A maconha é a substância ilícita mais consumida no mundo. Seu mercado ilegal movimenta cerca de 300 bilhões de dólares por ano, recursos que financiam violência e corrupção. Lucas Maia, do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), afirma que legalizar a maconha seria, portanto, privar o crime organizado da sua maior fonte de lucro, ao mesmo tempo em que diminuiria riscos à saúde dos usuários, pouparia gastos com a repressão e arrecadaria recursos para serem investidos em setores como saúde e educação. Essa discussão, porém, ainda está longe de acabar.
Colaboraram neste artigo
Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp: Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Inpad/CNPq)
Departamento de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid)
Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp: Unidade de Dependência de Drogas (Uded)
Erva é cultivada há dez mil anos
A maconha foi um dos primeiros produtos agrícolas a serem cultivados. A relação do homem com a planta ultrapassa 10 mil anos. Ao longo da história, suas propriedades foram exploradas de muitas maneiras distintas, desde o uso da fibra de cânhamo para produção de têxteis até o uso terapêutico das resinas de suas flores e folhas superiores, datado há 5 mil anos. Em 1839, o médico irlandês William O’Shaughnessy publicou o primeiro relato científico do potencial da maconha como agente anticonvulsivante, trazendo grande interesse ao estudo de suas propriedades terapêuticas.
Até o primeiro terço do século XX, as propriedades medicinais da Cannabis figuravam nas páginas das farmacopeias de diversas nações. Contudo, por interesses comerciais associados à discriminação racial e étnica, criou-se uma campanha de difamação pública e especulativa da planta, a fim de abolir seu uso industrial, terapêutico e sociocultural. A veiculação extensa de campanhas nacionais e internacionais, principalmente estadunidenses, para estabelecimento de uma opinião pública negativa a respeito da planta ocorreu de forma leviana, distante das evidências científicas, e desproporcional aos efeitos adversos do uso da planta que, sabidamente, não leva à morte.
A proibição da maconha (e de todas as outras drogas consideradas ilícitas), desde então, atua como barreira para o conhecimento científico da planta e seus usos em potencial. Também trata como contraventores, passíveis de punição, todos os envolvidos com a produção, comércio e consumo da substância. Dessa forma, falha ao tratar o usuário como criminoso por consumir, o produtor por plantar, o comerciante por vender, além de negligenciar e estigmatizar aqueles que necessitam de atenção devido ao uso problemático.
A proibição ainda dificulta a produção científica a respeito de usos terapêuticos, comerciais, eventos adversos e tratamentos para o uso problemático. No âmbito da saúde pública, o veto gera mais danos, com o encarceramento excessivo e mortes, do que benefícios, ou seja, a falência desta política está posta, visto que o bem jurídico que a inibição busca proteger é justamente a saúde pública.
A lógica proibicionista tem consequências assimétricas sobre a população. A lei prevê tratamentos distintos para usuários e traficantes, com maior severidade na punição dos últimos. No entanto, a distinção entre os dois é feita de forma arbitrária, baseada sobretudo nas circunstâncias sociais e pessoais do réu, em um mecanismo pernicioso em que se invertem os papéis legais. O policial que fez a prisão serve à justiça de testemunha única e o réu tem de provar sua inocência, em vez de a polícia investigar se houve crime.
O aparelho opressor do Estado funciona de forma mais rígida sobre a população mais pobre, que tem menor acesso à informação, menor conhecimento dos seus direitos, que geralmente mora nas periferias e que é composta em sua maioria por pretos ou pardos.
Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) mostram que entre 2005 e 2012 houve um aumento da proporção de encarceramento devido a crimes ligados às drogas. Seguindo as assimetrias, nesse período, aumentou a proporção de jovens presos, sendo que, em 2012, pessoas de 18 a 24 anos eram a maioria da população prisional. No mesmo ano, 60,8% dos presos eram negros. Essas informações mostram que o ônus da proibição das drogas recai sobre os jovens, negros e pessoas que vivem nas periferias. A Anistia Internacional aponta outro dado alarmante: 77% das 30 mil vítimas de homicídios praticados com emprego de arma de fogo no país eram negras.
Em 2016, o Brasil pode deixar de ser um dos últimos países da América Latina a criminalizar o uso das substâncias consideradas ilícitas. Caso essa decisão seja tomada no Supremo Tribunal Federal, timidamente o país começará a rever sua política custosa, atrasada e ineficaz de lidar com as drogas.
