De acordo com pesquisadores da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), o aumento do consumo de drogas sintéticas tem sido um novo problema de saúde pública no Brasil e no exterior. Essa classe de drogas é composta por substâncias desenvolvidas a partir de alterações na estrutura molecular de substâncias previamente conhecidas e já proibidas, com o objetivo de burlar a lei, de modo que a sua comercialização possa ocorrer sem prescrições ou restrições legais. À luz da lei, essas substâncias ainda não são proscritas (proibidas), porém, sob o ponto de vista toxicológico, apresentam propriedades nocivas cujo impacto do consumo vem sendo estudado em vários países. O consenso é que estamos diante de substâncias neurotóxicas, com alto poder de dependência e capazes de causar importantes danos à saúde física e psicossocial dos seus usuários.
Colaboraram neste artigo
Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp: Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Inpad/CNPq)
Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp: Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias (Nepsis)
Produtos cada vez mais potentes burlam a vigilância
Infelizmente, a indústria da droga está à frente na criação de derivados de produtos já proibidos. No Brasil, desde 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão que fiscaliza setores relacionados a produtos e serviços que possam afetar a saúde da população brasileira, realizou 37 atualizações na Portaria 344/1998 (que trata dos medicamentos de controle especial), sendo a última em 2014, a partir da lista de 2012.
Muitos países vêm tentando manter suas listas de drogas proscritas atualizadas, mas o aparecimento de novas substâncias psicoativas, conhecidas como New Psychoactive Substances (NPS), tem sido mais rápido que os processos burocráticos de inclusão. Como consequência, uma grande quantidade de novas substâncias psicoativas sintetizadas não regulamentadas é mundialmente comercializada, inclusive por meio da internet. Na Europa elas são conhecidas como "legal highs" ou "smart drugs". Estudos mostram que tais substâncias estão se tornando facilmente disponíveis também fora do eixo Europa-América do Norte.
De acordo com o efeito dessas substâncias no sistema nervoso central (SNC), elas podem ser classificadas em três categorias: psicoestimulantes, canabinóides e alucinógenos.
As ATS (amphetamine-type stimulants ou estimulantes do tipo anfetamina) são compostos sintéticos estimulantes que compreendem o grupo das anfetaminas, metanfetaminas, metacatinonas e substâncias análogas ao ecstasy (MDMA). Após os efeitos agudos do consumo, os usuários podem apresentar alterações de comportamento que evidenciem a dependência da substância. É relatado o aumento do risco de suicídio causado pela depressão nos períodos de abstinência e, vale acrescentar aqui, 87% dos usuários de estimulantes apresentam sinais de abstinência com a cessação do uso.
Diversos análogos sintéticos ao Δ9-THC (Δ-9-tetrahidrocanabinol) foram desenvolvidos. Do ponto de vista toxicológico, essas novas substâncias podem ser até 100 vezes mais potentes. Os canabinóides sintéticos são comercializados misturados a ervas em produtos chamados de K2, Spice ou incensos herbais. Alguns nomes comerciais do Spice incluem: Spice Silver, Spice Gold, Spice Diamond, Spice Arctic Synergy, Spice Tropical Synergy, Spice Egypt, Zombie World, Bad to the Bone, Black Mamba, Blaze, Fire and Ice, Dark Night, Earthquake, Berry Blend, The Moon e G-Force 2,3.
Ignorando o potencial tóxico desses compostos e a restrição nos rótulos indicando “impróprio para consumo humano”, na busca pelos efeitos semelhantes aos obtidos com o uso de maconha, os usuários consomem esta droga colocando em risco sua integridade física e mental. Constatou-se que após o uso, um em cada 30 usuários buscou serviços de atendimento médico de emergência no último ano. A Cannabis sintética é a substância que mais tem levado os usuários a buscarem esses serviços. As consequências do uso envolvem aumento de risco para o desenvolvimento de quadros psicóticos e chances 60 vezes maiores para instalação da síndrome de dependência.
Entre outros, os efeitos clínicos adversos relatados com o uso de Spice ou K2 estão relacionados a alterações no SNC, tais como convulsões, agitação, surtos psicóticos, acidentes vasculares cerebrais (AVC), perda de consciência, ansiedade, confusão e paranoia ou no sistema cardiovascular (taquicardia, hipertensão, dor no peito e isquemia cardíaca).
Os canabinóides sintéticos disponíveis atualmente no mercado ficaram mais potentes que os naturais, implicando em maiores prejuízos à saúde física e mental dos usuários. O uso desses derivados sintéticos da maconha foi relatado por 1,7% da amostra brasileira no último ano, ficando atrás apenas da Polônia, Hungria e Nova Zelândia, onde a Cannabis sintética era legalizada até a data da coleta dos dados.
Nos EUA, relatos de aumento do uso dos serviços de emergência, suicídio e assassinato já foram noticiados em razão do uso de Cannabis sintética e as autoridades continuam a alertar a população para o risco de novas ocorrências. Iniciativas de alerta e prevenção foram implementadas e a venda da droga passou a ser criminalizada em diversos Estados americanos.
Até pouco tempo atrás, o composto alucinógeno sintético mais conhecido era o LSD, porém, a busca por uma substância com preço mais barato e sem restrições legais que reproduzisse seus efeitos, introduziu uma nova série de drogas alucinógenas que ganhou destaque. Uma nova substância, o NBOMe, que apresenta um mecanismo de ação muito similar ao do LSD, surgiu na Alemanha em 2003, mas atualmente já se apresenta com 11 variações. Comercializado em muitos países como se fosse LSD, o NBOMe é mais forte e tóxico que a dietilamida do ácido lisérgico. A concentração do princípio ativo encontrado em doses de NBOMe pode ser até 40 vezes mais alta que no LSD, dependendo da forma como é consumido.
