Ana Cristina Cocolo
Encontro das águas - Amazônia
A grande paixão de Bertha Becker pela Geografia, em especial pela Amazônia, deixou um legado de mais de 40 anos de estudos e vários ensinamentos sobre o que muitos consideram ser o “pulmão do mundo”. Os trabalhos, pesquisas e projetos de políticas públicas desenvolvidos pela cientista sobre a região são referência obrigatória. O casamento com a Geografia começou nos anos 1960, quando Bertha iniciou um vasto trabalho de pesquisa sobre a expansão agropecuária no Brasil. A partir daí, o próprio processo de ampliação das fronteiras agrícolas brasileiras conduziu o seu trabalho para a Amazônia. Entender a complexidade da floresta, os processos de ocupação e devastação da região, assim como pensar seu desenvolvimento econômico de forma sustentável, tornou-se uma obsessão.
Graduou-se em Geografia e História pela antiga Universidade do Brasil, hoje Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde se tornou doutora e livre-docente em Geografia no ano de 1970. Concluiu, em 1986, o pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology (EUA). Na UFRJ, chegou ao cargo de professora emérita e lecionou por mais de quatro décadas. Durante dez anos também ministrou aulas a jovens diplomatas no Instituto Rio Branco – vinculado ao Ministério das Relações Exteriores.
Bertha ainda trabalhou em parceria com os Ministérios da Ciência e Tecnologia, da Integração Nacional e do Meio Ambiente, foi consultora de várias instituições científicas e integrou a Academia Brasileira de Ciências (ABC). Coordenou ainda inúmeros projetos e publicou mais de 100 trabalhos científicos e 19 livros. Todos fruto de pesquisas de campo. Para ela – que sonhava ver a Amazônia influenciando positivamente o produto interno bruto (PIB) do país por meio de uma revolução científica e do desenvolvimento sustentável – era fundamental ouvir todos os envolvidos, de índios e ribeirinhos a empresários e governo.
Bertha Becker durante viagem à Itália, em 2010
Sua atuação rendeu-lhe as distinções David Livingstone Centenary Medal da American Geographical Society, em 2000; a medalha Carlos Chagas Filho de Mérito Científico, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), em 2001; e, em 2007, a medalha de Mérito Geográfico, da Sociedade Brasileira de Geografia; e a insígnia de Comendadora da Ordem Nacional do Mérito Científico, pela Presidência da República.
De acordo com as amigas Ima Célia Guimarães Vieira, ecóloga e pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi-MPEG, e Nathalia Nascimento, geógrafa e pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental do Pará (Idesp), não há uma proposta para a Amazônia nos últimos 20 anos, que não tenha tido a participação ou fosse proveniente de Bertha.
“Sua dedicação a projetos inovadores e estratégias de implementação de políticas propostas para a região acentuou a importância de uma revolução científica e tecnológica que incluísse uma logística específica para a Amazônia”, afirma Ima. Essa revolução científica foi carinhosamente chamada, por seus amigos, de Revolução Beckeriana.
Para Nathalia, a ausência de Bertha dificilmente será preenchida, mas o rico acervo que deixa como legado ao país ajudará a nortear novas propostas de desenvolvimento para a Amazônia.
Foz do Rio Amazonas
Para muitos geógrafos e estudiosos, entre as políticas públicas que tiveram forte influência de Bertha na Região Amazônica, está a aprovação do Macrozoneamento Ecológico-Econômico (MacroZEE) da Amazônia Legal pelo Congresso Nacional, em 2010.
O MacroZEE – resultado de amplos estudos e negociação, envolvendo dezesseis ministérios, os nove Estados da região e entidades da sociedade civil – divide o território da Amazônia Legal em áreas distintas e estratégicas tanto na prospecção de alternativas de uso sustentável dos recursos naturais quanto no aproveitamento das potencialidades econômicas e sociais da região, sempre respeitando sua diversidade cultural.
Referências paternas
Casada com o químico Fábio Becker e mãe de três filhos – Lídia, Paulo e Beatriz – Bertha Becker nasceu em 15 de novembro de 1930, no Rio de Janeiro. Filha de pai romeno e mãe ucraniana, teve a irmã mais velha, que cursou História e Geografia, como referência para trilhar o rumo acadêmico.