A reforma da política de drogas deve ainda ser ampliada. Deve-se pôr fim à proibição das substâncias consideradas ilícitas e regular a produção, distribuição e consumo destas. É preciso priorizar o respeito aos direitos humanos e desvincular as drogas da violência e do aparato repressor, assim como priorizar as estratégias de redução de danos e de atenção ao usuário problemático pelo setor de saúde e não pelo judiciário. Há que se garantir educação e informação a respeito das substâncias e dos riscos e prejuízos associados ao seu uso, além de vetar a propaganda e qualquer estímulo ao consumo. São também prioridades: garantir a liberdade de opinião e de uso do próprio corpo; derrubar as barreiras para a pesquisa sobre os potenciais terapêuticos dessas substâncias; abolir a disparidade prisional e o genocídio da juventude pobre, negra e periférica; reduzir o estigma sobre o usuário e facilitar o acesso destes ao sistema de saúde. Estas são algumas medidas que, se adotadas, podem reduzir os custos econômicos e sociais provocados por essa guerra falida.
• Dartiu Xavier da Silveira, Renato Filev, Maria Torneli - PROAD
Criminalização inibe a pesquisa científica
Setembro de 2015 - Uma tonelada de maconha é apreendida na BR 101, divisa do Estado de Sergipe com a Bahia
Pelo fato de a maconha ser uma droga ilegal, há limitação de dados epidemiológicos que permitam comparar, em igualdade de condições, os efeitos do seu uso crônico com o de cigarros de tabaco. É provável que se utilizados na mesma quantidade e frequência, os efeitos prejudiciais pulmonares sejam similares. Diversos estudos indicam dados cognitivos, desencadeamento de síndrome amotivacional, aumento do risco de desencadeamento de quadros psicóticos em pessoas com vulnerabilidade e aumento da taxa cardíaca e da pressão arterial, que pode precipitar infartos do miocárdio em jovens do sexo masculino, provavelmente por espasmo da artéria coronária.
Diversos estudos sobre o uso medicinal de derivados da Cannabis sativa, em especial do canabidiol, comprovam sua efetividade no tratamento de quadros de epilepsia. Elisaldo Carlini, criador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), professor do Departamento de Psicobiologia e, atualmente, no Programa de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp, foi um dos primeiros pesquisadores do mundo a estudar os efeitos da maconha e seus componentes.
Entre os estudos dos quais participou, destaca-se a tese de doutorado do professor Antonio Zuardi (1980), sobre a interação entre dois canabinóides: o canabidiol e o delta-9-THC, na qual demonstrou o efeito ansiolítico do canadibiol e sua ação antagônica ao delta-9-THC. Estudos sobre o uso de alguns canabinóides, como parte de cuidado paliativo, mostram que eles podem contribuir para o aumento do apetite em pacientes com a sndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). No entanto, ainda faltam estudos que permitam avaliar, a longo prazo, sua eficácia, tolerabilidade e segurança. A ação do canabidiol como anticonvulsivante em casos de epilepsia refratários a outros tratamentos tem sido comprovada por estudos recentes.
Estudos realizados na década de 1970 pelos professores Elisaldo Carlini e Sergio Tufik, no Departamento de Psicobiologia, demonstraram que, em animais de laboratório, a administração de delta-9-tetrahidrocanabinol (o princípio ativo da maconha responsável pelos seus efeitos alucinógenos) potencia a agressividade em animais submetidos à privação de sono. O primeiro estudo sobre a maconha (dentre 46) realizado por Carlini foi publicado em 1965. Estudos posteriores concluíram que a relação entre o uso de maconha ou outras drogas e violência é complexa e bidirecional. Devido aos seus efeitos farmacológicos, alterando a liberação de neurotransmissores, pode ocorrer aumento do comportamento agressivo, principalmente no período de abstinência. Durante o período de intoxicação, a maconha reduz a probabilidade de violência. Entretanto, além dos efeitos farmacológicos, é preciso considerar a associação com outras substâncias e o contexto do consumo.
