Flávia Kassinoff
Pesquisas com células-tronco realizadas em todo o mundo despertam grandes esperanças no tratamento de inúmeras doenças que atualmente não encontram cura na Medicina, entre as quais se incluem a esclerose múltipla, talassemia, leucemia, diabetes mellitus dos tipos I e II, doença de Parkinson, doença de Alzheimer e epilepsia. Células-tronco são células indiferenciadas, caracterizadas pela capacidade de autorrenovação e potencial de diferenciação. Pela plasticidade que possuem, poderiam regenerar parte de tecidos lesados, ou até mesmo construir um órgão inteiro.
Marimélia Porcionatto, docente e pesquisadora da área de Biologia Molecular do Departamento de Bioquímica da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Unifesp – Campus São Paulo, explica que as pesquisas podem ser divididas em dois grandes grupos: o que tem como principal foco as propriedades terapêuticas das células-tronco e o que procura entender o comportamento dessas células, analisando os mecanismos que fazem com que mantenham suas propriedades proliferativas e também a capacidade de se diferenciarem de outros tipos celulares.
Compreendendo as células-tronco neurais
Marimélia Porcionatto
Marimélia faz parte do grupo de cientistas que tentam definir as características primordiais das células-tronco neurais. Sua linha de pesquisa investiga o comportamento dessas células em indivíduos saudáveis e em outros que possuam algum tipo de lesão no sistema nervoso central. “Um de nossos objetivos é tentar responder a questões básicas sobre como essas células se comportam, tanto em um organismo saudável quanto em um organismo que tenha algum tipo de lesão. Um dos modelos principais que usamos é o da lesão traumática do encéfalo, modelo para o traumatismo cranioencefálico”, explica a docente.
As células-tronco neurais são encontradas em dois locais específicos do cérebro: na zona subventricular e na zona subgranular do hipocampo. É nessas regiões que ocorre a neurogênese, processo de diferenciação das células-tronco em novos neurônios. Tais células podem ajudar a combater doenças neurológicas e a minimizar danos causados por acidentes.
Por muito tempo se acreditou que a neurogênese só ocorresse durante a formação do cérebro no embrião, e que o tecido cerebral fosse incapaz de regeneração. Atualmente a comunidade científica aceita a neurogênese como um fenômeno contínuo e de grande importância a ser estudado.
O processo de migração das células criadas na neurogênese até o local da lesão é um dos alvos do estudo. Se há, por exemplo, uma lesão no córtex, sinais químicos produzidos nessa área são enviados para a zona subventricular, onde estimulam a célula-tronco a se diferenciar e migrar em direção à lesão. “Nessa linha de tentar entender como a célula-tronco se comporta, buscamos determinar os mecanismos moleculares envolvidos no controle da migração dessas células”, afirma a pesquisadora.
Visão ampla de uma neuroesfera, onde estão agrupadas células-tronco neurais
Células-tronco neurais no combate à epilepsia, ansiedade e doença de Alzheimer
Beatriz Monteiro Longo
A possibilidade de extrair células-tronco neurais e cultivá-las para que realizem a expansão e a diferenciação antes de ser transplantadas permitiu o surgimento de novas perspectivas de terapia para doenças consideradas incuráveis, como o mal de Alzheimer, ou de difícil tratamento, como a epilepsia. É exatamente no estudo do impacto do implante de células precursoras neurais nessas duas patologias que Beatriz Monteiro Longo, professora adjunta do Departamento de Fisiologia da EPM, desenvolve sua pesquisa.
Em 2010, seu primeiro projeto focalizou a epilepsia e a ansiedade, doenças nas quais há perda ou disfunção de neurônios inibitórios. “Tivemos um resultado bastante interessante para a ansiedade, porque esta – assim como a epilepsia – também é mediada por disfunção de neurônios gabaérgicos (inibitórios). Observamos que os animais que eram transplantados com as células-tronco precursoras de neurônios gabaérgicos tinham uma redução do nível de ansiedade quando fazíamos testes específicos. Então, o transplante das células-tronco neurais mostrou efeitos positivos não só para um possível tratamento da epilepsia, como também para a diminuição da ansiedade”, explica Beatriz.
