Valquíria Carnaúba
Evento de integração da Epeq Jr. 2014, realizado no auditório da Unidade José de Alencar (Campus Diadema)
É conhecido o significado mais comum para o termo “ecossistema”. Trata-se de uma unidade natural constituída de parte viva (plantas, animais e microrganismos) e de parte não viva (água, gases atmosféricos, sais minerais e radiação solar), que interagem entre si, formando um sistema estável. Paulo Lemos, doutor em Empreendedorismo Tecnológico e Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), transfere o modelo para o ambiente acadêmico, considerando-o como mais adequado para as universidades de pesquisa brasileiras.
Para Lemos, o conceito de ecossistema sintetiza a crescente integração das atividades de inovação e empreendedorismo à realidade acadêmica e organizacional de universidades no mundo todo. Sintoma dessa tendência é o surgimento cada vez maior de organizações como empresas juniores (EJs) – associações civis sem fins lucrativos, formadas e geridas por estudantes de curso superior.
Segundo dados do Censo e Identidade da Confederação Brasileira de Empresas Juniores (Brasil Júnior), nosso país tornou-se líder mundial no segmento de EJs, ultrapassando a quantidade de negócios do gênero desenvolvidos dentro de universidades em toda a Europa. Hoje, há mais de 11 mil jovens profissionais distribuídos por cerca de 280 universidades brasileiras, compondo 1.200 dessas entidades. É possível que esse número se expanda ainda mais com a sanção da Lei Federal nº 13.267/2016, cuja matéria prevê a normatização das EJs no país.
Responsáveis pela concentração de alunos interessados em desenvolver competências como empreendedorismo e liderança, as EJs funcionam como verdadeiros laboratórios onde os universitários podem galgar uma carreira e experimentar, durante o período de graduação, cargos que vão de trainee a presidente. Uma experiência, segundo o professor da Unicamp, que pode ser convertida em oportunidade na hora de ingressar na iniciativa privada, no setor público ou em instituições sem fins lucrativos.
Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), já existem oito dessas organizações, pulverizadas entre os diferentes campi e compostas por estudantes de diversos cursos. São elas: Empresa Paulista de Engenharia Química Júnior (Epeq Jr.), Pharminder Jr. Consultoria em Projetos Farmacêuticos, Principia Jr., BUD Jr. e Sustentare Jr., estabelecidas no Campus Diadema; Empresa de Ciência e Tecnologia Multidisciplinar Júnior (ECTM Jr.), no Campus São José dos Campos; Instituto do Mar Júnior (IMar Jr.), no Campus Baixada Santista; e Eppen Jr. Consultoria, no Campus Osasco.
Em entrevista à Entreteses, Lemos aborda pontos como ensino, empreendedorismo e inovação, passando pelos possíveis rumos das EJs nas instituições federais de nível superior e pelas políticas de inovação nas universidades públicas – a exemplo da Unifesp.
Entreteses - Qual a importância das empresas juniores (EJs) para a universidade pública e para o conhecimento?
Paulo Lemos - As EJs consistem em uma oportunidade de aprendizado complementar ao da sala de aula. Para compreender essa importância, cito o campo do empreendedorismo e da inovação. Um dos papéis exercidos pelas EJs consiste em funcionar como canal de expressão para competências como liderança, comunicação, relacionamento e capacidade gerencial. Nessas organizações, os estudantes podem fazer aflorar seus pontos fortes e envolver-se em práticas de gestão e empreendedorismo. Nelas, muitas vezes, é preciso simular situações de empresas reais, como a liderança de grupos e o desenvolvimento de uma atividade ou projeto.
