“Devemos aprimorar a política de fomento à inovação”

Especialista em ciência e tecnologia, ex-diretor acadêmico do ICT da Unifesp - Campus São José dos Campos e atual secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do MCTI, Armando Milioni fala sobre os desafios para o desenvolvimento da indústria brasileira no cenário mundial

Ana Cristina Cocolo

Fotografia do professor Armando Milioni, ele está em frente a uma quadro cheio de anotações - gráficos e fórmulas matemáticas

Ajudar a estabelecer estratégias para alavancar a inovação tecnológica no Brasil e reposicionar a indústria nacional, de acordo com sua relevância e competitividade, dentro e fora do país, são as principais tarefas assumidas pelo engenheiro mecânico Armando Zeferino Milioni, nomeado, em agosto, secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação (Setec) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). O atual secretário é pesquisador e professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) – onde também se graduou e concluiu o mestrado – e doutor em Engenharia Industrial e Ciências de Gestão pela Universidade Northwestern, em Illinois, nos Estados Unidos. Atua nas áreas de pesquisa operacional e Estatística Aplicada, com ênfase em análise de envoltória de dados (DEA) e modelos de previsão. 

Milioni participou da equipe pro tempore que implantou a Universidade Federal do ABC, em 2005, com uma nova proposta acadêmica: os bacharelados interdisciplinares (BIs). Nos cinco anos em que permaneceu na UFABC, ocupou as funções de pró-reitor de pós-graduação, vice-reitor e chefe de gabinete. Em 2010, foi convidado a trazer os BIs para o Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Unifesp – Campus São José dos Campos, onde exerceu o cargo de diretor acadêmico até dezembro de 2012. 

Segundo ele, os dados referentes ao período de 2008 - 2011 da Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pintec), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam para uma queda da taxa de inovação na indústria. O secretário pondera, entretanto, que esses dados devem ser analisados com cuidado, pois no mesmo intervalo cresceram as taxas de emprego no setor, bem como o número de indústrias que apostaram no desenvolvimento de novas tecnologias.

 

Entreteses - A UFABC foi pioneira na implantação do bacharelado interdisciplinar (BI) nas universidades federais do país. Quantas universidades federais brasileiras, além da Unifesp, já adotam esse novo sistema de ensino?

Armando Milioni - O número vem crescendo rapidamente. Já eram 12 em 2010 e são 16 em 2014. E também há iniciativas fora do sistema federal, como é o caso do ProFIS, da Unicamp. Mas é importante esclarecer que a terminologia BI é usada de forma genérica para iniciativas que não são idênticas entre si.

E. Quais são as vantagens desse novo modelo de ensino para os estudantes e para as empresas?

A.M. Há várias. Para o aluno, por exemplo, retarda a decisão de escolha da carreira, despertando vocações mais autênticas. Esse é um velho problema da educação superior no Brasil. Em nosso país, apenas 1/3 daqueles que se graduaram em um curso superior trabalha em atividades ligadas à área de sua formação. Os BIs também estimulam o aluno a fazer escolhas e arcar com suas consequências. Ainda, induzem à autoaprendizagem, de grande valor na sociedade do conhecimento, na qual já vivemos. Esta última é um benefício também para o empregador, é claro, que terá um funcionário com capacidade autodidata, diplomado em menos tempo, com uma formação mais plural e mais abrangente, com possibilidades indefinidas de educação continuada e sem prejuízo da especialização aguda.

E. É possível dizer que a evasão nas universidades diminuiu com o BI?

A.M. Não creio, mas os BIs estão longe de ter atingido a maturidade necessária para que seus resultados possam ser medidos. Temo pela exigência de resultados de curto prazo em iniciativas dessa natureza.

E. O BI é uma tendência no Brasil? Como ele é visto em outros países?

A.M. Acredito que os BIs sejam uma tendência no Brasil. Em outros países, especialmente no mundo mais desenvolvido, já não há mais razão para se falar em tendência, pois eles são uma realidade. Há mais de dez anos transformaram-se no modelo comum de educação superior em praticamente toda a Europa. Nos Estados Unidos, existem há muitas décadas.