Entre as principais vantagens da descriminalização da maconha para uso pessoal estão: evitar a colocação de usuários na ilegalidade e diminuir a sobrecarga do sistema penitenciário. A descriminalização do porte de maconha para uso pessoal é importante para diferenciar usuários de traficantes, embora, na prática, sua execução possa ser difícil. A prisão de usuários não resolve o problema da dependência de drogas, nem os problemas sociais relacionados. A abordagem de usuários deve ser realizada por profissionais das áreas de saúde pública e assistência social, voltada ao oferecimento de oportunidade de reflexão sobre o próprio consumo, em vez de encarceramento, visando a ressocialização e recuperação dos dependentes. Por outro lado, o controle do tráfico continua a ser feito pelos sistemas judiciário e de segurança pública.
• Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni – Uded
Políticas repressivas perdem terreno no mundo
Um número cada vez maior de países chega à mesma constatação: é preciso mudar a política de drogas. E a maconha ocupa lugar de destaque nesse cenário. Nos Estados Unidos, 23 Estados já regulam o uso medicinal, 4 deles também o uso recreativo. Em 2017, o Canadá poderá tornar-se o primeiro país do G7 a regular o comércio de maconha para todos os fins. Na Espanha, a maconha é cultivada e compartilhada em associações civis (clubes). No Uruguai, além dos clubes, a maconha será vendida em farmácias.
Em Israel, aproximadamente 22 mil pacientes recebem maconha medicinal do governo. No Chile, a maior plantação legal de maconha da América Latina beneficia 4 mil pacientes e o Parlamento tramita um projeto de lei para a descriminalização do consumo e cultivo pessoal. Mais recentemente, Austrália e Colômbia somaram-se aos países que autorizam o uso medicinal. Embora a lei colombiana permita desde 1986 a produção e o comércio de maconha para uso médico e científico, a prática nunca havia sido regulamentada.
Similarmente, a lei brasileira autoriza desde 2006 “o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, exclusivamente para fins medicinais ou científicos” (Lei nº 11.343/2006). No entanto, sem uma regulamentação que defina regras claras, a prática permanece sendo criminalizada no Brasil. A aprovação da importação de extratos contendo prioritariamente canabidiol, por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foi um passo muito curto em direção a uma regulação eficaz e igualitária.
A Cannabis possui centenas de componentes, grande parte deles com potencial terapêutico. Inclusive o tetrahidrocanabinol (THC), comprovadamente eficaz no tratamento da dor crônica, náusea e vômito produzidos pela quimioterapia, falta de apetite e espasmos musculares que ocorrem em diversas enfermidades. Nestes casos, não há dúvida de que os benefícios são muito maiores que os riscos. É preciso regulamentar o uso da planta como um todo, em suas diferentes formas de administração, e viabilizar a produção nacional para que uma parcela maior desses pacientes tenha acesso ao tratamento.
Lucas Maia e Zila van der Meer Sanchez Dutenhefner, do Cebrid
Contudo, o número de pessoas que faz uso estritamente médico da maconha representa apenas uma parte dos consumidores e regular a maconha não será tarefa fácil. Vai exigir a cooperação de diferentes setores sociais. As experiências em andamento em outros países podem fornecer subsídios para que tomemos melhores decisões ao elaborar um modelo de regulação para o Brasil. Isso envolve definir questões como: limite de compra/estoque, preço, qualidade, potência e, muito importante, a publicidade vinculada à maconha. As regras irão depender dos objetivos que a regulação pretende priorizar.
Nos países onde a maconha foi regulada, não houve explosão do consumo ou aumento dos crimes. Por outro lado, após 50 anos de guerra às drogas, muitas nações perceberam que a simples repressão não foi capaz de reduzir a oferta nem a demanda. Pelo contrário, o uso (e os riscos do uso) só aumentou. Novas drogas mais potentes foram desenvolvidas. Adulterantes ameaçam a saúde dos usuários.
A estigmatização e a criminalização impedem que as pessoas que desenvolvem problemas procurem tratamento. O encarceramento de usuários e pequenos traficantes, além de seletivo a grupos sociais já marginalizados, sobrecarrega o sistema prisional. Assim, a proibição demonstrou ser mais prejudicial à saúde e à sociedade do que o problema que ela supostamente busca controlar.
É tempo de colocar a saúde e os direitos humanos no centro das políticas de drogas, onde prevaleçam evidências científicas, em vez de concepções emotivas e ideológicas.
• Lucas Maia - Cebrid