E. A empresa júnior costuma formar-se em torno de determinadas áreas do conhecimento?
P.L. O surgimento das EJs em torno de áreas do conhecimento depende muito da configuração da própria universidade ou instituição de ensino superior onde elas estão sendo implementadas. Um exemplo: uma universidade com forte atuação nas áreas de Administração de Empresas, Economia ou desenvolvimento de negócios, tanto em termos de graduação, como de pós-graduação, é uma situação muito diferente da de uma universidade ou instituição onde não há essa oferta de cursos. Se sou aluno de Biologia e estudo em uma universidade onde tenho acesso a cursos de Economia ou Administração e posso fazer cursos formais para complementar minha formação em Biologia, estarei em uma situação muito diferente de outra em que monto ou participo de uma EJ e não teria aquela alternativa. Cada organização tem a sua especificidade e sua necessidade. Por outro lado, é importante vislumbrar inovação onde não havia esse horizonte. Vamos tomar um exemplo mais clássico: uma EJ que surge a partir da iniciativa de estudantes de um curso de Artes. Teoricamente, o setor de artes e o lado mais comercial seriam coisas incompatíveis, mas não é essa a realidade. Até em um campus onde o surgimento de EJs seria inusitado, você pode presenciar EJs que trabalham com a parte cultural, artística e social, e até oferecem um espaço onde o artista é incentivado a gerenciar a própria carreira como empreendedor. É o espaço onde você pode expressar e buscar competências que não se encontram na sala de aula durante a formação convencional. Na área de Ciências Sociais, fazer toda a parte de levantamento de dados é uma competência que provavelmente será desenvolvida plenamente instalando-se uma empresa para abrir esse tipo de mercado; e uma EJ pode ser o local onde um aluno de Ciências Sociais irá aprender a gerenciar, projetar atividades, gerir projetos e adquirir outros conhecimentos.
E. Existe uma tendência de as empresas e instituições, ao absorverem os profissionais recém-formados, exigirem cada vez mais competências como capacidade empreendedora, liderança e autonomia?
P.L. Há uma tendência – não somente no mercado de trabalho, mas também no âmbito social, de forma geral – de exigir que as pessoas sejam cada vez mais empreendedoras e que tenham a autonomia como uma característica empreendedora. Isso porque hoje, mesmo na mais antimercado das organizações, uma pessoa será exigida em sua capacidade empreendedora, envolvendo características como agilidade, autonomia e liderança. É uma tendência geral. A EJ, como um espaço onde o aluno desenvolve determinadas atividades, irá realmente complementar essas exigências.
O docente Paulo Lemos, da Unicamp, durante o evento Universidade Empreendedora e o Papel das EJs, no auditório térreo da Reitoria (2016)
E. As universidades públicas, em sua opinião, estão preenchendo essa condição, necessária ao profissional recém-formado?
P.L. Antes de abordar essa questão, sempre reforço a diferença entre instituição de ensino superior e universidade, pois são dois tipos de organização diferentes. A primeira tem como foco apenas o ensino; já a segunda agrega atividades de pesquisa, e isso deve ser considerado quando falamos das chances e oportunidades das EJs. A princípio, o papel da universidade depende da grade de cursos e de sua estrutura. Posteriormente, é necessário fazer a seguinte reflexão: qual é o projeto que a universidade ou a instituição de ensino superior tem para essas organizações denominadas EJs? Definições sobre a forma como essas EJs devem funcionar, dividir o trabalho e alinhar-se a atividades acadêmicas mais convencionais, dependem de projeto. Isso tudo é um passo enorme que exige a estruturação de um projeto específico para o desenvolvimento desejado, instalação, manutenção e a própria vida das EJs.
E. Qual a infraestrutura que uma universidade deve oferecer para o bom funcionamento dessas EJs?
P.L. Podemos pensar em dois níveis: o físico e o conceitual. O primeiro trata dos recursos físicos mais básicos que devem ser fornecidos pela universidade para a operacionalização das EJs. É importante que estas disponham de uma infraestrutura que permita a operação diária e a definição de identidade e endereço. Com ela, os próprios alunos integrantes das EJs podem alavancar mais recursos. Por exemplo, se eles precisarem de itens como computadores e móveis, vão ter autonomia e capacidade de adquiri-los. Já quando falamos de infraestrutura conceitual devemos pensar em ecossistema: a infraestrutura como oferta de apoio e recursos propriamente dita. O conceito tem sido bastante trabalhado no contexto atual de gestão das organizações e consiste no reconhecimento da EJ, bem como na divulgação das atividades e em sua conexão com outras organizações. Se o integrante de uma EJ precisa do contato com outra universidade, onde pretende aprender uma atividade específica e fundamental para administrá-la, como a universidade de origem vai incentivar e mediar esse contato? Esse suporte implica a valorização da EJ e o estímulo ao seu funcionamento.
Paulo Lemos
E. De que maneira a nova lei para regulamentação das EJs e organizações como o Movimento Empresa Júnior (MEJ) e Brasil Júnior podem ter contribuído para a expansão das EJs?