E. Quais foram as experiências adquiridas no exterior que o levaram a trazer essa nova proposta de educação superior?

A.M. No meu caso particular, nenhuma. Conheci o assunto quando compus a equipe pro tempore que implantou a UFABC. Foi lá que tomei conhecimento do bacharelado interdisciplinar em Ciência e Tecnologia, concebido por uma equipe de educadores, muitos deles da Academia Brasileira de Ciências, que era liderada pelo professor Luiz Bevilacqua. E lembro-me com clareza que reagi mal à novidade, ao tomar conhecimento dela. Gosto de me lembrar disso, pois me condiciona a controlar a natural rejeição ao novo, uma tendência que talvez se justifique do ponto de vista evolutivo, mas que pode ser muito negativa.

E. Houve resistência à implantação do BI no Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Unifesp – Campus São José dos Campos? Em caso positivo, por quê?

A.M. Sim, houve. É verdade que os estudantes já estavam descontentes com as dificuldades iniciais do campus, a falta de professores e de boas condições de infraestrutura, por exemplo. Creio que a implantação dos BIs acabou servindo como catalisador desse descontentamento que se materializou numa greve – felizmente nem longa nem violenta. Os próprios grevistas escreveram um documento deixando claro que não se opunham aos BIs e reconheciam seus bons fundamentos. Concluí, portanto, que faltaram mais debate e mais explicações. Em uma reunião do Conselho Universitário, reconheci esse fato e fiz questão de assumir minha parcela de responsabilidade por ele.

E. Os cursos de BI realmente colocam em prática a interdisciplinaridade? Há quem acredite que o modelo é um conjunto de disciplinas com conteúdos rebaixados.

A.M. É certo que os BIs podem ser melhorados e há grandes desafios a serem suplantados. Alguns deles vão demorar um pouco, como a geração de material bibliográfico novo e de qualidade, que leva tempo, ou a necessidade de convencer os docentes a ensinar de um jeito diferente do que eles aprenderam. Mas entendo que o balanço geral é positivo. Os BIs representam a desejável modernização de um projeto pedagógico bastante arcaico, que ainda é majoritariamente praticado no Brasil. Quanto ao conteúdo, creio ser o oposto. O conhecimento aprofundado faz parte da lógica dos BIs, mas ele não é imposto ao aluno, e é sim uma decorrência das escolhas e das aptidões naturais que o próprio aluno é estimulado a identificar.

Milioni, em frente a um avião. Ele está em um gramado e o dia está muito ensolarado, com o céu azul

Milioni e o BEM-120, também conhecido como Brasília, primeiro avião comercial pressurizado construído pela Embraer. Nos anos 1980, o engenheiro trabalhou em dois projetos relacionados a essa aeronave

E. Dado o fato de que as empresas, em grande parte, ainda não absorveram o significado do novo bacharelado, não existe o risco de que os formandos acabem enfrentando uma situação de desqualificação no mercado por conta da formação generalista? Como resolver isso?

A.M. Sim, esse risco existe e entendo que a forma de combatê-lo é a contínua divulgação do conceito, com paciência e perseverança. Mas acho também que o combate deve começar dentro de casa, digamos assim, e, nesse contexto, acho que a Unifesp tem uma lição de casa a fazer. Em inúmeras ocasiões, em reuniões do Conselho Universitário, lutei contra editais de concursos públicos para contratação de docentes que exigiam que os candidatos tivessem graduação em uma área específica. Admito que haja casos em que isso possa ser apropriado, mas presumo que eles sejam a exceção, não a regra. A exigência do título de bacharel em Matemática, por exemplo, como condição para que alguém se candidate a uma vaga de professor de Matemática, impede que todos os graduados com BIs concorram a essa vaga. E eu não vejo razão pela qual o graduado com determinado BI, que tenha concluído o doutorado em Matemática ou área afim, não possa competir por essa vaga.

E. Na qualidade de secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação (Setec) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MTCI), como o senhor definiria as principais áreas de pesquisa em que o Brasil necessita investir, da graduação à pós-graduação, e que são foco prioritário para o desenvolvimento do país?