Seu pai, Isac Koiffmann, natural de uma pequena aldeia (Steitel) na Europa Oriental, chegou ao Brasil acreditando que poderia conseguir uma vida melhor e com mais liberdade. Como imigrante pobre e recém-chegado ao porto do Rio de Janeiro no início do século XX, passou muitas dificuldades. Aqui, conheceu a ucraniana Adélia e casou-se.
Aos poucos, tornou-se comerciante, adquiriu lojas e imóveis e conseguiu criar suas três filhas – Fani, Liuba e Bertha –, deixando um certo patrimônio à família. Juntamente com um grupo de amigos, fundou as primeiras escolas israelitas no país. Já sua mãe, mulher forte e solidária, dedicou algumas décadas à vida comunitária e colaborou na criação do Lar da Criança, uma importante instituição beneficente à época para as famílias judaicas, já que abrigava crianças órfãs de pais mortos durante a guerra na Europa.
A professora com a família em viagem ao México para comemorar a passagem do ano de 2011 para 2012
Com o filho e os netos em passagem pelo Peru
A filha caçula, Beatriz Becker, jornalista e professora do programa de pós-graduação em Comunicação e Cultura e do Departamento de Expressões e Linguagens da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro ( ECO-UFRJ) reconhece a grande influência dos avós na trajetória profissional da mãe. “Essa marca da descoberta de novos territórios físicos e simbólicos sempre esteve presente no trabalho de nossa mãe, associada à importante referência paterna e materna da necessidade de um contínuo desenvolvimento humano e social para a qualidade de vida de pessoas de culturas e condições econômicas distintas, do diálogo e do reconhecimento das diferenças”, diz.
O marido de Bertha, Fábio, foi presidente da Escola Israelita Brasileira Eliezer Steinberg, um trabalho voluntário que abraçou, dando continuidade às causas dos sogros. Também foi um grande parceiro e incentivador para que a carreira de Bertha decolasse.
Os filhos classificam a mãe como uma pessoa fascinante e apaixonada pelo que fazia. “Quanto mais avançou na sua vida profissional, mais se solidificaram essas características em suas aulas, palestras, debates, artigos e livros, além, é claro, nas suas relações profissionais, pessoais e familiares”, afirma a primogênita da geógrafa, Lídia, que é fonoaudióloga, doutora em Artes Cênicas e professora da UFRJ.
Lídia conta que Bertha gostava muito de cantar e dançar. “Não é qualquer mãe que canta canções de Dorival Caymmi para os filhos dormirem, mas ela sim”, lembra. “Era estranho, mas muito bom e divertido.”
Bertha adorava o mar e a natação, mas sua atividade favorita era caminhar nas feiras e visitar lojas de antiguidades durante as viagens que fazia. Cozinhar? Nem pensar! Mas cobrava qualidade e diversidade na alimentação da família. Os filhos contam que, para sanar essa “deficiência”, havia ótimas cozinheiras em casa.
Incêndios e desmatamento na fronteira da Amazônia
Ela também não tinha hobbies, a não ser estudar, mas experimentava grande prazer em ir ao cinema, muitas vezes sozinha, à tarde, e terminar a noite assistindo à novela, acompanhando algumas séries ou um bom filme na televisão. “Tivemos a mais clássica mãe judia que se possa imaginar”, afirma Paulo, psiquiatra e psicanalista, o segundo na ordem de nascimento dos filhos. “Ela foi nossa maior amiga e sempre nos incentivou em nossas vidas e em nossas profissões.”
Os filhos lembram que Bertha chegava esfuziante de suas viagens, com presentes típicos dos lugares por onde passava, e ciente de que eles haviam permanecido muito bem com a estrutura preparada para a sua ausência. Os amigos de infância de Lídia, Paulo e Beatriz se lembram dela sentada em sua poltrona, estudando dias e noites a fio, mas sempre receptiva. Nunca teve problemas para conciliar a vida profissional com a familiar. “Os problemas surgiam e, quando ela tentava preencher suas falhas, inclusive aquelas naturais com cada filho, queria controlar tudo de si e dos outros, podendo tornar-se irritante e excessiva para nós”, conta Beatriz. “Entretanto, todos os seus pecados terão sido apenas por excesso.”