Em 2012, seu segundo projeto – que não abrangeu a fase clínica, embora ofereça subsídios para os que conduzam testes nessa área – incluiu a doença de Alzheimer. “A ideia é desenvolver uma pesquisa básica para entender os mecanismos e funcionamento das células-tronco neurais, caracterizá-las e observar o que acontece nessas patologias, mais do que efetuar uma aplicação clínica. É claro que a compreensão do estudo vai ajudar, provavelmente, a sintetizar um medicamento mais indicado. Mas o objetivo é caracterizar e entender o fenômeno”, conclui a docente.
Esquema de migração das células-tronco neurais no cérebro
I - A neurogênese ocorre na zona subventricular
II - As células começam a migrar para a região da lesão em forma de neuroblastos
III - Quando as células atingem a região, completam sua diferenciação tornando-se neurônios maduros
Neuroesfera onde é possível observar neuroblastos à esquerda
Células-tronco neurais derivadas da zona subventricular de camundongo adulto, cultivadas como neuroesferas (em azul: núcleos; em vermelho: células-tronco neurais; em verde: neuroblastos)
Engenharia Tecidual
A Engenharia Tecidual é um campo de estudos recente e interdisciplinar, que busca a aplicação de conceitos da Engenharia e das Ciências Biológicas para a construção e reparação de órgãos e tecidos. As estratégias atualmente empregadas para solucionar a perda de tecido, como a aplicação de enxertos ou materiais sintéticos, têm as suas limitações. Muitos tecidos não se regeneram, e mesmo os que o fazem espontaneamente, como os da pele e dos ossos, podem deixar a desejar, se a lesão for grande.
O mesmo ocorre no caso de comprometimento de algum órgão, quando a alternativa mais frequente é o transplante. Mas, obviamente, trata-se de um procedimento limitado, já que a quantidade de doadores é menor do que a dos possíveis receptores. Outro lado negativo do transplante é o fato de o paciente ter que ser imunodeprimido pelo resto da vida para não haver rejeição do órgão.
A Engenharia Tecidual surge como possível alternativa para esses problemas, podendo – em futuro não muito distante – representar o fim da aplicação de materiais não biológicos em seres humanos e ainda possibilitar que o próprio paciente seja o doador das células do tecido que será utilizado, evitando rejeições.
O casal de pesquisadores Monica Talarico Duailibi e Silvio Eduardo Duailibi, que desde o início de suas carreiras desenvolvem trabalhos com pacientes especiais na área de Odontologia, foram convidados em 2000 pelo Dr. Joseph Phillip Vacanti, do Massachusetts General Hospital e da Harvard Medical School, a participar do projeto Substituto Biológico do Dente nos Estados Unidos. Lá tiveram contato com a Engenharia Tecidual e, desde então, realizam pesquisas nessa área.
Seus primeiros trabalhos visaram à criação da “terceira dentição”, que corresponde à construção de novos dentes a partir de células-tronco adultas extraídas de outros dentes. Um dos experimentos iniciais teve como objetivo a reconstrução de coroas dentárias de porcos e a implantação delas no abdome de ratos para que o conjunto de células recebesse boa irrigação. O resultado foi positivo e os pesquisadores obtiveram as estruturas dentais como planejado.
O segundo passo foi a implantação de células de ratos neles mesmos, primeiro no abdome e depois na mandíbula. Essas células provenientes da mesma linhagem de ratos, diferenciaram-se de modo adequado e a experiência foi bem-sucedida. Assim, a pesquisa evoluiu para o passo seguinte, que foi a implantação de células humanas em ratos. É nessa fase que se encontra atualmente, e só será possível pensar na aplicação de células humanas em seres humanos quando os resultados forem bastante satisfatórios.
Outro processo que está sendo estudado em paralelo é a migração das células e o grau de controle do pesquisador sobre elas. Uma das hipóteses que causam apreensão é que as células implantadas em um ponto específico do corpo migrem para outro local, onde exista afinidade biológica, podendo gerar outro tecido ou até mesmo um tumor. Para que isso não aconteça, a pesquisa passa atualmente por um processo de validação, o que significa observar todas as ocorrências até obter um resultado seguro e viável para ser testado na fase clínica.