A.M. Precisamos investir na formação de engenheiros e cientistas. Dos 876 mil brasileiros que em 2012 receberam diploma de educação superior, 424 mil, ou quase 50%, graduaram-se em Administração, Direito ou Educação. Para cada bacharel em Matemática foram graduados 245 em Direito. Para cada bacharel em Física, 281 em Administração. Nada contra essas áreas em que graduamos muita gente, mas os números pequenos nas áreas técnicas preocupam. Nada tenho contra a iniciativa privada e sempre pensei nas instituições de ensino superior privadas como parceiras das públicas na missão de educar o povo brasileiro. É certo, todavia, que a enorme concentração de vagas no ensino superior privado no Brasil é em parte responsável pelos números citados. Isso é fácil de demonstrar. Para cada bacharel em Física graduado na rede pública em 2012, foram graduados 29 bacharéis em Direito. Na rede privada essa proporção foi de um para 1.848! Cabe repetir: 1.848 advogados para cada físico formado na rede privada. Aliás, a concentração do ensino superior privado no Brasil nos coloca na contramão do mundo desenvolvido, notadamente dos EUA e da Europa, onde o ensino superior público é absolutamente majoritário. Defendo a expansão da rede pública de ensino superior com ênfase – que não significa exclusividade – na oferta de vagas para a graduação e a pós-graduação de engenheiros e cientistas.

E. Qual a situação do país no cenário geral da ciência e tecnologia mundiais?

A.M. É sabido que a nossa ciência vai melhor do que a nossa tecnologia. Na primeira, os ganhos das últimas décadas foram notáveis. A National Defense University (NDU), do Departamento de Defesa Norte-Americano, publicou um estudo em que o Brasil aparece em 2020 como o 6º maior gerador de artigos científicos do mundo. Em 2040, seria o 4º, atrás apenas da China, EUA e Índia, nessa ordem. Como professor de Estatística, reluto diante de previsões de longo prazo, mas acho interessante que a NDU tenha publicado o estudo. Não estamos, todavia, conseguindo os mesmos resultados na geração de tecnologia, haja vista a lenta evolução na quantidade de patentes depositadas por brasileiros. Mas não creio que isso seja por deixarmos de fazer algo essencial. Construímos uma economia relutante em enfrentar as dificuldades técnicas por duvidar da nossa capacidade de resolvê-las. Aprendemos a nos satisfazer em exportar minério de ferro, borracha e café e a importar aço, pneus e café industrializado – o que, aliás, continuamos fazendo. Acredito que há que perseverar nas iniciativas em curso, aperfeiçoando-as continuamente, é claro, mas sem esmorecer.

E. O MCTI vem buscando parcerias de cooperação científica e tecnológica com diferentes nações. Como está esse “namoro” com outros países e quais as parcerias mais recentes que vislumbram bons frutos?

A.M. Vai bem. Logo nos primeiros dias de minha chegada ao MCTI, em fevereiro deste ano, tive a oportunidade de me reunir com uma delegação alemã do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), que trazia uma proposta muito interessante. Eles abriram um edital chamando propostas sobre terras-raras, que, aliás, é uma das áreas que o MCTI considera estratégica. Então, escolheram dez países e montaram uma delegação que visitou cada um deles, divulgando o edital. A ideia era estimular que grupos de pesquisa desses países se juntassem aos alemães na elaboração de propostas. A condição era que houvesse contrapartida das agências de fomento desses países. É uma ideia astuta, pois atinge dois objetivos simultaneamente desejáveis: alavanca o valor do edital que eles lançaram e estimula a internacionalização das pesquisas. Fiquei feliz em saber que o Brasil foi um dos dez países escolhidos, uma demonstração de confiança em nossos cientistas e em nossas agências de fomento.

E. A política de desenvolvimento científico e tecnológico no país assume uma orientação adequada ao nosso perfil social?

A.M. Como professor de Estatística, costumo dizer que a melhor expressão que descreve o Brasil é “variância enorme”. E isso costuma ser verdade em qualquer indicador que você escolher. A renda, que é a mais citada, é apenas um deles, mas as consequências se manifestam na educação, saúde, habitação, enfim, na qualidade de vida. Eu diria, contudo, que desde a redemocratização, e com maior ênfase nos últimos 20 anos, as políticas públicas nacionais passaram a ser orientadas no sentido de diminuir nossas enormes desigualdades. Entendo que a política de desenvolvimento científico e tecnológico segue no mesmo caminho. Agora, nossa desigualdade é um trabalho de muitos séculos. Corrigi-la será tarefa para várias décadas. Estamos apenas começando a fazê-lo.

