Guerra às drogas viola os direitos

Modelo uruguaio reacende debate sobre alternativas à repressão

 

Lu Sudré

Em dezembro de 2013, o Uruguai tornou-se o primeiro país a legalizar a produção, distribuição e venda de maconha sob o controle do Estado e, com isso, suscitou novas discussões em torno do uso recreativo e medicinal da cannabis. Trata-se de um problema que também interpela a instituição universitária, por suas dimensões e significado social, político, ideológico, e cultural, além do impacto na saúde pública. Aceitando o desafio, em maio, a Unifesp promoveu a Conferência Internacional sobre Drogas, em conjunto com o Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), desenvolvido pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (EPM/Unifesp).

A atividade contou com a presença do neurocientista Carl Hart, professor do Departamento de Psicologia e Psiquiatria da Universidade de Columbia (NY) e membro do Conselho Nacional dos Estados Unidos sobre o Abuso de Drogas, e da psiquiatra Raquel Peyraube, assessora da Secretaria Nacional de Drogas do Uruguai, com mediação do psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, responsável pelo Proad. Para Dartiu, a chamada guerra contra as drogas é um fracasso. “Somos herdeiros de uma guerra às drogas patética e falível porque escolhemos o inimigo errado. O inimigo não é a droga, é a vulnerabilidade social”.

Durante a adolescência, Carl Hart usou e traficou drogas em Miami. Como uma exceção à regra, conseguiu abandonar o passado para ser neurocientista. Aos 47 anos, defende a descriminalização das drogas e uma política educacional sobre as substâncias. Em mais 20 anos de profissão, o neurocientista debruçou-se em pesquisas sobre drogas e deparou-se com uma realidade contrária aos mitos sobre usuários de drogas e sobre as próprias substâncias, como o crack.

“É dito que uma vez que se usa, está viciado. Isso não é verdade. Não há nada no mundo que se usa uma vez e o indivíduo já torna-se um viciado imediatamente. Dessa forma, classificam os usuários de droga como seres irracionais”, argumenta Hart. Ele afirma que as drogas não viciam na proporção que se imagina - segundo o neurocientista, apenas 11% dos consumidores podem ser considerados viciados - e que os entorpecentes não causam danos cerebrais irreversíveis.

Raquel Peyraube, que acompanhou todo o processo de legalização da maconha no Uruguai, adota a mesma perspectiva. “Somos ensinados a pensar as drogas como um problema de saúde e criminal”, diz Raquel, “mas na verdade a problemática das drogas deveria ser entendida como uma questão geopolítica que se manifesta no meio social”. Segundo a psiquiatra, a lógica belicista do combate às drogas determina estratégias desumanas e intervenções ineficazes baseadas na repressão abusiva, aplicada indiscriminadamente contra os indivíduos que usam drogas, tratando-os como criminosos e atingindo setores específicos da população, o que estabelece uma política de extermínio e de higienização social.

De acordo com Hart, o uso de drogas não prejudica o desempenho profissional de uma pessoa. “Os três últimos presidentes dos Estados Unidos (Bill Clinton, George Bush e Barack Obama) afirmaram já ter usado drogas. Não falo como demérito, mas apenas para mostrar que é possível usar drogas e ser produtivo. O ponto é que pessoas podem usar drogas e ainda serem responsáveis”.

A “guerra às drogas”, para Hart, é uma estratégia de controle social. “Os negros sofrem o lado negativo como resultado da guerra às drogas”, diz Hart, destacando que as políticas de drogas nos Estados Unidos, assim como no Brasil, são racialmente discriminatórias. “Nós não temos problemas com drogas, é um problema com a polícia. Ser negro é ser constantemente questionado e estar submetido ao ódio o tempo todo”. Hart complementa que tal conflito social não é um fracasso e sim um grande sucesso para aqueles que ganham dinheiro por sua causa. É também “um grande sucesso para os políticos que não têm que lidar com os reais problemas que as pessoas enfrentam, com a injustiça social. Apenas excluem os pobres”.

Hart visitou a cracolândia, região no centro de São Paulo e definiu a área como ‘bizarra’. “A cracolândia é um bode expiatório. Existem inúmeras coisas acontecendo naquela região e as drogas são apenas uma pequena parcela delas”. Para o neurocientista, os governos criam bodes expiatórios com o discurso de combate às drogas. “Eles dizem que podemos vencer o crack e assim não precisam falar sobre a falta de educação e falta de saúde. Eles não precisam falar ou ensinar nada para as crianças sobre as drogas. Se formos atrás do crack, não precisaremos lidar com nenhum outro problema”.

A solução para o neurocientista é combinar a ciência com as políticas públicas. “Precisamos considerar a descriminalização de todas as drogas, não prender pessoas devido a violações envolvendo drogas. Não sou contra a legalização, mas acho que precisamos de mais educação pública antes de reivindicarmos a legalização. Se melhorarmos a educação e as pessoas conversarem sobre as drogas, tenho certeza que podemos legalizar”.

Os tratamentos para usuários de drogas violam os direitos humanos, diz Raquel. “As pessoas usuárias são como troféus e muitas vezes expostas como propaganda institucional. As políticas de drogas são determinadas por interesses políticos e econômicos mas também por uma moral hegemônica a qual todas as pessoas devem ajustar-se, e as que não se ajustarem, serão excluídas”, afirma. A psiquiatra ainda coloca a superlotação das prisões como uma das consequências mais desastrosas da guerra às drogas.

O processo de legalização da maconha no Uruguai foi formulado de modo a reforçar as estruturas democráticas e evitar violações da soberania nacional. Raquel destaca a legalização como um fenômeno antropológico, social e político estimulado pelo governo do ex-presidente Tabaré Vázques e concretizado pelo atual presidente José Mujica. “A estratégia foi a instalação em área pública de uma discussão sistemática por meio de uma campanha massiva nos meios de comunicação, fornecendo informações claras e objetivas”, afirma a psiquiatra, que evidencia “a palavra legalização no imaginário coletivo significa liberação, mas na verdade é o oposto. Legalização é sujeição às leis”.

A cannabis para fins recreativos pode ser obtida por meio de três mecanismos: autocultivo, clubes de produtores com até 45 membros e vendas em farmácias de até 40 gramas por mês para indivíduos cadastrados. Além de reduzir as taxas de encarceramento daqueles que usam drogas por livre distribuição da substância, a lei pretende promover a pesquisa científica e a produção de dados de diferentes áreas do conhecimento para orientar futuras políticas de drogas. Para Raquel, não há outra saída. “Não toleramos mais mortes de um setor da população integrado por muitas crianças e jovens de classes sociais vulneráveis. O Uruguai está ratificando convenções de direitos humanos hierarquicamente superiores a qualquer convenção sobre drogas”.

imagem de Carl Hart, e da psiquiatra Raquel Peyraube

 

foto da capa da edição 7 jornal entrementes, mostrando as folhas da maconha e comprimidos Sumário da edição 7