Os efeitos da droga no organismo podem durar até 12 horas, quase o dobro da duração média do ácido lisérgico. Ela começou a ser consumida no exterior em 2010 e chegou ao Brasil em 2011. Desde 2012, a comunicação do número de mortes e a busca de serviços de emergência após o uso está em ascensão.
Entre 2013 e 2015, triplicou o número de usuários de ecstasy que buscaram atendimento médico de emergência no país
Dados do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (II Lenad), realizado no Brasil em 2012, e do The Global Drug Survey 2015 Findings, que apresenta dados mundiais relativos ao consumo de drogas no ano de 2015, incluindo uma amostra brasileira, apontam que o consumo de ATS entre as mulheres foi maior que em anos anteriores, tanto quanto ao uso na vida como quanto ao uso no último ano. O uso de ATS pelo menos uma vez na vida foi referida por 4,1% da amostra, sendo 4,6% entre as mulheres e 3,8% entre os homens. As prevalências mais altas foram observadas entre os indivíduos de 25 a 34 anos (6,6%), solteiros (4,9%), com níveis mais elevados de educação (7,4%) e maior renda (13,6%). O uso da substância no ano anterior ao da realização da pesquisa foi referido por 1,6% da amostra, verificando-se que o consumo entre as mulheres (2,2%) alcançou o dobro do consumo entre os homens (1,1%). Observa-se mudança de faixa etária, sendo os mais jovens, aqueles entre 15 e 24 anos, os maiores consumidores (2,2%).
Com relação ao uso associado a outras substâncias, usar estimulantes aumenta em sete vezes e meia a chance de um indivíduo usar maconha e outras drogas ilícitas, e em vinte e uma vezes a chance do uso de cocaína.
A prevalência de consumo de inibidores de apetite a base de anfetaminas no Brasil, considerando o uso na vida, é a mais alta entre todos os países pesquisados, sendo 4,1% entre os homens e 6,4% entre as mulheres. Estes dados reforçam a urgência de atenção para o uso de estimulantes entre mulheres na nossa população.
Em 2015, 12,2% dos pesquisados relataram o uso de ecstasy (MDMA). Entre 2013 e 2015, triplicou o número de usuários de ecstasy que buscaram atendimento médico de emergência. Há que se considerar não só os casos de overdose, situações onde há a ingestão de grande quantidade de substância de uma só vez, mas também, a mistura de adulterantes altamente tóxicos, pois mesmo o consumo de pequenas quantidades pode levar o indivíduo ao atendimento médico de emergência. Como consequência desta experiência, 55,6% dos usuários reduziram o uso da substância e 22,2% diminuíram o consumo concomitante de álcool.
As intervenções de redução de danos partem de um conjunto de políticas, programas e práticas baseadas em evidências científicas, que tem por objetivo diminuir o impacto do uso de drogas lícitas e ilícitas, salvaguardando a saúde física, social e econômica dos usuários, de suas famílias e da comunidade.
Com relação às drogas sintéticas, uma estrutura conhecida como “legal party pills” passou a ser usada em alguns países como uma alternativa segura para o consumo. A estratégia consiste em limitar o uso a determinados ambientes, principalmente festas e eventos ligados à música eletrônica, pontos onde o usuário tem a possibilidade de testar a substância antes de consumi-la, evitando, assim, a ingestão de adulterantes desconhecidos potencialmente perigosos, e até mesmo fatais, encontrados nas drogas de rua. O teste é rapidamente realizado por meio de reações químicas, utilizando uma pequena quantidade da substância que vai ser consumida e alguns produtos reagentes. Atualmente, os kits de testagem podem ser adquiridos pela internet e usados em casa.
• Ronaldo Ramos Laranjeira, Clarice Sandi Madruga e Luciana Massaro – Uniad/Inpad
Festas rave estimulam uso entre jovens
Festa rave, local onde o ecstasy surgiu e se disseminou nos anos 1.990
Na década de 1980, o estilo musical eletrônico se popularizou na Espanha, em festas rave. No decorrer dos anos 1990, as festas tornaram-se frequentes entre os jovens de várias nacionalidades. Foi nesse cenário que o uso de ecstasy (MDMA – metilenodioximetanfetamina) teve seu início e disseminação. A partir de então, muitas outras drogas sintéticas passaram a ser consumidas, bem como surgiram outros cenários de uso.
As sintéticas se diferenciam das demais drogas, não apenas pela sua natureza e efeitos, mas também em relação ao perfil dos usuários. São predominantemente jovens, com boa inserção social e que adquirem as drogas em rede de comércio específico.
O ecstasy é uma das principais drogas sintéticas usadas atualmente. Estudos realizados pelo Nepsis sugerem que os jovens tendem a minimizar os danos da droga e os comportamentos de risco, como dirigir após usar e praticar relações sexuais sem preservativo. Os estudos mostram também que a percepção de risco pode ser um importante componente preventivo na tomada de decisões.
Vários pesquisadores da área ressaltaram a importância de ações de redução de danos em contextos de uso como forma de intervenção junto aos usuários do ecstasy e outras drogas sintéticas. Com o objetivo de minimizar os danos decorrentes do uso, existem iniciativas brasileiras de redução de danos em festas, como o Projeto Respire, da ONG É de Lei, idealizado por pós-graduandos da Unifesp.
• Ana Regina Noto - Nepsis