Milioni sentado em seu escritório

Em sua sala no ITA, Milioni faz questão de manter algumas recordações e “tesouros”: a coleção, iniciada em 2003, de crachás de identificação em congressos dos quais participou pelo mundo; e os desenhos da neta mais velha, Isabela

A jornalista e o professor Milioni na área externa do MAB, o céu está muito azul e há uma réplica de foguete ao fundo

Em visita ao Memorial Aeroespacial Brasileiro (MAB), em São José dos Campos, o engenheiro se entusiasma ao contar a história de cada avião exposto. Ao fundo, uma réplica em tamanho real do VLS (Veículo Lançador de Satélites) do Programa Espacial Brasileiro

E. Qual é o seu maior desafio como secretário da Setec/MCTI?

A.M. Tenho tentado contribuir com uma visão construtivamente crítica das ações das quais tomo conhecimento e também com reflexões oriundas da minha área de atuação. Quando foram divulgados os resultados da Pesquisa de Inovação Tecnológica 2011 (Pintec), por exemplo, no início deste ano, muito se falou na queda da taxa de inovação da indústria, que era de 0,38 em 2008 e caiu um pouco abaixo de 0,36 em 2011. Essa redução não foi bem recebida nem deveria ter sido, é fato, mas é interessante notar que ela é consequência de duas expansões desejáveis. A taxa de inovação é a razão entre o número de indústrias inovadoras e o de indústrias que satisfazem as condições para compor o universo da pesquisa – elas têm de ter um número mínimo de empregados, por exemplo. De 2008 para 2011 esse universo, que é o denominador da razão, cresceu 16%, o que é uma coisa boa, enquanto o número de indústrias inovadoras, que é o numerador, também cresceu, mas menos, algo acima de 8%. Então, é possível dizer que a queda na taxa de inovação foi o resultado de duas coisas boas, não sendo a maior das melhoras a que implicaria o crescimento da taxa de inovação. As políticas de fomento podem e devem ser continuamente aprimoradas, mas acho interessante mostrar que os mesmos números podem receber outro olhar, que desaconselha mudanças precipitadas.

E. Qual a sua participação no Programa Espacial Brasileiro?

A.M. É muito modesta. Orientei diversos trabalhos de graduação e teses de mestrado de alunos que trabalhavam no IAE, que é o Instituto de Aeronáutica e Espaço, responsável pelo projeto do veículo espacial brasileiro. Também dei alguma assessoria em análises estatísticas de confiabilidade de componentes, mas só isso. Como fiz isso em diferentes momentos nos últimos 30 anos, contudo, acabei tendo a oportunidade de acompanhar a evolução do programa todo. Sempre torci muito por ele.

E. Qual é a sua maior frustração como engenheiro mecânico aeronáutico?

A.M. Já que falamos do programa espacial, ocorre-me citar o desastre do VLS (Veículo Lançador de Satélites), em 2003. Até então, o Programa Espacial Brasileiro ia bem, atingindo todas as metas estabelecidas para os foguetes da família Sonda, que precede o VLS. Mas o salto de patamar para o VLS nunca foi atingido com sucesso. Houve duas tentativas de lançamento que não lograram êxito. Na primeira delas, o foguete precisou ser destruído logo após o lançamento, por falha evidente de trajetória. Na segunda, tudo parecia ter corrido bem, mas, novamente, o foguete precisou ser destruído por falhas detectadas quando ele já atingira uma altitude considerável. A terceira tentativa seria no dia 23 de agosto de 2003. Nesse dia, contudo, por razões que nunca foram totalmente esclarecidas, um dos foguetes que compunha o cluster entrou em combustão enquanto os técnicos estavam ao seu redor, completando as instalações que precedem o lançamento. Morreram 21 pessoas. Entrei no ITA em 1974, como aluno, e pouco depois disso comecei a ouvir falar na Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), que incluía a produção de satélites e do veículo que os lançaria. É frustrante ter de admitir, 40 anos depois, que não fomos capazes de cumprir a missão. O programa nunca se recuperou inteiramente da tragédia de 2003 e nunca houve uma nova tentativa de lançamento.