Há base para a Base Nacional Comum Curricular?
Antonio Simplicio de Almeida Neto
A proposta de criação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem ocupado o noticiário, os debates acadêmicos e as redes sociais. Entre as diferentes disciplinas escolares referidas nesse documento, História despertou súbito e inusitado interesse pelo passado que é ensinado para nossas crianças e jovens e muito se tem discutido sobre esse tema, para além dos círculos específicos de interesse. Nunca antes na história desse país isso ocorreu com tal intensidade.
Tal proposição, nos termos do MEC, faz parte de um mesmo pacote de ideias que envolve sistemas de avaliação, gratificação por bônus, produtividade escolar, ranking de escolas, produtos educacionais, sistemas apostilados e toda sorte de procedimentos que apontam para a padronização do ensino. Tornou-se líquido e certo que a educação é um produto como outro qualquer e que sujeitos exteriores à escola é que devem determinar o que vai dentro da sala de aula. Tidas como inevitáveis, tais concepções e seus pressupostos tornaram-se hegemônicos, de modo que as vozes contrárias a esse modelo e seus procedimentos soam anacrônicas.
O jogo soma zero com formas as mais sofisticadas e intrincadas de controle de todas as etapas do processo educativo, passando pela definição de conteúdos e das atividades pedagógicas, pela elaboração, produção e distribuição de materiais didáticos, pelos processos avaliativos de professores e alunos e sua premiação e/ou certificação, pelos modelos de gestão e de gerenciamento. A organização da BNCC baseada em objetivos de aprendizagem a serem atingidos e, posteriormente, avaliados, revelam a concepção de currículo avaliado que subjaz à proposta, o que fará recair fortemente sobre alunos e professores a responsabilização pelos resultados do processo.
Além desses aspectos, que por si só guardam algo de sórdido, os mentores da BNCC propugnam haver “conhecimentos essenciais aos quais todos os estudantes brasileiros têm o direito de ter acesso”, escamoteando o fato de que a definição de qualquer currículo implica seleção e que selecionar é uma operação de poder entre grupos sociais, por definir quais conhecimentos são mais legítimos, podendo ser objeto de estudo nas escolas e, consequentemente, quem será representado e quem será excluído desse jogo.
O suposto e propalado consenso sobre os “conhecimentos essenciais”, portanto, é uma peça de abstração que nem sempre explicita os interesses envolvidos na questão, como os das fundações Lemann, Roberto Marinho, Victor Civita e Airton Senna, Institutos Natura e Millenium, Itaú, Bradesco, Telefônica, Gerdau, Camargo Correa e Volkswagen, Cenpec, Amigos da Escola, Todos pela Educação e editoras (nacionais e internacionais). Tais sujeitos privados participam mais ou menos direta e ostensivamente em parceria com alguns sujeitos públicos, como o MEC, Consed, CNE e Undime, organizando eventos, produzindo documentos, financiando hospedagem, deslocamento e alimentação.
Sobre a disciplina História - certamente a que gerou mais polêmica -, o debate midiático orbitou quase que exclusivamente em torno de quais conteúdos seriam os mais adequados e legítimos: América ou Europa, gregos ou negros, índios ou egípcios, história cultural ou história social. Uma primeira versão da BNCC foi denominada “ideológica”, quando não “bolivariana”, por ampliar a carga de história indígena e história da África e afro-brasileira (aliás, em conformidade com as Leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornam obrigatórios o ensino de cultura e história africana/afro-brasileira e indígena), em detrimento de uma história eurocêntrica. Enviesou-se o debate, como se um currículo zeloso dos conteúdos canônicos eurocentrados fosse menos ideológico.
Alguns pesquisadores de História, ao analisarem mais detidamente o documento, apontaram que o maior problema estaria em não situar com clareza os motivos pelos quais devemos estudar História na sociedade brasileira e global atual e quais os objetivos centrais dessa disciplina na atualidade, de modo a justificar as opções curriculares: ênfase no Brasil e suas relações com a história global, o lugar do Brasil no mundo globalizado, contribuindo para uma crítica ao eurocentrismo, sem que se excluísse história antiga e medieval (ver o documento Manifestação Pública da Anpuh sobre a Base Nacional Comum Curricular, disponível no site da instituição). Não obstante o destaque que lhe rendeu o epíteto de “ideológica”, são perceptíveis as fragilidades na concepção de história indígena que a restringe à história do contato com os europeus e da africana que a torna apêndice dos europeus pela escravidão.
Curiosamente, o destaque centrou-se nos conteúdos. Não houve grande celeuma sobre os princípios e pressupostos que fundamentam a existência de um currículo único para o país e suas implicações, o que legitima a iniciativa, que ainda tem vários outros pontos obscuros, como, por exemplo:
a) a inserção de ensino religioso como “disciplina” das Ciências Humanas, o que certamente não é o caso, ao lado de História, Geografia, Sociologia e Filosofia, disciplinas que discutem o tema religião;
b) a anunciada divisão entre 60% de conteúdo comum e 40% de conteúdo diversificado (a ser definido pelos Estados e municípios) pode tornar os 60% em 100%, uma vez que os sistemas de avaliação recairão sobre essa parte do currículo, fazendo com que muitas escolas e sistemas de ensino priorizem o treinamento de seus alunos para essas provas. Além disso, soube-se em debate promovido pelo Comfor/Unifesp, realizado em 4 de dezembro, por uma representante do MEC, que essa divisão percentual não consta em nenhum documento oficial;
c) nesse mesmo debate, soube-se que não houve qualquer definição sobre as formas de tabulação das mais de 12 milhões de contribuições inseridas na plataforma da BNCC (a 2ª versão do componente curricular História, por exemplo, ficou pronta muito antes de 15 de março, término do prazo de entrega das contribuições);
d) há uma grande incerteza e apreensão sobre o que ocorrerá com os cursos de licenciatura do país, que podem ser reduzidos a cursos de treinamento de professores para melhor aplicar a BNCC. Já está em curso a criação de uma Base Comum de Formação de Professores.
Se fosse destacar algum aspecto positivo nisso tudo, certamente diria que foi o intenso debate suscitado em diferentes setores da sociedade: universidades, imprensa, redes sociais, escolas e associações.