle da oferta”, afirma Ana Cecília Marques, psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead).
“Outra medida imprescindível seria treinar e educar a polícia, que se trata hoje de uma instituição extremamente corrupta, que culpa o jovem em situação vulnerável e aquele com um ‘baseado’ no bolso, mas não prende o traficante”, complementa a coordenadora do GDS. Todos os profissionais consultados rejeitam a política de “guerra às drogas”. Para Fiore, abordar a questão no âmbito da Antropologia é entender o que a droga significa para o usuário, respeitando-se a diversidade. Mas Ana Cecília é enfática: “O meu direito é aquele que termina quando invado o seu. A partir do momento que estou sob efeito de algo e mudo meu comportamento, já passei do limite e posso ser um risco à sua vida”.
* os nomes dos personagens foram alterados para resguardar suas identidades