Monica Talarico Duailibi e Silvio Eduardo Duailibi
“Temos que avançar muito no campo da investigação, da parte experimental, para colocar os resultados no âmbito da relevância clínica. Os estudos ainda não estão suficientemente amadurecidos para serem apresentados como uma terapia disponível para o clínico. Acho que toda terapia nova, que oferece grandes chances de cura, precisa ser repensada e analisada, feita com muita parcimônia”, afirma Monica, que é vinculada ao curso de pós-graduação em Cirurgia Translacional da EPM como professora afiliada.
“O fato de pesquisar células-tronco implica trabalhar com dois sentimentos da espécie humana: a esperança e a expectativa de longevidade. Por isso é preciso ter muita moderação na divulgação dos fatos, pois existem casos clínicos que dependem de resultados da Medicina Regenerativa”, ressalta Silvio, que é docente do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Unifesp –Campus São José dos Campos.
O casal coordena o Laboratório de Engenharia Tecidual e Biofabricação no Centro de Terapia Celular e Molecular (CTCMol) da Unifesp, no qual o objetivo é aprimorar as técnicas de Engenharia Tecidual. “Estamos desenvolvendo um laboratório que consiga produzir vários tecidos. Nosso foco inicial eram tecidos mineralizados, que formam ossos, dentes e cartilagens, com especial ênfase em dentes. Hoje estamos abrindo o leque a fim de começar a construir outras estruturas, inclusive tecidos moles”, declara Silvio.
Para a criação de um tecido, três elementos são essenciais: a fonte celular, scaffolds (o material que servirá de estrutura para as células) e fatores de indução do crescimento celular. “A Engenharia Tecidual utiliza uma população de células de forma a reorganizá-las
em outra estrutura. Isso é diferente da terapia celular, quando apenas se colocam as células do doador (que pode ser o mesmo indivíduo ou não, homólogo ou alogênico) no local e espera-se que interajam com o leito receptor. Na Engenharia Tecidual, constrói-se uma base em três dimensões, na forma do órgão que se pretende criar e semeiam-se células a fim de alcançarem todas as dimensões estruturais, alimentando esse conjunto que futuramente se tornará o órgão”, explica o pesquisador.
Para criar o “arcabouço” que abrigará as células, é necessário encontrar um material adequado (biomaterial) que seja biocompatível com o organismo e que permita e induza o crescimento e diferenciação celular. Para dar forma a esse material, são utilizadas técnicas computacionais de produção de estruturas tridimensionais. “A nova terapia já não adota o conceito bidimensional, como antigamente. Tudo é tridimensional. E como é tridimensional, os equipamentos que integram esta pesquisa são de nova geração. Não se utiliza mais o microscópio, em que se vê uma camada. É preciso que seja um instrumento que permita a visão em profundidade”, diz Monica.
Por ser uma área de desenvolvimento recente no país, a Engenharia Tecidual passa por um momento de normatização na Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), na qual os pesquisadores coordenam a Comissão de Estudos de Implantes e Substitutos Biológicos. Monica e Silvio Duailibi também fazem parte da International Organization for Standardization (ISO), onde atuam na normatização dos métodos de obtenção de produtos médicos de Engenharia Tecidual (TEMPs), como são denominados os neo-órgãos.
Artigos - Dr.ª Beatriz Longo:
CALCAGNOTTO, M.E.; RUIZ, L.P.; BLANCO, M.M.; SANTOS-JUNIOR, J.G.; VALENTE, M.F.; PATTI, C.; FRUSSA-FILHO, R.; SANTIAGO, M.F.; ZIPANCIC, I.; ÁLVAREZ-DOLADO, M.; MELLO, L.E.; LONGO, B.M. Effect of neuronal precursor cells derived from medial ganglionic eminence in an acute epileptic seizure model. Epilepsia, v.51, n.3 [suplemento], p.71-75, jul.2010. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1111/j.1528-1167.2010.02614.x >.