P.L. Podemos pensar sobre isso dentro de um contexto maior: a necessidade de haver um marco regulatório para a atuação das EJs, que pontue diretrizes jurídicas e legais, e também um marco regulatório de instituições. Movimentos como o MEJ, por exemplo, tiveram grande importância na concretização do marco regulatório, uma vez que se trata de organizações suprauniversitárias que dão diretrizes, espaço para maior troca de experiências e troca de aprendizado entre as EJs do Brasil todo, mesmo em nível estadual. Esse lado legal, portanto, já existia. Houve o reconhecimento de que as atividades desenvolvidas pelas EJs são relevantes, que demandam um arcabouço que coloca as regras para definir como elas devem funcionar. A outra questão referente ao marco é a possibilidade de atuação dos estudantes em patamar superior ao das próprias EJs. Se um estudante participa de uma EJ e depois atua no MEJ ou outra organização suprauniversitária, isso lhe proporcionará outras competências e exigirá mais quanto à coordenação de atividades e relacionamento. Os alunos mais interessados sabem que, ao se aprofundarem no mundo das EJs, sua atuação, que havia começado com elas, poderá estender-se a organizações maiores, implicando a aquisição de novas e importantes experiências para sua formação.
E. Críticos da criação de empresas juniores acreditam que essa iniciativa significa uma rendição da universidade pública ao mercado. Alegam que o empreendedorismo obedece a determinações como eficácia, produtividade e urgência, que são alheias às características inerentes à pesquisa científica de caráter público, porque esta não tem como horizonte a busca do lucro. Qual a sua opinião sobre isso?
P.L. Não existem contradições entre o conceito de EJ e o papel básico da universidade, mas sim possibilidades de conciliação. Qual é a principal missão da universidade, principalmente daquela que tem suas atividades voltadas ao ensino e à pesquisa? É a produção de conhecimento científico e tecnológico de excelência. Por isso, não podemos ser induzidos a crer que as atividades ligadas à inovação, ao empreendedorismo e à abertura da universidade atrapalhem essa missão principal, mas sim que a complementem. São atividades absolutamente conciliáveis, dependendo do propósito da universidade em gerenciá-las. Esse é um dos segredos das grandes universidades no mundo todo, as quais mantêm excelência na produção científica e tecnológica e, ao mesmo tempo, trabalham muito bem a inovação e o empreendedorismo. Como fazer isso? Apostando na prática, pois não existe uma fórmula mágica. Cada atividade deve ter seu próprio espaço.
E. Essa resistência pode estender-se à questão das patentes? Como a inovação pode sobreviver no Brasil, já que a inovação pode ser medida pela quantidade de patentes?
P.L. Certamente. Se estou numa universidade que vai partir para uma política de incentivo à propriedade intelectual de sua produção científica e tecnológica, quais serão as diretrizes dessa política? Se isso estiver claro e definido, as resistências passam a ser mais bem equacionadas, pois desse modo é possível ter uma noção melhor do que fazer com a produção científica. Outro ponto é que o aprendizado, a compreensão do processo de patenteamento pelo pesquisador favorece imensamente a abrangência do conhecimento desse cientista. Não é em toda área que a produção científica tem potencial de patenteamento, mas nas áreas favorecidas pelas patentes é evidente que, tecnicamente, o trabalho do cientista será melhor quanto mais ele souber patentear, pois terá acesso a uma base de informações ampla, mais do que se acessasse bases bibliográficas. É preciso ter bem claro o propósito assumido pela universidade em relação à sua política de propriedade intelectual. Se estiver claro, a chance de haver resistência será muito menor. É uma questão antiga, recorrente e legítima, para a qual não existe resposta pronta.
Membros da Principia Jr. ministrando palestra para os colaboradores da Basf, multinacional do ramo da Química, durante a Semana Interna de Prevenção de Acidentes do Trabalho (SIPAT), em São Bernardo do Campo
Parte dos membros da Principia Jr. durante dinâmica do processo seletivo de 2017
Equipe da atual gestão da Epeq Jr. (2016/2017)
E. A existência das startups está de alguma forma relacionada à das EJs?
P.L. Não são apenas as EJs que hoje estão atuando nas universidades: há uma série de organizações que estão surgindo, de forma independente. Os próprios alunos sentem que podem e devem renovar o ambiente acadêmico e – a partir dessa concepção – estão encabeçando movimentos de empreendedorismo. Na Universidade de São Paulo (USP) e na Unicamp, por exemplo, alunos montaram centros e núcleos de empreendedorismo, organizações quase informais dentro da instituição para trabalhar com essa questão, que é uma realidade. Essa renovação está em andamento e é positiva para o ambiente acadêmico – em essência, um ambiente muito dinâmico. As startups, como um movimento global, estão estimulando esses novos tipos de organização.