Uma das lições ensinadas aos filhos foi amar a vida, mesmo diante de dificuldades, como ela também o fez em momentos difíceis. Os filhos tiveram muitas oportunidades de viajar com a mãe desde a infância, inclusive para a Amazônia, mostrada com satisfação por ela. “Foram experiências fascinantes que, certamente, influenciaram as nossas escolhas profissionais”, afirmam os três irmãos.
Bertha faleceu em 11 de julho de 2013, aos 83 anos. Além dos filhos, a geógrafa deixou oito netos e conseguiu aproveitar um pouco da infância de duas bisnetas.
Principais atividades profissionais e livros publicados, organizados ou editados por Bertha Becker
1966 • Começa a lecionar Geografia no Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores. Reformula a grade curricular da disciplina para que os futuros diplomatas valorizassem o conhecimento das paisagens brasileiras.
1970 • Finaliza seu doutorado em Geografia pela UFRJ. Integra os projetos de pesquisa: Estrutura Fundiária e Conflitos na Amazônia Oriental, Expansão da Fronteira Demográfica e Econômica na Amazônia e Formação de Sub-Regiões na Amazônia.
1971 • Integra o projeto de pesquisa Urbanização e Mobilidade Espacial da População na Amazônia.
1972 • Especialização em Theories of Urbanization & Urban Systems Analysis.
1980 • Recebe elogio funcional do Instituto de Geociências IGEO/UFRJ. Integra os projetos de pesquisa Polos Tecnológicos no Vale do Rio Paraíba do Sul e Alternativas para o Desenvolvimento Rural.
1982 • Publica o livro Geopolítica da Amazônia: a nova fronteira de recursos. Inauguração da UHT Tucuruí.
1985 • Publica os livros Rural development: capitalist and socialist paths - Brazil and Nigeria e Regional development in brazil: the frontier and its people.
1989 • Integra o projeto Amazônia Macro-cenários 2001.
1990 • Publica o livro Fronteira Amazônica: questões sobre a gestão do território.
1991 • Integra o projeto Pró-Amazônia.
1992 • Publica os livros Brazil: a new regional power in the world-economy e Geography and environment in Brazil.
1993 • Publica o livro Brasil: uma nova potência regional na economia-mundo.
1994 • Integra os projetos Ecossistemas Brasileiros e Macrovetores de Desenvolvimento e Macrodiagnóstico da Zona Costeira Brasileira.
1995 • Coordena o projeto Análise dos Efeitos Sociais, Econômicos e Políticos das Ações Visando o Desenvolvimento Sustentável na Amazônia.
1997 • Recebe o título de Mulher do Ano da Associação Nacional de Mulheres.
1998 • Coordena o Projeto Institucional Gestão do Território no Brasil.
2000 • Recebe a medalha Carlos Chagas Filho de Mérito Científico.
2001 • Recebe a medalha David Livingstone Centenary da American Geographical Society. Publica o livro A difícil sustentabilidade política energética e conflitos ambientais.
2003 • Recebe homenagem de um grupo de geógrafos franceses sediados no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB).
2004 • Publica o livro Amazônia - geopolítica na virada do III milênio.
2005 • Recebe o título de doutor honoris causa na Université Jean Moulin Lyon III.
2006 • Ingressa na Academia Brasileira de Ciências.
2007 • É condecorada com a insígnia de comendadora da Ordem Nacional do Mérito Científico pelo Presidente da República do Brasil. Recebe a medalha de Mérito Geográfico da Sociedade Brasileira de Geografia.
2010 • Recebe homenagem do programa de pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências da UFRJ. Recebe homenagem do Ministério do Meio Ambiente no Dia Internacional da Mulher. Participa da Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Sustentável.
2011 • Recebe homenagem da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (Anpege). Torna-se membro da Transition Team of the Belmont Forum – ICSU.
2013 • Publica o livro A urbe amazônida. É homenageada no simpósio Relações entre Ciência e Políticas Públicas: Propostas de Bertha Becker para o Desenvolvimento da Amazônia, organizado pelo Museu Paraense Emílio Goeldi e BNDES no Rio de Janeiro. Falece aos 83 anos de idade (incompletos), na cidade do Rio de Janeiro.
Fontes: Ima Célia Guimarães Vieira, ecóloga e pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi-MPEG, e Nathalia Nascimento, geógrafa e pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental do Pará – Idesp.