VALENTE, M.F.; ROMARIZ, S.; CALCAGNOTTO, M.E.; RUIZ, L.; MELLO, L.E.; FRUSSA-FILHO, R.; LONGO, B.M. Postnatal transplantation of interneuronal precursor cells decreases anxiety-like behavior in adult mice. Cell Transplantation,v. 22, n.7, p.1237-1247, jul. 2013. Publicação on-line: 1º out. 2012. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.3727/096368912X657422 >.
GARCIA, K.O.; ORNELLAS, F.L.; MARTIN, P.K.; PATTI, C.L.; MELLO, L.E.; FRUSSA-FILHO, R.; HAN, S.W.; LONGO, B.M. Therapeutic effects of the transplantation of VEGF overexpressing bone marrow mesenchymal stem cells in the hippocampus of murine model of Alzheimer’s disease. Frontiers in Aging Neuroscience, v.6, n. 30 [artigo], 7 mar. 2014. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.3389/fnagi.2014.00030 >.
Artigos - Dr.ª Marimélia Porcionatto:
FILIPPO, T.R.; GALINDO, L.T.; BARNABE, G.F.; ARIZA, C.B.; MELLO, L.E.; JULIANO, M.A.; JULIANO, L.; PORCIONATTO, M.A. CXCL12 N-terminal end is sufficient to induce chemotaxis and proliferation of neural stem/progenitor cells. Stem Cell Research, v.11, n.2, p. 913-925, set.2013. Publicação on-line: 15 jun.2013. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1016/j.scr.2013.06.003 >.
GALINDO, L.T.; FILIPPO, T.R.; SEMEDO, P.; ARIZA, C.B.; MOREIRA, C.M.; CAMARA, N.O.; PORCIONATTO, M.A. Mesenchymal stem cell therapy modulates the inflammatory response in experimental traumatic brain injury. Neurology Research International, v.2011, n. 564089 [artigo], 2011. Publicação on-line: 9 jun. 2011. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1155/2011/564089 >.
PRIMO, F.L.; COSTA REIS, M.B. da; PORCIONATTO, M.A.; TEDESCO, A.C. In vitro evaluation of chloroaluminum phthalocyanine nanoemulsion and low-level laser therapy on human skin dermal equivalents and bone marrow mesenchymal stem cells. Current Medicinal Chemistry, v.18, n.22, p.3376-3381, 2011. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.2174/092986711796504745 >.
Artigos - Dr.ª Monica Talarico Dualibi e Dr. Silvio Eduardo Duailibi:
DUAILIBI, S.E.; DUAILIBI, M.T.; FERREIRA, L.M.; SALMAZI, K.I.; SALVADORI, M.C.; TEIXEIRA, F.S.; PASQUARELLI, A.; VACANTI, J.P.; YELICK, P.C. Tooth tissue engineering: the influence of hydrophilic surface on nanocrystalline diamond films for human dental stem cells. Tissue Engineering – Part A, v.19, n. 23-24, p.2537-2543, dez. 2013. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1089/ten.tea.2012.0628 >.
DUAILIBI, M.T.; KULIKOWSKI, L.D.; DUAILIBI, S.E.; LIPAY, M.V.N.; MELARAGNO, M.I.; FERREIRA, L.M.; VACANTI, J.P.; YELICK, P.C. Cytogenetic instability of dental pulp stem cell lines. Journal of Molecular Histology, v.43, n.1, p. 89-94, fev. 2012. Publicação on-line: 23 nov. 2011. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1007/s10735-011-9373-z >.
DUAILIBI, M.T.; DUAILIBI, S.E.; DUAILIBI NETO, E.F.; FERREIRA, L.M.; NEGREIROS, R.M.; JORGE, W.A.; VACANTI, J.P.; YELICK, P.C. Tooth tissue engineering: optimal dental stem cell harvest based on tooth development. Artificial Organs, v.35, n.7, p. E129-E135, jul. 2011. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1111/j.1525-1594.2010.01200.x >.
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